A renúncia do herdeiro no inventário

Erica Platina

Renúncia, por definição semântica, é o direito de abandonar algo que se detém a titularidade, sem o transferir a terceiro. É abrir mão, deixar ir, sem motivo ou sem ter que justificar o motivo do abandono.

No Direito, a Renúncia não é diferente, mas carrega suas peculiaridades.

Os motivos que levam um herdeiro a renunciar à sua herança ou à sua cota parte de uma herança não precisam ser explicitados ou justificados, permanecendo, dessa forma, restritos à sua privacidade e esfera particular e íntima, resguardados seus direitos de não justificação.

Trata-se de direito potestativo, não podendo ser questionado pelos demais herdeiros ou condôminos do espólio, nem podendo ser exigida sua justificação para tornar-se efetiva. É um ato de liberalidade que consagra a autonomia da vontade e a busca pela auto determinação.

Entretanto, apesar de poder manter seus motivos ocultos, o ato de Renúncia deve ser aberto, público e cumprindo exigências e determinações dos dispositivos legais que disciplinam o assunto.

A Renúncia à herança no inventário, tema do presente artigo, é disciplinada pelo Código Civil nos artigos 1.804 à 1.813, onde também estão disciplinadas as regras da aceitação da herança. Temas complementares e intrinsecamente ligados, sendo que a existência de um, torna inviável a existência do outro. O ato de renúncia, bem como o ato de aceitação da herança são irrevogáveis (art. 1.812, CC).

Para que a renúncia seja válida, deve obedecer à um ato solene que requer especial formalidade: por escritura pública de declaração de vontade ou termo judicial nos autos do inventário.

Diferentemente da aceitação, que pode se dar por diferentes vias, a saber:

· aceitação expressa – apenas escrita, sem formalidade e sem a necessidade de escritura pública;

· aceitação tácita – pode ocorrer via procuração ou ainda quando no processo de inventário, o herdeiro aceita o cargo de inventariante;

· aceitação presumida – questionado sobre a renúncia e não respondendo de forma alguma, presume-se a aceitação; como não responder a uma citação, por exemplo, implica em aceitação presumida.

A renúncia, por força legal, nunca será ato presumido. Apesar de ser um ato unilateral, simples e gratuito, precisa ser expresso de forma solene. Dessa forma, como ato que traz impacto significativo ao direito à sucessão, a renúncia só será efetiva se realizada por pessoa capaz.

Quanto aos descendentes, importante salientar que o renunciante não terá direito à representação, ou seja, seus herdeiros por ordem de sucessão legítima não são chamados à representação perante o espólio. A cota parte renunciada ou a totalidade do espólio acresce à dos outros herdeiros da mesma classe (que herdariam juntamente como o renunciante) e, sendo o renunciante o único da classe, passa-se à classe subsequente.

A renúncia pode se dar de duas maneiras:

· Renúncia abdicativa – onde o renunciante abre mão da parte que lhe cabe na herança, na sua totalidade, por ato volitivo e sem escolher o destino do que abre mão.

· Renúncia translativa – a vontade do renunciante não é abrir mão da parte que lhe cabe da herança, mas destiná-la a outro herdeiro. Essa destinação pode se dar de forma gratuita (característica de doação) ou onerosa (característica de venda).

Do exposto, pode-se concluir que a renúncia abdicativa tem que ter o mesmo efeito prático da cessão gratuita de direitos hereditários.

Como efeitos da renúncia abdicativa, a primordial é seu efeito ‘ex tunc’, retroagindo à abertura da sucessão, ou seja, seus efeitos são válidos desde a data do óbito do de cujus. De forma prática, é como se o herdeiro renunciante nunca tivesse existido no processo de sucessão, nunca tivesse sido considerado a herdar parte alguma, todo o chamamento à sucessão não o considera e toda a partilha não o leva em consideração.

Questão intrigante quanto à renúncia é a situação fática de um herdeiro renunciante ter a mãe, viúva meeira, e o irmão vivos e ambos com direitos sucessórios preservados. Nesse caso, há correntes distintas quanto a destinação da cota renunciada. A cota parte da renúncia iria diretamente ao irmão (herdeiro da mesma classe)? Ou seria dividida entre a mãe e o irmão? A doutrina majoritária em harmonia com o Enunciado 575 da Jornada de Direito Civil, ensinam que nesse caso específico, a cota parte renunciada por um dos irmãos, deve voltar ao monte mor. Sendo o monte mor acrescido com a cota parte renunciada, o monte partilhável entre mãe e o outro irmão seriam acrescidos de forma equivalente.

O instituto da renúncia, prevendo as inúmeras possibilidades que seu uso impactaria no direito das sucessões, apresenta no artigo 1.813 do Código Civil, a proteção contra fraude à credores, postulando que: “Quando o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando à herança, poderão eles, com autorização do juiz, aceitá-la em nome do renunciante”.

Mesmo sendo um instituto irrevogável, a renúncia poderá ser anulada quando comprovada a tentativa de fraude à credores, ou ainda, sua constituição for baseada em dolo ou coação.

A possibilidade de renúncia abre muitas possibilidades de organização patrimonial e sucessória e se constitui em ferramenta importante na tomada de decisão no momento de discussão da futura partilha, ainda mais pelo fato de que a renúncia precisa ser o primeiro ato do processo de sucessão, pois qualquer ação do herdeiro pode implicar em sua aceitação tácita; a simples assinatura de procuração ao advogado no processo de inventário caracteriza a aceitação tácita e inviabiliza a renúncia.

A renúncia de uma classe toda pode alterar como a herança será partilhada para a classe seguinte, exemplificando, se os dois filhos do de cujus renunciam à herança e cada filho tem, respectivamente, 1 e 2 filhos, a herança após a renúncia será partilhada entre os netos em partes iguais, por cabeça, recebendo cada neto 1/3 da herança. Note que, caso não fosse feita a renúncia, cada filho receberia 1/2 (metade) da herança, já os netos dividiriam o que seus pais receberam, após sua morte, ficando a divisão desigual entre essa classe (que seria o chamamento convencional da ordem sucessória).

Assim fica claro a importância na renúncia na disposição patrimonial tratada de forma individualizada e que atenda aos desejos e anseios de cada família, respeitando seu planejamento de acordo com os preceitos legais. Fundamental enfatizar que o domínio desses institutos é do advogado que deverá explanar as possibilidades legais de forma que a partilha atenda às necessidades de cada caso concreto.

Recente discussão reside na possibilidade de exercer o direito à renúncia da herança antes de aberta a sucessão, ou seja, enquanto o dono do patrimônio está vivo. Nesse caso, trata-se de um filho renunciar à herança do pai vivo por meio de um testamento ou uma escritura pública. Em respeito ao princípio da saisine, não é possível deliberar ou dispor sobre a destinação de patrimônio de pessoa viva, entretanto, vale ressaltar que o Direito como ciência tende a acompanhar as evoluções e mudanças da sociedade de forma retardatária e não de forma precípua ou antecipada, mas sendo um reflexo dos anseios sociais e das novas relações e conceitos que essa sociedade vai ressignificando.

Atualmente o princípio da liberdade e o respeito máximo à autonomia da vontade vem evidenciando que a tendência a validar e respaldar juridicamente decisões pessoais, conscientes e capazes tem ganhado força no mundo jurídico e sendo demonstrada em inúmeras decisões. Dessa forma, ainda motivo de muita controvérsia, a possibilidade de renúncia à herança vem ganhando robustez para sua validade.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *