Lembranças, história… e uma antena?

Há não muito tempo, num sábado de manhã, eu estava dando uma volta pelo Centro da cidade onde moro. Acho que pelo seu tamanho atual, abrigando mais de setecentos mil habitantes, já quase podemos chamá-lo de “Centro Velho”… Aliás, uma pequena pérola de cultura inútil: os censos de alguns séculos atrás referiam-se às vilas e povoados com algo como “trinta fogos e cem almas”; fiquei um tempo perdido com essa definição até que acabei descobrindo – no exemplo seriam trinta casas (cada casa um fogo, em torno do qual se une a família) e cem pessoas (cada pessoa, uma alma).

Mas onde estávamos? Ah. Sim. O Centro.

Durante muitos anos trabalhei no Banco Nacional (“O Banco que está a seu lado!”) – aquele do Ayrton Senna. Ficava bem em frente das Lojas Americanas. Sou da época em que o banco estava começando a se modernizar, de modo que comecei trabalhando com as antigas máquinas Burroughs, aquelas autenticadoras de documentos com centenas de botões na face. Ainda me lembro da dificuldade de se autenticar alguns tipos de carnês muito estreitos – chegava a machucar a mão! Houve uma época, pelo cargo que eu ocupava, em que eu era simplesmente o primeiro a entrar e o último a sair, o cara que abria e fechava os malotes diários. Lembro-me de cada detalhe do prédio, até mesmo das reformas pelas quais ele passou. Cada trinca, cada rangido, cada cheiro. São lembranças que fazem parte de mim e de mais ninguém, até porque o prédio não mais existe. Foi totalmente derrubado para construção de alguma outra coisa. Tudo que se vê – hoje – é um grande descampado bem no centro comercial da cidade, maior mesmo que um campo de futebol.

Nessa época do banco costumávamos almoçar em algum dos diversos restaurantes que fervilhavam pela cidade. Bem do lado do banco existia uma pastelaria de um chinês que tinha conta conosco – o dinheiro que ele trazia sempre cheirava a fritura – e seguindo pela mesma calçada, após uma loja só de calças Lee, havia uma espécie de cantina muito simpática, bem lá no fundo. No mesmo quarteirão, ao dobrar a esquina, passando bem em frente da Doceira do Vale, encontrávamos um outro restaurante. Toalhas e guardanapos de linho, garçons sempre simpáticos (qual não é?), um ambiente diferenciado, um local para conclusão de grandes acordos comerciais. Mesmo antes de entrar no banco, numa época em que trabalhei com marcas e patentes num escritório de publicidade, já costumava levar meus clientes ali para fechamento de contratos. Em particular lembro-me das saborosas bolinhas de manteiga (feitas por eles próprios) para se comer com um pãozinho antes das refeições. Do prédio só restou a fachada, o resto todo foi vítima de um incêndio há muitos anos. Aliás, no lugar daquela doceira temos agora uma moderna farmácia, e todo o espaço da pastelaria, da loja de jeans e daquele outro restaurante foi tomado pelo novíssimo e brilhante prédio dos correios.

Seguindo pela mesma rua, na esquina oposta a um dos poucos hotéis de luxo da cidade (na época), havia um simpático bar, que, pela sua construção antiga, possuía o piso bem mais alto que o da rua. Ficávamos tomando nossa cervejinha ali do alto, observando os transeuntes e papeando com as moçoilas que ainda iam entrar. O aconchego de suas cadeiras, o confortável formato de seus assentos ainda é uma lembrança nítida. Hoje? Não, nada de bar. Um prédio de uns vinte andares (cuja construção acompanhei dia-a-dia) tomou seu lugar.

Para os fins de semana havia o Cine Palácio, um respeitável cinema bem em frente de uma grande praça – daqueles que possuíam camarote, nos quais crianças e casais adolescentes NÃO podiam subir. Se não me falha a memória o primeiro filme que assisti nesse cinema (com um certo deslumbramento, confesso) foi o do Superman – o primeiro, com o Cristopher Reeve. Por seu tamanho e localização era um local disputado para realização de solenidades, formaturas, etc. Mesmo assim, no final da década de noventa seu prédio passou a abrigar mais uma das franquias da Igreja Universal – e hoje, totalmente despido de telas, cadeiras, mármore, tapetes e todo o resto, nada mais é que um grande estacionamento.

Sei que ando meio saudosista por esses dias, mas, fazer o quê? Esse sou eu. Também sei que a cidade não pára, tem que continuar crescendo, mudando, se modificando. Talvez essa pele da cidade seja como nossa própria pele. Possuímos marcas, cicatrizes, às vezes um hematoma – mas tudo passa: ou saramos, ou nos acostumamos com isso de tal maneira que deixa totalmente de nos incomodar, por mais gritante que seja a marca. Assim é a cidade. Com o tempo nos acostumamos de tal maneira com as mudanças, que sequer lembramos mais como era antes. Mas, no meu caso em particular, acho que é como dizia aquela música, “tudo que morre fica vivo na lembrança; como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça (…)”.

Mas, falando em cemitérios – que mórbido! – já disse mais de uma vez o quanto aprecio genealogia e história, até porque são duas matérias que andam de braços dados. Participo de algumas listas de discussão desse gênero, tenho uma pequena, mas rica (culturalmente falando), biblioteca sobre o assunto e sempre que posso faço o possível para ajudar a guardar a memória histórica de uma cidade. Semana passada, após uma longa espera e algumas negociações, me veio às mãos um livro de registros de uma cidade vizinha. Minha missão voluntária: digitalizar e transcrever o conteúdo de suas páginas, que carregam mais de cento e trinta e cinco anos de história. Pois é, cada louco com sua mania…

Por fim, para não passar totalmente em branco, informo a todos os interessados, curiosos e afins, que FINALMENTE acertei a mão com a bendita antena. Como em casa só tenho sinal da TV aberta, eu precisava ao menos tentar melhorar a recepção da Cultura – último bastião de seriedade cultural no meio de todo o resto. Abaixo temos dois ângulos da arte desta criança grande que vos escreve.

Vôo de Ícaro

Devo confessar que estas duas últimas semanas foram bem conturbadas, tanto na área profissional, quanto na financeira e até mesmo na pessoal. Ou seja, uma bela duma correria!

Nesse meio tempo vimos o falecimento de uma fênix (ou ao menos sua morte por coma induzido) e seu posterior ressurgimento não apenas em um, mas em dois pontos distintos da Net; o Rabecão (vulgo “meu carro”, um Marajó 82) teve que ser sacrificado pelo bem do restante da manada – e mesmo assim ainda foi necessário uma maratona contábil para tentar apenas equilibrar a balança de contas pendentes; o estagiário de minha sala machucou a mão num acidente de moto e os trabalhos pendentes começam a se espalhar pelo chão e cair pela janela; e até mesmo para Brasília tive que ir para participar de uma reunião!

É.

Brasília.

Quem me conhece sabe que sou uma pessoa afeita a rotinas. Bem bicho do mato mesmo. Das cavernas. No melhor estilo “Homens são de Marte e Mulheres são de Vênus”. Nem pro litoral, que fica a pouco mais de uma hora de minha casa, não sou lá muito amigo de ir. Ter que fazer um “bate e volta” de centenas de quilômetros num único dia então, é me provocar ao extremo. Masssss…. manda quem pode e obedece quem tem juízo. E lá fui eu pra Capital.

A amolação já começou na véspera, quando um amigo resolveu que seria muito divertido ficar perguntando: “Então você vai pegar um avião, né? Cumbica que você vai?”. Olhei para o outro lado da mesa, encarei meu amigo Bicarato (vulgo “Bica”) – e com um ar de cumplicidade resolvemos solenemente ignorá-lo…

Enfim, fomos pegar o malfadado avião. A pauta da reunião seria apresentar a adequação do plano de trabalho relativo a uma determinada obra no Município, pelo que fui acompanhar o pessoal da área técnica: dois engenheiros – ele todo animado e falante, ela meio que evasiva ao entrar na aeronave. Perguntei se estava tudo bem, ao que ela me confessou que tinha um certo receio de voar.

Era tudo que eu precisava saber.

Passei os dez minutos seguintes recordando-lhe dos melhores filmes de catástrofe aérea que vi nos últimos vinte anos, com uma certa ênfase até mesmo no recente filme do Superman. Pequenas maldades. Nada como isso para alegrar o dia de uma pessoa…

Mas, falando sério. Se pararmos para analisar com calma, é incrível a capacidade daquele troço sair do chão – e mais, manter-se no ar! Aquele aviãozinho de fim-de-semana, mais parecido com o velho ônibus que faz a linha Centro – Água Soca, com seu design anos setenta, não inspira a menor confiança. Minha companheira de viagem parece ter percebido isso, pois, apesar de estar sentada do lado do corredor, quando da decolagem e das primeiras manobras do avião para acertar a rota, sua pele manifestou maravilhosos tons de verde que eu jamais tinha visto na vida! Incrível!

Bem, pra encurtar um pouco a história, esse foi meu début em Brasília. Sinceramente fiquei meio decepcionado. Aquela coisa grandiosa, gigantesca, monumental que a gente vê na televisão passa a nítida impressão de que a cidade seria uma enorme obra de arte. Ledo engano. Essas construções, na prática, são bem menores quando vistas a olho nu, e ficam praticamente TODAS no mesmo lugar. Esplanada dos Ministérios, Palácio do Planalto, etc, etc, etc – você sai de um, tropeça em outro. Até mesmo a famosa capela no Niemeyer é beeeeem menor do que aparenta. Enfim, fora isso, Brasília é uma cidade como outra qualquer, com seu lado pobre (paupérrimo) e seu lado rico (riquíssimo). E com um custo de vida muito elevado (até agora não me conformo com o valor que paguei no almoço – quatro vezes o usual)!

Logo depois do almoço e um pouco antes da bendita reunião, tive que colocar em prática algo que há tempos já não fazia – preparação para audiência. É mais ou menos assim: todo mundo conversa bastante, fica ciente de todos os pontos controversos da matéria, afina o discurso, discute-se o que deve ou não ser falado, enfim, prepara-se uma estratégia de abordagem; depois começamos a ver o lado pessoal da coisa, ou seja, quem é quem, qual seu humor, seu nível cultural, se poderíamos ser técnicos, se teríamos que usar frases simples e objetivas, e por aí vai. Sei que parece meio esquisito, mas na prática (e profissionalmente falando) acaba sendo divertido.

A reunião no Ministério – graças a Deus – foi relativamente rápida e objetiva, pelo que nos sobrou um tempinho para um pequeno tour antes de pegar o vôo de volta. E, é lógico, com a tendência para catástrofes que habitualmente me acompanha, o que aconteceu? O único táxi disponível, no qual já havíamos até entrado, estava com a bateria arriada. Foi assim que Adauto, de terno e gravata, num belo dia ensolarado, bem em frente do Palácio do Planalto, se viu empurrando um carro pra ver se pegava no tranco.

Já no avião, não sei se meio que contaminado pelos temores de minha companheira de viagem, e no melhor estilo da antiga série Para gostar de Ler, estava eu um tanto quanto receoso. A memória é um negócio esquisito, pois funciona quando quer do jeito que quer. Após quase meia hora taxiando (sempre quis usar essa palavra!), o avião se preparou para decolar. Aquele primeiro instante, misto de solavanco e arrebatamento, quando o bicho sai do chão, sempre me faz lembrar a primeira vez que andei num “Trem-Fantasma” (típico nos parquinhos de antigamente), quando o carrinho acabava de passar pelas primeiras cortinas, entrando no escuro, e dava um tranco para o lado…

Curioso.

Depois de algum tempo no ar, plena noite, a impressão que dava era que havíamos entrado numa estrada de terra, de tanto solavanco que experimentávamos (ainda mais sentados nos últimos bancos). Os tons de verde de minha companheira de viagem voltaram a aparecer e suas unhas já estavam gentilmente arrancando parte do estofamento da poltrona. E eis que surgiu aquela cavernosa voz nos alto-falantes:

– Boa noite. Meu nome é Juvenal, e sou seu piloto nesta viagem. Estamos a dez mil e quinhentos metros de altitude e voando a aproximadamente oitocentos e setenta quilômetros por hora. Apesar da pequena turbulência que causa uma trepidação, se olharem à sua direita, verão a cidade de…

Não pude resistir:

– Olha pra frente Juvenal! OLHA PRA FRENTE!

La soberanía de Cuba debe ser respetada

Recebi hoje um e-mail do amigo Cláudio. Interessante…

Mais de 400 personalidades de todo o mundo, entre eles oito prêmios Nobel, assinaram um manifesto divulgado à imprensa nesta segunda-feira (7/8) no qual exigem que os Estados Unidos respeitem a soberania de Cuba. O texto condena também as crescentes ameaças contra a integridade territorial da ilha.

Entre as personalidades estão os brasileiros Chico Buarque, Frei Betto e Oscar Niemayer, além de nomes como Eduardo Galeano, José Saramago, Ignacio Ramonet, Miguel Bonasso, Rigoberta Menchú, Desmond Tutu, Mario Benedetti e Noam Chomsky.

O documento, intitulado ‘A soberania de Cuba deve ser respeitada’, critica com firmeza a postura de Washington diante do problema de saúde do presidente Fidel Castro, afastado há uma semana do poder para se recuperar de uma cirurgia abdominal.

‘Devemos impedir a todo custo uma nova agressão’, defende o documento, levando em conta a crescente militarização da política externa norte-americana. Ao final, há o endereço de uma página na internet criada especialmente para propagar o manifesto e conquistar mais adesões.

Veja mais em http://www.porcuba.org.

Pimenta e Pipoca

Sabrina e Sara

Como eu já disse antes por aqui, meu pai é o mais velho de doze irmãos. Isso gera algumas situações interessantes, como sobrinhos mais velhos que tias, primas mais novas que netos, etc. Na linha de minha primaiada, as mais novas são as gêmeas, Sara e Sabrina, nove anos de idade e carinhosamente apelidadas por mim de Pimenta e Pipoca.

Por quê? Vou dar um exemplo. Como me autonomeei Genealogista da Família, Guardião de Histórias ou simplesmente Colecionador de Causos, me sinto no dever de compartilhar com o mundo essas curiosidades.

Juntamente com os pais e o casal de irmãos mais velhos, elas moram numa chácara nos arredores da cidade – que já não são tão arredores assim, pois a cidade simplesmente está envolvendo esse pedaço de terra. Num belo dia seu pai as estava procurando pela propriedade.

– Sara! Sabrina! Cadê vocês?

– Oi, pai! – Ouviu-se a voz da Sara, vinda do alto.

E lá em cima, no último galho de uma mangueira, estava encarapitada a menina, toda alegre e orgulhosa por sua façanha.

– Sara, minha filha… Será possível? Desse tamanhinho você já quebrou um braço, uma perna e o braço de novo. E agora está aí em cima! Você não tem juízo, minha filha! Por que você não é comportadinha como a sua irmã, a Bine?

– Mas a Sabrina também tá aqui em cima!

E logo no galho de baixo, saindo do meio da folhagem, aparece a Sabrina, dando um tchauzinho lá pra baixo.

– Oi, pai!

É mais ou menos esse o gênio dessas duas levadas das breca, minhas adoradas priminhas caçulas…

Sara e Sabrina

Virus Genealogicus

E, pra quem não sabe, há anos venho montando a árvore genealógica de nossa família. Já consegui muito material e informação, não só relativo aos parentes atuais, como também dos antepassados. E olha que isso não é pouco, considerando que meu pai é o mais velho de doze irmãos, que meu avô materno se casou três vezes, assim como meu bisavô (também três vezes), sendo que só de um desses casamentos teve dezoito filhos.

Na linha direta dos “Andrade”, por enquanto, consegui rastrear até fins do século XVII, e nas linhas auxiliares já cheguei na Idade Média. Ainda preciso explorar mais o lado da Dona Patroa, pois ela é descendente legítima de verdadeiros samurais da época feudal do Japão – acho que isso explica seu temperamento…

Sim, isso é coisa de doido. É um hobbie que não tem fim. Mas não tem como explicar. A esse respeito, do muito que já li em diversos textos e obras me identifiquei com o posicionamento do Padre Reynato Breves, no artigo Novas Revelações da Genealogia, publicado no Jornal da Cidade, de Barra do Piraí, em sua edição de 12 de setembro de 1998. Diz o seguinte:

Há pessoas que não apreciam ‘Genealogia’, não se interessam por saber quem é seu avô, bisavô ou trisavô; não querem saber de onde vêm, quais são os seus ascendentes. Ora, a Genealogia é a Ciência da nossa racionalidade, da marca indelével das nossas origens; diz de onde viemos, diz quem somos, diz quais são as nossas raízes, mostra-nos a nossa importância. A Genealogia exige paciência, perseverança e intercâmbio, mostra a necessidade da comunicação com outros Genealogistas e causa grandes surpresas e grandes emoções. Enfrenta grandes obstáculos, terríveis barreiras, surpreendentes interrogações. A Genealogia é uma paixão e quem nela entra dela não sai mais. A Genealogia é amor; amor aos antepassados. A Genealogia é gratidão; gratidão aos que nos antecederam nesta vida. A Genealogia é memória imperecível. A Genealogia quase se confunde com a Heráldica. A Genealogia atesta a importância de uma Família. A Genealogia é como o Livro; conserva a memória das gerações passadas contra a tirania do tempo e contra o esquecimento dos homens, que ainda é a maior tirania, e enaltece as gerações hodiernas. A Genealogia move os ânimos e causa grandes efeitos.

Pois é. Ainda voltaremos a falar sobre isso por aqui…

Lembranças sobrepostas

De minha adolescência, uma das figuraças que lembro bem é um sujeito que, em nome da discrição, vamos chamar de “Toni”. Um cara boa pinta, magro, loiro, alto, olhos claros, galanteador e de um bom humor a toda prova.

Das inúmeras situações pelas quais passamos juntos, lembro-me de uma em especial. Estávamos todos sentados, toda a molecada, proseando e conversando com duas amigas. Vamos chamá-las de Ivone e Cláudia. Estava um papo animado, divertido, até que duas motos pararam do outro lado da rua. Num átimo, antes mesmo que pudéssemos perceber, as duas nos deixaram falando sozinhos, atravessaram a rua, e começaram a conversar com os rapazes das motos.

Encaramo-nos uns aos outros com aquela cara de “uééééé…”

Foi quando o Toni disse: “Deixa comigo”.

Entrou na casa dele, que ficava logo atrás de onde estávamos, e uns minutos depois voltou com um enorme galão de gasolina – mas cheio d’água – e começou a jogar o conteúdo na rua, com movimentos largos e espalhafatosos.

– Mas o que é isso, Toni? – foi o que a Ivone, do outro lado da rua e no meio de um riso, perguntou.

– Gasolina! Se as coisas continuarem do jeito que vocês estão, isso aqui vai encher de mulheres!!!

Pois é. Esse era o “Toni”…

Há cerca de uns dois meses e meio ele me ligou, dizendo que precisava conversar comigo sobre um inventário – acho que do pai dele. “Tudo bem, no final de semana estarei na casa de meus pais, aí perto, daí conversaremos” – foi o que eu propus. No domingo seguinte estive na casa de meus pais e, como ele não me procurou, não voltei a pensar no assunto.

Isso até anteontem quando, numa conversa com meu pai, fiquei sabendo. O “Toni” morreu. Há uns dois meses. Mais uma vítima da AIDS.

Pelo que fiquei sabendo, conheceu, transou e resolveu viver com uma mulher soropositiva. Infelizmente tornou-se um portador do vírus, e não teve coquetel que o ajudasse.

Que droga.

Guevara e o bonde da história

Da série INDEFINIÇÕES:
“PREOCUPAÇÃO – Quando pela primeira vez não se consegue dar a segunda.”
“DESESPERO – Quando pela segunda vez não se consegue dar a primeira.”

Anteontem assisti o filme “Diários de motocicleta”. É um filme sobre um tal de Ernesto Guevara. Sim. Ele mesmo.

Confesso que aluguei o filme um tanto quanto receoso. Achei que fosse ver a história de um revoltado, oprimido, lutando pela liberdade de um povo desde muito cedo. Alguém que pegou nas armas desde a mais tenra idade, para, mais tarde, liderar praticamente todo um povo na luta pelos seus direitos.

Ledo engano.

Alguém sabia que o distinto quase foi médico? Que trabalhou num leprosário? Que era asmático? Que era um mulherengo, bem humorado e que praticamente não sabia mentir? Tudo bem que, com certeza, muito do filme tem a chamada “visão do diretor” – de modo que não dá pra simplesmente pegar tudo o que ali consta e já entender como uma versão histórica, onde todos os fatos narrados seriam verídicos. Mas, oras, todas as estórias e lendas acabam por se basear em histórias realmente ocorridas, de modo que o benefício da dúvida não seria algo assim tão desprovido de senso…

O filme é de uma sensibilidade razoável, com um leve toque de humor, uma fotografia original e um questionamento profundo, mas colocado de tal maneira que quase passa desapercebido. Nos mostra um rapaz de apenas 23 anos, vindo de uma situação econômica razoável para sua época (1952), culto e preocupado, que passou por profundas experiências de vida numa viagem de motocicleta com um amigo por toda a extensão da América Latina.

Na verdade, ao final da película, me senti meio estranho. Não necessariamente com relação ao filme, mas comigo mesmo. Uma espécie de coceira nas entranhas do estômago que simplesmente não dá pra se coçar. Um nó na garganta vindo de lugar algum para lugar nenhum.

É que o filme trouxe à tona da realidade emoções muito antigas, que há muito tempo eu não sentia. Todas da minha adolescência.

Uma delas veio forte e urrando por espaço pra se libertar, pra se manifestar. Como diz a música, é da época em que eu ainda era tão criança a ponto de saber tudo. Acho que fui muito mais consciencioso naquela época do que agora, pois eu tinha uma sincera preocupação com o mundo ao meu redor, aquém e além das fronteiras. Hoje pode ser que seja apenas uma nota de rodapé nos livros de história, mas este dinossauro que vos escreve, juntamente com toda uma população, passou pelo sentimento oprimido de receio por uma guerra em escalas globais em decorrência da disputa pelas Malvinas. Ou Falklands, se preferirem. Mal havíamos acabado de sair de um longo período de ditadura militar, numa democracia insossa que ainda procurava se consolidar, mais errando que acertando, onde a Guerra Fria era uma realidade e o arsenal bélico mundial suficiente para detonar meia galáxia.

Com uma guerra praticamente aqui do lado, devidamente alicerçada nas mais loucas e insossas (pelo menos hoje) teorias de conspiração, com um leve toque de fatalidade dado pelas interpretações das profecias de Nostradamus, nós, os adolescentes da época, não tínhamos uma visão – ou esperança – muito clara do futuro.

Acho que desde cedo acabamos ficando muito politizados, aprendendo a analisar o sofrimento do mundo, as desgraças dos povos, encarando a pobreza e desespero de outrem com naturais toques adolescentes de revolta e rebeldia. Queríamos, sim, mudar o mundo, mas tínhamos aquela nítida sensação de que o momento já havia passado, que a geração anterior é que soube ir à luta, e nós éramos apenas passageiros no bonde da história. Nos restava somente viver o presente.

Curioso como ouvi algo muito semelhante a isso de uma pessoa de uma geração posterior à minha e, no caso, se referindo com saudades de uma época em que nunca viveu – aquela pela qual eu passei…

Mas esse lado cabeça, altamente politizado e intelectualizado, foi apenas uma das sensações que resgatei com o filme. A outra, muito mais light, diz respeito ao fato de que os heróis da telinha eram MUITO mulherengos. Passaram por SÉRIOS apuros simplesmente por não concentrar os pensamentos na cabeça certa…

E, na minha saudosa adolescência, também tínhamos lá nossas aventuras… Éramos uma turma de estudantes, com uns treze anos em média, e sem um puto no bolso – quando muito o suficiente para uma farmácia, um Halls e uma entrada na danceteria. A “farmácia” nada mais era do que um copo dos grandes, daqueles de vitamina, cheio até a boca com um pouquinho de todas as bebidas alcoólicas que se possa imaginar que existam num boteco’s-bar. O Halls era a balinha da época para se tirar o bafo (sempre gostei do de cereja)… E a entrada na danceteria (tá bom, discoteca) era tudo o que restou do dinheiro.

Depois de muito pular, suar e se divertir – até porque ninguém sabia dançar de verdade – na hora da música lenta, íamos à luta. Era questão de honra para todos os garotos tirarem ao menos uma garota pra dançar e, óbvio, tinha que rolar no mínimo uns beijinhos. Era o hoje tão conhecido “ficar”, mas que só veio a ter esse nome formal muitos anos mais tarde.

Usávamos avançadas estratégias de aproximação, normalmente envolvendo algum tipo de palhaçada, para atrair não só o interesse, como o bom humor e uma certa predisposição por parte das meninas. Algumas dessas estratégias, impublicáveis…

Então, todo senhor de si, íamos para o meio do salão para dançar coladinho ao som das músicas românticas da época. Alguma conversa aos sussuros ouvido a ouvido pra quebrar o gelo, algum gracejo pra extrair um singelo sorriso e inspirar uma certa confiança, alguns suaves beijos no pescoço, um roçar de lábios no rosto, olhos nos olhos, buscando a aquiescência e aprovação, e, então, um tenro beijo na boca. Mais um pouco de dança, agora em silêncio, e em seguida os lábios de ambos já buscavam diretamente um ao outro, para um beijo mais apaixonado, com uma certa fúria, trazendo à tona toda a excitação e sexualidade da adolescência.

Às vezes ficávamos toda a música lenta com uma única menina; já outras vezes, com mais de uma.

Mas ao final, quando se encerrava a sessão de lentas, invariavelmente cada qual ia para seu lado, juntar-se ao seu grupinho. As garotas, entre risos e sorrisos iam comentar entre si quem era fulano, sicrano ou beltrano, se era legal, se realmente beijava bem, e outros detalhes mais sórdidos… Já nós, os garotos, vestindo nossas peles e brandindo nossos tacapes, nos reuníamos em torno da fogueira para contar como havia sido a caça, cada qual – lógico – tendo se saído melhor que o outro…

Heh… Bons tempos aqueles. A vida era mais simples, as preocupações estavam distantes e o futuro simplesmente não existia…

Mas Guevara, ao que parece, soube o momento em que finalmente teve que colocar de lado sua adolescência e manter o foco em suas aspirações de ajudar o povo. Ainda que por meio das armas.

Já nós, simplesmente continuamos no bonde da vida, olhando pela janelinha as nossas próprias aspirações revolucionárias ficarem pra trás, juntamente com um período que, se não esquecido, ao menos guardado com carinho num cantinho das catacumbas d’alma…

Tirinha do dia:
Desventuras de Hugo...