Eberth Vêncio
27/12/2020
— Alô?
— Boa noite, senhor.
— Boa.
— O senhor teria alguns minutinhos para podermos estar conversando a respeito da Palavra do Senhor?
— Minha palavra? Como assim? Quem é que está falando? Você é do fisco?
— (risos) O senhor não entendeu. Meu nome é Sara. Represento a Igreja do Quadrangular Final do Campeonato Ecumênico da Fé Cega e da Faca Amolada. Será que podemos estar conversando um pouquinho a respeito da Palavra?
— Palavra de honra. Agora, não vai dar. Estou ocupado.
— Mas, vai ser rapidinho, senhor.
— Quem te passou o meu número, criatura?
— Foi o pessoal da administração. Na verdade, cada obreira recebeu uma lista contendo cem números para a gente poder estar ligando, aleatoriamente.
— Por que vocês metem gerúndio em tudo quanto é verbo? É isso o que eu não entendo.
— Desculpe, senhor. Ainda não li o Gerúndio. No momento, estou estudando o Levítico, com o meu grupo de jejum e oração.
— Ô vontade de comer um cu, viu…
— Como?
— Como, sim. Moça, já é tarde da noite, o que você quer de mim?
— Queria poder estar conversando com o senhor a respeito do evangelho.
— Como é mesmo o seu nome, menina?
— Sara. Meu nome é Sara. Sara Whisper.
— É um belo nome, Sara Whisper. Não me leve a mal, mas, no momento estou fazendo justiça com as próprias mãos, o popular cinco-contra-um, se é que me entende; então, não consigo falar com você nesse instante. Homem é diferente de mulher, entenda, não conseguimos fazer duas coisas ao mesmo tempo.
— Só vai levar um minutinho. Eu prometo. Qual é mesmo o nome do senhor?
— Deus do céu…
— Deus do céu?!
— Isso é força de expressão, minha filha. Estou apenas resmungando. Não foi você mesma quem me ligou? Como é que você telefona para uma pessoa, à essa hora da noite, sem sequer saber o nome dela?
— Sinto muito, senhor. Na lista que me passaram só constam os números. Não têm os nomes das pessoas. O pastor me disse que não fazia muita diferença, desde que ligássemos com fé para todo mundo, antes do final da quaresma.
— Isso é ridículo.
— A culpa não é da gente. Missão dada à obreira é missão cumprida.
— Essa história tá ficando comprida. Preciso desligar, Sara Whisper. Estou quase ejaculando.
— O senhor poderia estar me informando o seu nome?
— (silêncio)
— Alô? O senhor ainda está aí?
— Judas. O meu nome é Judas Iscariotes da Silva.
— Caramba! Posso estar chamando o senhor de Sr. Silva? Judas me dá calafrios, um troço ruim por dentro…
— Que seja.
— Qual a religião do senhor, Sr. Silva?
— Música.
— Não entendi.
— Música. Minha religião é a música, Sara Whisper.
— Música sacra? Cantos gregorianos? Gospel?
— Nada disso. Eu sigo uma doutrina mais politeísta, se é que me entende.
— Politeísta?
— Sim. Isso mesmo. Eu venero os deuses do rock. Algo bem profano. Tipo, Elvis. Chuck Berry. Hendrix. Lennon & McCartney. Raul Seixas. Vocês tocam Raul na sua igreja, certo?
— Receio que não, senhor.
— Toquem Raul, minha filha. Toquem Raul. Vocês não vão se arrepender.
— O senhor é casado?
— Isso é um convite, Sarinha?
— O senhor entendeu errado.
— Não. Não sou mais casado. Matei a minha mulher faz uns vinte anos.
— O senhor matou a sua mulher? Jesus!
— Silva. Pode me chamar de Silva. Nessa época eu era muito jovem, trabalhava para traficantes, estava com a cabeça a mil…
— Traficantes?
— Matei ela com um sossega-leoa. Tentei me desfazer do cadáver, mas, deu ruim. Fui preso antes de jogar o corpo no Rio do Choro.
— Sangue do cordeiro!
— Peguei pena máxima, mas, acabei puxando só oito anos, por causa do bom comportamento, da progressão de pena, artimanhas da justiça, sabe como é…
— O senhor matou outro ser humano? Pelas chagas do messias!
— Matei, mas, isso já é coisa do passado.
— Meu Deus! Um assassino na linha…
— Se preferir, podemos encerrar a conversa aqui. Por mim, tudo bem.
— De jeito nenhum. Minha missão é prosseguir até o fim, com fé no Altíssimo.
— Parece insensato.
— Qual a profissão do senhor?
— Escritor.
— Como assim?
— Escritor. Eu escrevo histórias.
— Eu nem sabia que existia a profissão de escritor. Pensei que vocês escrevessem nas horas vagas, só para se divertir, para desanuviar a mente…
— Escrever é meio parecido com trabalhar numa operadora de telemarketing, sabe? Há que se ter perseverança. Vai que, um dia, a coisa toda cola e alguém acaba lendo.
— Entendo. Qual o estilo do senhor?
— Escrevo roteiros para filmes.
— Uau! Que máximo!
— Pois é. Vidão mesmo…
— Para que tipo de filmes o senhor escreve os seus roteiros?
— Filmes pornográficos.
— Desculpe. Não entendi.
— Filmes de sacanagem. Eu escrevo roteiros para filmes nos quais os atores tiram a roupa e fazendo sexo por dinheiro.
— Meu Deus! O senhor deve estar me tirando…
— No fundo, eu queria poder estar te incluindo, Sara Whisper, mas, o meu gerundismo é péssimo. Eu nunca mentiria para uma missionária que me ligasse numa noite de sábado para conversar sobre assuntos eclesiásticos.
— Não sei se Deus aprovaria esse tipo de atividade, Sr. Silva.
— Também não aprovo muitas coisas que ele faz. Ouça: eu ganho muito bem para escrever picardias. Não é preciso ser nenhum Paulo Coelho, se é que me entende. Preciso de todo dinheiro que puder ganhar até conseguir me livrar desse vício em punheta.
— Heim?
— (risos) Tô brincando, Sara Whisper.
— O senhor usar drogas, senhor?
— Sim. Uso. Socialmente. Não sou um viciado.
— Graças a Deus.
— Pois é. Deus é bom, mas, hidroxi-cloroquina… Hummm… Nem te conto.
— O senhor é usuário de hidroxi-cloroquina?
— Sim. Começou como uma gripezinha, daí, foi evoluindo. Mas, consigo me controlar bem. Hoje em dia, só uso quando preciso transar com outros homens.
— Transar com outros homens? Como assim? O senhor é homossexual?
— Sim. Um pouco. Não. Quer dizer, mais ou menos. Só faço esse tipo de coisa quando a grana encurta. Eu gosto mesmo é de mulher.
— Só Jesus na causa…
— Aliás, eu me amarro em obreiras quadrangulares. Fico doido quando elas me amarram.
— Valha-me, Santíssimo!
— Pois é.
— Isso é muito vulgar, senhor.
— Vulvar?
— Vulgar. Eu disse “vulgar”. O senhor deve ter sérios problemas psicológicos.
— Era o que eu pensava.
— Isso não pode ser normal.
— Pois é.
— Tantos pecados numa só pessoa. Que horror.
— Estou abrindo o meu coração para você, minha cara. Sempre digo a verdade quando estou bêbado.
— Ainda por cima, o senhor bebe?
— Comeria, se fosse sólido.
— Pelos pregos da cruz!
— O ser humano é estranho, Sara.
— Preciso desligar, Sr. Silva.
— Demorou. Nunca tinha me confidenciado com uma operadora de telemarketing. Você está fazendo um trabalho e tanto, Sara Whisper.
— Isso não é um negócio, senhor. Isso é missão de fé. Não ganho nada pra fazer o que eu faço.
— Trabalha de graça para a igreja? Deixa de ser boba.
— Já falei pro senhor que não considero isso um trabalho. É gratificante compartilhar o evangelho. Pelo menos, era, até eu falar com senhor esta noite. Estou chocada.
— Não a culpo por isso. Eu também não ligaria pra mim, numa noite de sábado, para tentar uma conversão.
— O senhor está doente, Sr. Silva.
— Essa nossa conversa vai virar um texto.
— Não autorizo. O senhor deveria procurar um médico.
— Não confio em médicos.
— Credo e cruz! O senhor me dá nojo.
— Pagam cinquentinha por uma boa história.
— Vá se tratar, homem.
— Me passa o seu telefone, Sara Whisper.
— Adeus, senhor.
— Foi um prazer falar contigo. Me liga amanhã, na Hora do Fantástico.
— Vai pro inferno!