Brasil de 17 de abril de 2020: meu diário

Eliane Brum

Acordei hoje com um peso no peito, maior do que o habitual nestes dias. Essa pandemia é como o colapso climático. É tão grande que o nosso cérebro não abarca de uma vez. Mas a cada dia entendemos um pouco mais do que vivemos. E há alguns dias em que a lucidez nos invade como um excesso. No meu livro (Brasil Construtor de Ruínas) relacionei com a morte de alguém que amamos. No primeiro momento, quando acontece, o horror nos invade. E então nosso cérebro imediatamente vai acionando mecanismos para nos fazer viver apesar do horror. E então conseguimos converter o horror em luto e mais tarde superar o luto. Como todos os seres vivos, assim como esse vírus que se reproduz em nós, queremos viver.

Carregando dentro de mim um peso muito maior do que o meu, olhei no calendário para checar que dia era hoje: 17 de abril de 2020. Dezessete de abril sempre será um dia terrível para mim, e acho que isso já está incrustado no meu inconsciente. Acredito que foi um dia terrível para muitos de vocês. Foi o dia em que a Câmara votou o impeachment de Dilma Rousseff. Quem me acompanha sabe o quanto fui – e sou – crítica ao governo de Dilma. Foi um mau governo, em especial para os povos da Amazônia, Cerrado e outros biomas. E se é ruim para estes povo, é ruim para o Brasil. E também para o mundo em emergência climática. Quem me acompanha sabe também o quanto denunciei que o impeachment não tinha base legal, que era um abuso e um desrespeito ao voto e portanto à democracia. Mas não foi este o horror daquele momento.

O horror foi ver as vísceras daqueles deputados, a sua burrice, a sua pequenez, o que aquele amontoado de homens, em sua maioria, revelava sobre quem os havia carregado com seu voto ao parlamento, porque não tinham chegado lá apenas com suas pernas. A maioria deles era asqueroso, era difícil até mesmo escutar seus votos porque só a sua boçalidade era maior do que a sua burrice. E isso, independentemente de ser a favor ou contra o impeachment, os brasileiros que ainda são capazes de enxergar, naquele 17 de abril enxergaram.

Ainda não sabíamos, mas aquele também foi o dia do lançamento da campanha presidencial de Jair Bolsonaro. Ao votar pelo impeachment de Dilma homenageando o mais notório torturador e assassino da ditadura e não ser punido pelo crime de apologia à tortura, ele se tornou presidenciável. Ao votar homenageando o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um homem capaz de torturar até crianças pequenas, e não ser punido, descobriu que podia tudo. Como Bolsonaro declarou então, sempre orgulhoso de sua violência, “Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Dilma então foi torturada mais uma vez, agora no parlamento. E Bolsonaro começou a se tornar o pavor do Brasil.

E aqui estamos nós, quatro anos depois, com o vilão número um do mundo em pandemia na presidência. Um personagem real que nem o cinema-catástrofe de Hollywood foi capaz de imaginar, um antipresidente, um político profissional mandando a população para a rua, tocando nas pessoas, fazendo selfies, disseminando achismos e mentiras em meio à maior ameaça sanitária global em um século.

E aqui estamos nós, com o ministro de Saúde que enfrentou sua perversidade demitido, com um perverso no poder, com um maníaco, levado até lá pelo voto de milhões de brasileiros que hoje, pelas ações criminosas daquele que ousaram eleger, também podem morrer.

Estamos numa pandemia e temos um homem cuja maior realização foi planejar colocar bombas nos quartéis para pressionar por aumento salarial. Que país torto, que justiça nojenta, que instituições covardes tornaram possível um armador de bombas chegar à presidência. Bolsonaro pode matar muita gente, já está matando. Descobriu que seus dedos que fazem arminha, como um moleque de cinco anos, ao pegar a caneta, matam mais do que bala. E aqui estamos nós. Não adianta pensar positivo, vai ser preciso lutar para viver e fazer viver, porque o perverso que está no poder não tem limites.

Espero que um dia Bolsonaro responda pelos seus crimes no Tribunal Penal Internacional. Mas então muitos de nós já estaremos mortos.

Reproduzo aqui um trecho do capítulo do meu livro que conta do 17 de abril de 2016. Foi escrevendo este capítulo que também consegui dar nome ao livro:

O 17 de abril de 2016 tornou explícito que o Brasil não vivia apenas uma crise política e uma crise econômica. Vivia também uma crise de identidade e uma crise de palavra. De ética e de estética. Os holofotes lançados sobre a Câmara dos Deputados, em transmissão ao vivo pela TV, iluminaram o horror. E iluminaram o horror mesmo para aqueles que torciam pela aprovação da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. A imagem era grotesca. E a imagem era nossa.

Quem já perdeu alguém que ama sabe que existe um momento em que todas as proteções caem e enxergamos o horror absoluto da morte. Aquilo que não vira palavra. Ninguém consegue viver com esse excesso de lucidez. Mesmo que seja por um instante, ele já deixa uma marca inapagável. De imediato nosso cérebro aciona mecanismos que nos protegem. E dali em diante sabemos que o monstro respira dentro de nossos corpos. Fingimos que ele não está ali. Mas o gosto do seu hálito não sai de nós.

Para mim, assistir à sessão de votação da abertura do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados foi um momento comparável a esse. Não me é possível escrever sobre esse rasgo no espaço/tempo sem tornar essa narrativa mais pessoal. Pelo que vi e ouvi depois, ela foi pessoalíssima para muitos brasileiros. Não que qualquer outro acontecimento importante não seja, mas algo aconteceu ali.

Eu estava no estádio no famoso 7×1 da Copa de 2014. E não vi trauma. Apenas perplexidade. Era como o anúncio de algo que já se sabia. E que finalmente se confirmava. A vida seguia. Aqueles jogadores não eram nós. Há muito aquela seleção não era nossa. O que aquele futebol revelava era justamente que era nosso porque não era nosso.

O 7×1 foi vivido no 17 de abril de 2016, ao assistir pela TV os deputados com as tripas de fora. E balançando-as com orgulho. Defecando literalmente pela boca. E sem capacidade cognitiva para compreender que era merda que suas cordas vocais despejavam sobre o país. Por mais que eu acompanhasse os fatos e conhecesse o Congresso, assistir ao espetáculo da realidade era ser sujeitado ao absoluto do horror. Como no filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, obrigados a seguir olhando. Sem piscar.

O horror só diz do que não podemos dizer. Fechei as cortinas. Me escondi dentro de casa. Literalmente. Sentia uma vergonha profunda. Uma vergonha que era minha e que não era minha. Passei vários dias revendo os filmes de Glauber Rocha e revisitando o Tropicalismo. Precisava reencontrar as palavras naqueles que tentaram nomear o Brasil. Nos movimentos que buscaram inventar um país, naqueles momentos em que quase fomos. E então ruínas, de novo construímos ruínas. Como interpretou A tragédia e a comédia latino-americana, peça de Felipe Hirsch e do coletivo Ultralíricos que, para mim, é a que melhor expressa esse momento. O Brasil é um grande construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais.

Naqueles dias, só me senti próxima de mim quando assisti à Terra em Transe. Em transe a terra também era eu.

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