Acabou!

Marco Aurélio

No começo, ficou todo mundo meio sem acreditar. Parecia um sonho. Depois de tanto tempo fechados em casa, finalmente chegava o final da quarentena.

— Acabou! — gritou um na rua. Outro, outro. Uma senhora da janela. — Acabou!

A humanidade podia enfim respirar. Melhor: respirar sem uma máscara na cara. A vacina demorou, mas saiu. Meses depois, o primeiro antiviral eficaz contra o novo coronavírus. Com uma esforço tremendo de governos, corporações e indivíduos de todo o globo, a doença foi erradicada do planeta.

Quando saiu a notícia, todos ficaram desconfiados. Ninguém sabia mais como sair à rua, como respirar sem duas camadas de algodão separando o rosto da atmosfera. Aos poucos foram saindo. Um, outro, outro. Acabou! Nas ruas e calçadas, começou um movimento espontâneo: pessoas jogavam suas máscaras de todos os tamanhos e formatos, com todas as estampas, despejavam álcool gel sobre elas e acendiam o fogo. Nunca mais isso.

— Vou ficar três meses sem lavar a mão!  —  disse um.

— Eu não preciso mais dar banho nas minhas compras!  —  se deu conta uma moça, maravilhada.

E a alegria quando se deram conta de que era possível novamente tocar outras pessoas? Estranhos se abraçavam e beijavam na rua. Divórcios de quarentena se desfaziam, reconstruindo casamentos. Casais de namorados separados pela pandemia tiravam o atraso de meses de desejo represado.

Foram duas semanas de glória e esperança no futuro da humanidade. A vida seria melhor, mais leve, mais solidária. Velhos rancores se amainaram. Armistícios foram declarados. Dívidas, perdoadas. O otimismo geral refletiu no mercado financeiro. Havia no ar uma promessa de prosperidade inédita na história humana.

E aí veio o asteroide.

Rúbrica

Na coluna “Dicas de Português”, publicada hoje no “Correio Braziliense”, a Professora Dad Squarisi cita um erro de português que a incomoda: a pronúncia da palavra rubrica como proparoxítona. Fez-me lembrar de um fato ocorrido na década de 1960, numa determinada unidade do exército no Rio de Janeiro, onde eu atuava como oficial intendente. Elaborei um ofício a determinado órgão requisitando material para o nosso almoxarifado, com o registro da rubrica em que o produto se enquadrava. O documento, levado ao major fiscal administrativo para assinatura, foi devolvido para que se colocasse acento agudo no “u” da palavra rubrica. Peguei um dicionário da língua portuguesa do Hildebrando de Lima e fui até o oficial para mostrar-lhe que não cabia o acento recomendado. A resposta foi mais ou menos nos seguintes termos: “Aprenda, Tenente Carrano, que no exército quem manda é o seu superior, e não um dicionarista qualquer. Coloque o acento, como recomendei”. Daí se pode entender, depois da exoneração de dois ministros da saúde que quiseram seguir uns cientistas quaisquer, o motivo de o Jair Messias ter colocado um militar à frente do Ministério da Saúde.

Pedro Carrano, 77 anos, Genealogista

Cavaleiros do Apocalipse

Nelson Moraes

Os quatro cavaleiros do Apocalipse entram num bar.

– Sabe – diz a Morte, recostando-se ao balcão e pedindo aquela que matou o guarda – , acho que cansei.

– Cansou do quê? – pergunta a Guerra, pedindo um Silver Bullet. – Eu, que não tenho um minuto de paz, é que já devia pendurar as chuteiras.

– Muito engraçado vocês falarem isso – diz a Fome, jogando o cardápio longe porque nele só tem bebida. – Dou expediente integral nos quatro cantos do mundo e nunca foi cogitada sequer uma licença remunerada.

– Ai, que lindo – fala a Peste, pedindo uma Corona. – As três divas agora resolveram entrar em crise existencial conjunta? O que falta mais, assinar uma nota de repúdio?

– Você só fala isso – replica a Guerra – porque não trabalha igual a gente. E só aparece de tempos em tempos. Expediente de freelancer é outra história.

– É mesmo? – a Peste volta a dizer, acentuando o sarcasmo e virando a long neck.– Pois vocês reclamam de barriga cheia (inclusive você, Fome, sua poser). Não veem o drama que é ser freelancer, e viver sempre por conta própria.

– Como assim? – pergunta a Guerra.

– Simples – a Peste responde. – Vocês todas têm quem banque vocês, queridas. Onde vocês aparecerem sempre haverá alguém respondendo pelo feito. Guerra? Não falta quem assuma a responsabilidade. Fome? É só olhar os embargos internacionais ou governantes corruptos que desviam os recursos alimentares. Morte? Potencialmente cada habitante da Terra é um assassino. Agora pra Peste não tem refresco (falar nisso, desce outra Corona). Nunca aparece um responsável por ela. Quando ela surge é sempre subestimada, tratada como detalhe ínfimo, uma doencinha, ninguém liga a mínima, e quem registra a presença dela ainda é tachado de alarmista. Mas basta ela crescer e se mostrar em toda a sua pujança pra todo mundo imediatamente começar a tirar o corpo fora: ninguém tem culpa, as autoridades teoricamente competentes lavam as mãos (sem duplo sentido, por favor), acusações são trocadas por todos os lados mas ninguém assume o estrago. No final ela sai pela porta dos fundos, como a única vilã, e a Humanidade respira aliviada, como se não houvesse tido o menor envolvimento no acontecido. A Peste fica como uma fatalidade intercorrente na História, tipo um terremoto ou tsunami, ponto. – Aí a Peste seca outra long neck. – E aí?

– É – diz a Fome. – É mesmo de perder o apetite.

– Sim – confirma a Guerra. – Viver desse jeito é uma batalha.

– É de matar, mesmo – fala a Morte. – Não tem nada pior que isso.

– Tem sim – fala a Peste, já ligeiramente bêbada.

– O quê? – dizem todas.

– Aguentar esses trocadilhos óbvios de vocês.

As outras três se entreolham, trocando um “iiiiiiiiiiiiih” imaginário e lembrando que quanto mais bêbada mais rabugenta a Peste fica. Depois de um curto silêncio – e da Peste pedir a quarta long neck – a Morte vai à jukebox e coloca It’s the End of The World as We Know It, do R.E.M., pra ver se anima a colega.

– E tem mais – estende-se a Peste, já com a voz pastosa. – Se somos as quatro do gênero feminino, o nome não tinha que ser as quatro amazonas do Apocalipse?!?

É a deixa pra Morte arrastar a Fome e a Guerra pra mesa de sinuca.

Brasil, entre o soco e o grito

Marcelo Dias

Eu não sou gamer. Gosto de jogar videogame de vez em quando. É divertido, porque nos jogos você resolve tudo na estupidez. Tem que resgatar a rainha presa em uma torre? É só enfiar a espada em todo mundo. Na vida real eu partiria para um papinho. “Bora lá tomar uma breja e ver se rola um acerto?” É menos emocionante, eu sei. Mas dói menos.

O Brasil parece que virou um videogame multiplayer gigante, onde a única solução é explodir tudo e todos até acabar com o outro time. Como videogame poderia ser divertido. Mas trata-se da vida real, então a questão não é ser divertido. Não importa quem ganhe, na vida real o time perdedor continua no jogo. Perdedores e vencedores têm que conviver. Dureza.

Eu daria um reset no Brasil, se fosse possível. Ou devolveria para os índios com um bilhetinho bacana de desculpas. Não sei se eles aceitariam. “Tá fora da garantia”, diria um cacique. Talvez o jeito seja dividir o país em dois. Uma parte para Bolsonaristas ferrenhos e outra para Lulistas convictos. Seja lá quem for ficar com o litoral, eu tô com eles. Tenho minhas convicções políticas. E troco tudo por uma praia com caipirinha.

Só que não dá para dividir o país. Nem continuar em clima de guerra. Talvez a solução seja aquela que eu citei no começo. Bora tomar uma breja?

Eu sei, não tem muita graça dizer isso, mas a solução é ter mais diálogo, sim. Antes, é bom esclarecer: “diálogo” envolve duas ou mais pessoas que falam e ESCUTAM. Duas ou mais pessoas discursando sem dar a mínima para o outro não é diálogo. É sobreposição de monólogos. E, pelo visto, quem anda por aí pedindo mais diálogo não quer diálogo coisíssima nenhuma. Quer mais espaço para falar.

Bolsonaro já disse que está “aberto ao diálogo”. E a gente sabe que Bolsonaro está para a palavra “diálogo” como Alexandre Frota está para “romantismo”. A direita prefere bater, porque bater é uma espécie de monólogo com punhos. E não pense que a oposição está melhor. A esquerda também pede diálogo, só que prefere gritar. Tanto que adora uma manifestação. Manifestação é um monólogo com megafones: fala-se alto para não dar chance de resposta.

O diálogo que todos dizem querer está perdido em algum lugar no meio, entre o soco e o grito. E isso não quer dizer que a solução seja o “centrão”. Porque o centrão não é partido, não é nada. É um balcão de mercearia.

Por isso, talvez valesse a pena aprender com o filósofo Sócrates a como estabelecer um diálogo. Ele costumava parar pessoas na rua para travar debates nos quais disparava várias perguntas. E nessa troca de ideias ele construía um raciocínio. Muitas vezes ele esmigalhava os argumentos do outro. Perceba: antes ele os ouvia. Mais do que cuspir certezas, ele fazia perguntas. Você pode até achar isso meio besta, mas não se esqueça de que ele ainda é considerado um dos maiores filósofos gregos. Respeita o cara.

Por aqui, a regra do jogo é “ninguém ouve ninguém”. É uma bela porcaria de regra que empata tudo. Quando se discutiu a redução da maioridade penal, por exemplo, ficamos encurralados entre “reduzir a maioridade” ou “deixar tudo como está”. Em termos de criminalidade, nenhuma das duas ideias resolve absolutamente nada. No mundo existe uma penca de soluções que ficam entre essas duas opções. Alguém quis estudá-las para discutir o tema? Não muito. Saiu todo mundo berrando e batendo para ver quem vencia na marra. Parece medieval. E é mesmo. É o oposto do que Sócrates faria.

Você pode continuar achando que o outro lado é ignorante, burro, comunista, fascista, tosco e “ai que ódio dessa gente”. Sem ouvir o que eles têm a dizer a coisa não anda. Não custa tentar. Quer mais diálogo? Ótimo. Mas OUÇA MAIS ALTO. Nem que seja para esmigalhar melhor os argumentos.

Bolsonaro é o troll que você alimentou

Edson Aran

O problema do cerumano é que ele alimenta os trolls. Todo mundo sabe que não se deve dar comida para a criatura horrenda, mas há certa dificuldade em identificá-la com segurança. De vez em quando, o troll se disfarça de hobbit ou de elfo e se apresenta apenas como alguém preocupado com o país, o mundo e a sociedade. É picaretagem. Basta você engatar uma conversa, que o bicho parte pra cima com memes, gifs e piadas ruins.

O humor do troll é bastante peculiar. Ele nunca usa a ironia e prefere sempre o sarcasmo. Ironia é escrever uma coisa para dizer outra. Sarcasmo é menosprezar o argumento e também o argumentador.

Ironia é florete, sarcasmo é porrete. Ironia é duelo, sarcasmo é tiroteio. Ironia é o Muhammad Ali dançando, sarcasmo é o Rodrigo Minotauro espacando.

Discutir com troll é garantia de virar alvo de tiro, porrada e bomba. Mas esse nem é o problema. O problema é quando esses monstros saem da virtualidade e entram na realidade. Antigamente, eles só causavam irritação nas redes sociais. Agora não. Agora eles vão pra Brasília atacar jornalistas, fazem dancinha com caixão na avenida Paulista e, pior, vencem eleições.

Donald Trump é o exemplo mais notável dessa raça odiosa. Ele é o Master Troll, o King Troll, o Poderoso Troll. Trump é tosco, vulgar e ignorante. Ele é um comentário de Facebook que ganhou vida. Olhe bem para ele. Trump é um avatar humano desenhado no CorelDRAW. A pele é falsa e alaranjada e o cabelo é igual ao daquele brinquedo dos anos 80, o Duende da Sorte. É tudo falso. Trump nem é gente e, por isso, a trollagem é seu único programa de governo. Se a gente não vivesse numa aldeia global interligada digitalmente, isso seria um problema só dos Estados Unidos, mas infelizmente não é mais assim. O americano tosco inspira vários trolls periféricos como Jair Bolsonaro, por exemplo, que é um Trump do Terceiro Mundo, feito com peças de segunda mão e material vagabundo. É um troll ainda mais patético, mais vulgar e mais grotesco que o original, que já é um horror.

Aqui e lá, a campanha eleitoral das criaturas foi na base da trollagem. Era só fake news, palavrão, xingamento, óculos de pixel e muita esculhambação. Tudo linguagem de troll transposta para a arena política.

Mas quem foi que alimentou e engordou os monstrengos? Foi ocê, dona. Desculpa a sinceridade. Foi a senhora.

A esquerda ficou chata, rancorosa e pentelha. E é isso que alimenta o troll. Pra falar a verdade, nem dá pra chamar esses chatonildos de “esquerda”. A divisão esquerda-direita faz sentido na economia, onde o papel do estado define uma posição. Mas é complicado usar a mesma régua para medir a chateação pseudo-sociológica do, argh, politicamente correto, que é autoritário, carola e antidemocrático igualzinho à velha direita.

A esquerda (ou a “esquerda”) virou uma espécie de síndica de condomínio que passa o dia inteiro inventando regrinhas e regulamentos. Não pode falar isso, não pode falar aquilo, não pode usar essa palavra, não pode mencionar essa expressão, não pode tirar sarro do vizinho, não pode frequentar a piscina com esse biquíni indecente e não pode ouvir funk ostentação.

Isso tudo é alimento de troll, dona “esquerda”. O esculacho conquista seguidores, rende audiência e também dá votos. E esculachar gente chata sempre foi a maior diversão do ser humano.

Eu sou do tempo da esquerda festiva, que bebia até resolver todos os problemas do mundo enquanto contava piadas péssimas e cantava todas as mulheres da mesa. “Que comportamento desprezível!”, a senhora diz. Então tá. Talvez fosse. Só que depois a gente ia pra urna e ganhava a eleição. A “esquerda” fiscal-de-condomínio vai pra urna e perde. Tomou, papuda?

A gente precisa voltar a beber e contar piadas ruins. A gente precisa parar de alimentar os trolls. A gente precisa é voltar a trollar os trolls.