Internet: Fraude x Estelionato

Notícia que me foi enviada pelo amigo de longa data, Alexssandro (vulgo “pequeno gafanhoto”), copiada e colada lá do site do STJ – Superior Tribunal de Justiça. Além do cunho internetístico, o interessante é a definição simples e direta acerca da diferença entre fraude e estelionato.

Movimentação não autorizada de conta via internet pode configurar fraude

Transferência de valores via internet não autorizada pelo titular da conta configura furto mediante fraude. Com essa conclusão, o ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), determinou a competência do Juízo Federal de Mafra (SC), para apurar o inquérito policial que investiga a transferência, via internet, de valores sem a autorização do titular da conta.

O conflito de competência foi suscitado pelo juiz federal de Mafra que entendeu que o recurso compete ao juiz federal da 5ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás (GO).

O juiz da 5ª Vara Seção Judiciária do Estado de Goiás declinou de sua competência por entender que o delito de furto ocorre no exato instante em que a quantia é retirada da esfera de vigilância da vítima e o agente consegue ter sua posse tranquila, ainda que por curto espaço de tempo.

Ao decidir, o ministro Felix Fischer, relator do caso, destacou uma matéria idêntica apreciada pela Terceira Seção do STJ. Segundo o precedente, o furto mediante fraude não pode ser confundido com estelionato. No furto, a fraude é utilizada para burlar a vigilância da vítima, para lhe tirar a atenção. No estelionato, a fraude objetiva obter consentimento da vítima, iludi-la para que entregue voluntariamente o bem. O ministro destacou, ainda, que, no caso, o agente valeu-se da fraude eletrônica via internet para subtrair valores da conta-corrente do titular.

Remuneração pela caminhada

E como este também é um blog jurídico (não se enganem – pois o é), de quando em quando é bom falar um pouco sobre o tema. Por mais espantoso que seja a jurisprudência a seguir foi publicada na edição nº 315 (março/2007) do Jornal do Advogado, um informativo que a OAB-SP teima em mandar para seus inscritos. No meio de toda a rasgação de seda que usualmente preenche as páginas desse jornal (“jornal?”) foi possível pinçar algo razoalvemente interessante.

Particularmente prefiro a AASP – muito mais por muito menos.

Mas segue a notícia:

Tempo gasto do portão ao posto de trabalho deve ser remunerado

O tempo gasto pelos empregados para alcançar o local de trabalho a partir da portaria da empresa configura-se como tempo à disposição do empregador e, por isso, deve ser devidamente remunerado. Este é o entendimento da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, por unanimidade, acompanhou o voto do ministro Carlos Alberto Reis de Paula, ao julgar ação movida por dois metalúrgicos da Volkswagen do Brasil Ltda., pleiteando o pagamento de horas extras referentes ao tempo gasto entre a portaria da fábrica e o efetivo local de trabalho.

Os empregados, com 30 anos de serviço, alegaram que o registro de horário na Volkswagen é feito em duas etapas: a primeira na entrada da fábrica e a segunda no setor onde efetivamente trabalham. Contaram que levavam cerca de 15 minutos no trajeto entre as duas catracas eletrônicas, e, portanto, teriam direito a receber pelos 30 minutos (ida e volta) como hora extraordinária. Pediram também o pagamento referente às horas trabalhadas aos sábados e domingos.

A empresa negou a existência de dois controles distintos de registro de horário. Disse que a primeira catraca foi instalada unicamente com o objetivo de fornecer segurança à fábrica, e negou ainda o direito às horas extras sob a alegação de que os empregados só recebiam ordem para trabalho quando lotados em seus postos de serviço, considerando ‘absurda’ a pretensão.

As decisões de primeira e segunda instância foram desfavoráveis aos trabalhadores. Eles recorreram, então, ao TST alegando que ‘é problema logístico da empresa ter a portaria longe do setor de trabalho, problema esse que não pode ser transferido aos funcionários que permanecem por 30 minutos em suas dependências sem qualquer remuneração’.

Ganharam. O ministro Carlos Alberto, ao votar, fez analogia com a antiga Orientação Jurisprudencial Transitória nº 36, da SDI-1, que considerava hora in itinere ‘o tempo gasto pelo obreiro para alcançar seu local de trabalho a partir da portaria da Açominas’. Para o relator, o trecho compreendido entre os portões da empresa e o local de trabalho representa tempo à disposição do empregador, devendo ser computado e remunerado.

(RR 1971/2001-465-02-40.8)

Coisas que advogados NÃO precisam para amar seu trabalho

Vendo o que a Renata escreveu outro dia aqui, me deu vontade de tentar fazer algo no mesmo estilo mas que dissesse respeito aos advogados. Sei que já rolou pela Internet algumas coisas parecidas, mas resolvi dar um foco mais pessoal ao texto. Vamos lá:

1. Advogados têm seu tempo e modo certo de operação. Não se desespere porque o seu advogado ainda não entrou com aquela ação ou ainda não fez aquela petição. A maior parte dos assuntos precisa ser estudado, pensado, revisto, até que se dê origem a uma linha de raciocínio que deverá ser a melhor possível para atender àquela demanda específica. E isso leva tempo. Como diria Calvin, nossa experiência, nosso talento, nossa criatividade não pode simplesmente ser ligada e desligada a qualquer momento. Temos que estar no modo certo de operação. E esse modo é nada mais nada menos que o pânico do último minuto…

2. Outra coisa: se seu advogado disser que o processo está concluso, sob análise do juiz, tramitando no cartório, aguardando publicação, etc, acredite. É verdade. Tá, vá lá, em 99% dos casos, então. Lembre-se que a legislação fixa prazos rígidos, os quais os advogados têm que cumprir. Ao contrário dos juízes. Se aquele seu amigo que entrou com uma ação idêntica à sua e na mesma época já resolveu o problema dele, MUITO provavelmente o juiz que julgou não terá sido o mesmo que está cuidando de seu caso. Sorte do seu amigo. Excesso de processos tramitando, necessidade de estudos maiores pela complexidade do caso, mudança de varas, pauta de audiências lotada, alteração de professor da academia, cachorrinho (poodle, com certeza) que ficou doente, mudança no horário da programação da TV, chegada do Horário de Verão, bem como quaisquer outras situações de relevante interesse (público?) são alguns dos motivos que implicam no atraso dos juízes na elaboração de sentenças. Deixe o pobre de seu advogado fora disso.

3. Advogados atendem consultas em seu escritório. Alguns cobram por isso, outros não. Se você encontrar um advogado no shopping, ele estará fazendo compras; se você encontrá-lo numa festa, ele estará se divertindo; se você encontrá-lo no escritório, ele estará atendendo. É importante não inverter ou misturar essa ordem. Nada é mais irritante que aquela famosa frase: “Doutor, só uma perguntinha..”. E o sujeito começa a contar tudo o que aconteceu desde Adão e Eva, meio que exigindo que você tenha todas as respostas jurídicas DO MUNDO ali, na hora. Nesses momentos, por favor, deixe-nos em paz. Por incrível que pareça, também somos filhos de Deus e temos direito a um descanso de vez em quando. Garanto que se eu fosse um ginecologista ninguém chegaria no meio de uma festa dizendo: “Doutor, você poderia só dar uma olhadinha…”

4. Aliás, esse negócio de “Doutor” é mais uma questão de ego que qualquer outra coisa. E muitas vezes um ego plantado por terceiros, pois originalmente o bacharel nem ligava. Mas existem advogados que fazem questão de que os chamem de “doutor”. Isso é caso a caso, uma questão de opção que – talvez – deve ser respeitada. Particularmente acho uma bobagem muito grande. Não é uma alcunha dessa que vai fazer com que o sujeito seja melhor ou pior, mais competente ou não. Sou da opinião que devemos ser simplesmente chamados pelo próprio nome – é bem mais fácil. Mas, se por um acaso, ao proceder assim, seu advogado der uma emendada do tipo: “Fulano, não – DOUTOR Fulano”, desconfie. Egos inflados nem sempre revelam profissionais competentes.

5. Falando em profissionais competentes, vale a antiga máxima: “o hábito não faz o monge”. Como já foi dito ali em cima, advogados têm vida própria – não advogam 100% do tempo (ainda que eu conheça alguns que fazem o tipo). Se encontrar seu advogado após o expediente (ou até mesmo durante ele) de bermudão, chinelo de dedo, camiseta, barba por fazer, entenda que mesmo advogados podem ter seu momento de relaxar. Isso também vale para as advogadas (com exceção do “barba por fazer”, ok?). Advogados também bebem cerveja, falam palavrão, discutem na mesa. Somos seres humanos. Na maior parte do tempo, pelo menos. Nossa competência não está vinculada a um Armani. Podemos ter a possibilidade de resolver todos os problemas jurídicos do mundo e ainda assim sermos encontrados dirigindo um mero Opala 79. Respeite nossa individualidade.

6. Como já dizia Juca Chaves: “Parente, amigo da gente e vizinho da frente é que nem dente: quanto mais separado, melhor pra ser tratado”. Se você se encaixar em alguma dessas situações com relação a seu advogado, não fique chateado se ele recusar a causa. Não só é uma coisa natural, como um meio eficaz de auto-defesa. Para si e para os outros. Se, numa situação dessas, o advogado ganhar a causa – que pela situação peculiar, sequer deve ter cobrado honorários – sob os olhos do cliente ele não fez mais que a obrigação. Ah, mas se perder… Também sob os olhos do cliente vai ser porque não deu a devida atenção, porque era amigo mesmo, se tivesse recebido teria feito um serviço melhor, quem mandou procurar um advogado quebra-galho, se tivesse falado com fulano ou beltrano teria sido diferente… Enfim, de qualquer jeito o infeliz do advogado leva na cabeça. Então é melhor não fazer. Compreenda, aceite e procure outro, certo?

7. Falando em honorários, entenda que um advogado não necessariamente cobra caro por aquilo que faz. Tá certo, tem alguns que cobram, mas vamos pensar um pouco melhor. Cobrar, sei lá (tô sem a tabela aqui), mil reais por uma reintegração de posse, não é necessariamente caro. “Mas basta fazer uma ‘petiçãozinha’ pro juiz e pronto”, poderiam argumentar. É, só que o processo não acaba ali. Mesmo uma “açãozinha simples” dessas pode ficar tramitando durante anos – eu disse ANOS – pela justiça. E quem é que tem o dever, obrigação e responsabilidade de acompanhar pari passu a bendita da ação? Sim, o advogado que você contratou. Durante todos os anos vindouros. Sem cobrar absolutamente nada a mais por isso. Você já entrou no imóvel, reformou, usufruiu, muitas vezes até vendeu. E o marmitão continua lá, tendo que ir ao Fórum, umbigo no balcão, vendo o que está se passando no processo. Tenha consciência disso e peça desculpas pelas vezes que já reclamou do valor dos honorários cobrados por seu advogado.

8. Inclusive, existe uma tabela para cobrança de honorários, que fixa o valor mínimo – e, às vezes, o máximo – que pode ser cobrado, de acordo com cada ação. Advogados sérios e responsáveis obedecem os parâmetros da tabela. Parcelamos, facilitamos, fazemos até mesmo algum tipo de “carnêzinho-Casas-Bahia”. Mas não deixamos de cobrar o que é justo. Tá certo que sempre algum cliente vai falar algo do tipo: “Mas aquele outro advogado ali cobra a metade do preço”. Tãotáintão. Vai lá. Contrate-o. E boa sorte. Tomara que dê tudo certo. Mas, quando, quer dizer, se der algo errado e você voltar ao advogado anterior, não tenha dúvidas: ele não só vai cobrar exatamente a mesma coisa que tinha lhe falado antes, como talvez ainda tenha algum adicional para desfazer as cagadas os erros de seu antecessor. Portanto não regateie. Se você confia em seu advogado, também deve confiar que ele vá ter bom senso o suficiente para fixar honorários de acordo com o que é justo para a situação específica que você se encontra. Tenha também consciência disso e peça desculpas novamente pelas vezes que já reclamou do valor dos honorários cobrados por seu advogado.

9. Advogado é um bicho de extrema confiança. Aliás, confiança é a palavra-chave para designar a relação cliente-advogado. E confiança implica em não ficar perguntando para outros advogados se o que o seu advogado está fazendo está certo ou não. É uma situação extremamente chata, pois, eticamente falando, outros advogados não teriam que ficar dando palpite (mesmo assim, o fazem). E se seu próprio advogado contratado descobre que você anda fazendo essas perguntas (pois temos uma rede de comunicação maior do que se possa imaginar), pode chegar a atitudes extremas, como até renunciar à causa. Se você confia em seu advogado, não questione. Se não confia, destitua-o e contrate outro. Se seu advogado o prejudicou de alguma forma porque não trabalhou a contento (pois péssimos profissionais existem em todas as áreas), além de destitui-lo e contratar outro, denuncie. A Ordem dos Advogados não é nenhuma “máfia” que teria por função proteger seus membros. Se o caboclo for tão ruim, tem mais é que ser investigado mesmo, de modo que se abram vagas para outros profissionais competentes que existam no mercado.

Pois bem, é isso. Tô saindo para um curso. Volto daqui dois dias para responder eventuais comentários…

“Têje preso!”

Eis um interessante pedido de habeas corpus. Trata-se de um advogado que acompanhou seu cliente até um distrito policial e, em dado momento, recomendou-lhe que ficasse em silêncio, reservando-se o direito de somente se manifestar perante um juiz. O delegado (que não gostou nem um pouco disso) mandou o advogado sair da sala – e este se recusou, resultando daí outras consequências. Dá até pra imaginar o diálogo:

– Doutor, já que seu cliente não vai falar mais nada, nem é preciso que o senhor fique aqui. Queira sair da sala, então.

– Não.

– Ora, doutor, nada mais há a ser feito por Vossa Senhoria. Queira deixar a sala para que a gente continue uma conversinha aqui…

– Naaaaumm.

– DOUTOR. Eu já falei mais de uma vez! Saia da sala, pois o senhor tá é zoando meu barraco! Dou trinta segundos pra que me obedeça!

– Hmmmm… Naaaaumm.

– AH É! ENTÃO TÁ BOM! TÊJE PRESO POR CRIME DE DESOBEDIÊNCIA!!!

Mas deixemos de lado o fértil campo da imaginação, e vamos ao trecho que interessa do acórdão em si (Colégio Recursal Criminal do Foro Central – 2ª T.; HC nº 32/05-SP), lembrando que “paciente”, neste caso, é o próprio advogado:

A ordem merece ser concedida.

Restou incontroverso no termo circunstanciado de ocorrência elaborado que o paciente, na data dos fatos, compareceu ao 9º Distrito Policial acompanhando cliente seu investigado em inquérito policial em andamento naquela repartição.

Iniciou-se ato de acareação entre o cliente do paciente e outra pessoa. Em dado momento o paciente – por motivos que não cabe discutir neste feito – dirigiu-se a seu constituinte e recomendou que nada mais respondesse. A Autoridade Policial questionou o averiguado e este ratificou que, de fato, nada mais iria responder.

A partir de então se iniciou a querela.

A Autoridade Policial, conforme por ela própria lançado em suas declarações (fls. 52), assim se manifestou: “… disse ao Dr. J. – paciente – que em razão daquela decisão de foro íntimo do Defensor, sem que tivesse consultado o averiguado, pedi para que saísse do cartório, evitando assim o transtorno que se avizinhava, uma vez que, como o averiguado nada mais iria declarar, estava cessada a assistência daquele nobre causídico; que de forma veemente e inopinada, respondeu que não iria sair; novamente pedi para que deixasse a sala e o Dr. J. novamente respondeu que não o faria; que disse ao Dr. J. que estava dando a ele trinta segundos para que cumprisse a ordem legal, visando não tumultuar os trabalhos, que, reitero, estavam nos estertores, e novamente disse que não sairia (…). Findado o prazo de trinta segundos, disse a ele que estava preso por desobediência”.

A questão que se coloca é a seguinte: poderia a Autoridade Policial proferir ordem de tal natureza? E, em consequência: esta ordem revestia-se de legalidade, de forma a caracterizar, pelo seu não-atendimento, o crime de desobediência?

Tenho convicção de que as respostas para estas duas questões são negativas.

Com efeito, o advogado, como é cediço, presta em sua atividade privada serviço público e exerce função social, sendo inviolável por seus atos, que constituem múnus público, e manifestações, nos limites da lei.

Suas prerrogativas – que na verdade não são particulares ou privilégios, mas garantias ao bom desempenho da função, em favor do cidadão – estão estatuídas no art. 7º da Lei nº 8.906/94 (EOAB).

Entre seus direitos encontram-se o de ingressar livremente nas salas de sessões de tribunais, de audiência, cartórios e delegacias, bem como o de retirar-se, independentemente de licença, de quaisquer destes locais.

Inexiste entre advogado e qualquer outra Autoridade relação de subordinação, cabendo a todos, tão-somente, o dever de urbanidade.

Por outro lado, constitui dever ético do advogado (art. 31, § 2º, do citado diploma legal) não se deter no exercício da profissão por receio de desagradar a Magistrado ou a qualquer outra autoridade.

No caso em análise não se observou, de parte do paciente, qualquer conduta que pudesse ensejar tumulto ao ato de polícia judiciária, pois se limitou a orientar o seu constituinte a proceder de forma permitida pela lei e pela Constituição Federal – manter-se em silêncio -, o que vai ao encontro do dever de prestação de assistência jurídica adequada.

Se assim é, inexistiu fato que pudesse ser considerado desestabilizador da ordem e que eventualmente poderia fundamentar, para o seu restabelecimento, a retirada do agente da sala onde se realizavam os trabalhos.

A circunstância de ser o Delegado de Polícia titular da sala na qual eram colhidos os elementos probatórios de inquérito não lhe facultava, somente por esta circunstância, ordenar ao paciente a saída do local.

A uma porque, conforme já ressaltado neste voto, o ingresso – e saída – do advogado, no exercício de sua atividade – como no caso em análise – em repartições públicas em sentido amplo, independe da autorização de quem quer que seja.

A duas porque, ao contrário do que a Autoridade Policial fez consignar em suas declarações no termo circunstanciado de ocorrência, a atuação do paciente ainda não havia sido finalizado e as pessoas ouvidas não tinham sido dispensadas.

Incumbia ao paciente, portanto, ainda no pleno exercício da assistência jurídica para a qual foi contratado, acompanhar a finalização dos trabalhos, até mesmo para verificar a ocorrência de eventuais erros na lavratura do termo e requerer, pela ordem, a retificação.

Conclui-se, assim, que a ordem proferida pelo Delegado de Polícia ao paciente, para que se retirasse da sala em que era produzida prova inquisitorial, era manifestamente ilegal, o que implica a não subsunção da conduta ao tipo do art. 330 do Código Penal. Neste sentido a jurisprudência é pacífica.

Coyote vs. Acme

CoyotePra não perder o costume o site do copoanheiro Bicarato, sempre cheio de novidades, brindou-nos com a notícia do lançamento da revista piauí. Realmente um material de primeira, como pude conferir na versão impressa (depois de gentilmente tomá-la das mãos do Bica e sair em desabalada carreira pelo corredor). Um dos pontos interessantes é a sessão Questões Jurídicas, que trouxe a hipotética ação movida pelo Coyote (aquele mesmo, do desenho do Papa-Léguas) contra a empresa Acme. A leitura é longa, mas vale a pena! Fica também lançada a idéia/susgestão de montar uma ação parecida com personagens tupiniquins…

Coyote vs. Acme

Ian Frazier

No Tribunal Distrital dos Estados Unidos,
Distrito do Sudoeste, Tempe, Arizona
Caso: no B19294,
Juíza: Joan Kujava
Wile E. Coyote [ Autor] vs. ACME Company [Ré]

Declaração inicial do dr. Harold Schoff, advogado do sr. Coyote: meu cliente, o sr. Wile E. Coyote, residente no Arizona e estados contíguos, vem por meio desta propor ação indenizatória para reparação de perdas e danos contra a Acme Company, fabricante e distribuidora no varejo de mercadorias variadas, fundada no Delaware e ativa em todos estados, distritos e territórios dos Estados Unidos da América. O sr. Coyote pretende compensação por danos materiais e estéticos, lucros cessantes e perturbações mentais, diretamente produzidos por atos e/ou negligência grosseira da companhia citada, nos termos do Título 15 do Código Civil Americano, capítulo 47, seção 2.072, subseção (a), que define a responsabilidade do fabricante por seus produtos.

O sr. Coyote afirma que, em oitenta e cinco ocasiões distintas, adquiriu da Acme Company (doravante referida apenas como “Ré”), através do Departamento de Reembolso Postal da empresa, certos produtos que lhe causaram as lesões físicas mais diversas em decorrência de defeitos de fabricação ou da falta de advertências claras ao consumidor estampadas nas respectivas embalagens. Os recibos de venda em nome do sr. Coyote, apresentados como prova de compra, foram devidamente encaminhados ao Tribunal e rotulados como Prova A. As lesões supra sofridas pelo sr. Coyote resultaram na restrição temporária de sua capacidade de sustentar-se com seu ofício de predador. O sr. Coyote é autônomo e, portanto, não faz jus ao Auxílio-Desemprego por Invalidez.

O sr. Coyote afirma que, no dia 13 de dezembro, recebeu a entrega postal de um Trenó a Jato da Acme. A intenção do sr. Coyote era utilizar o referido Trenó a Jato para ajudá-lo na perseguição e captura da sua presa. Ao receber o Trenó a Jato, o sr. Coyote na mesma hora removeu o produto da embalagem de madeira e, avistando sua presa ao longe, ativou a ignição. Quando pôs suas mãos no local indicado e cuidou de segurar firme o veículo, este acelerou com uma força tamanha e tão repentina que esticou os membros anteriores do sr. Coyote a uma extensão de quinze metros. Em seguida, o restante do corpo do sr. Coyote foi puxado para a frente com um repelão violento, o que submeteu suas costas e seu pescoço a um esforço extremo de tração e resultou no seu inesperado deslocamento para bordo do referido veículo. Desaparecendo no horizonte tão depressa que só deixou para trás uma diminuta nuvem de fumaça, graças ao Trenó a Jato o sr. Coyote logo emparelhou com a sua presa. Nesse exato momento, contudo, o animal perseguido descreveu uma curva brusca e inesperada para a direita. O sr. Coyote fez o possível para acompanhar a manobra mas não conseguiu, por culpa do projeto inadequado do sistema de direção do Trenó a Jato – para não falar de seu dispositivo de frenagem, defeituoso ou mesmo inexistente. Pouco depois, o avanço contínuo e incontrolável do Trenó a Jato levaria tanto o veículo quanto o sr. Coyote a uma colisão frontal com a borda de um precipício.

O primeiro parágrafo do Laudo Médico (Prova B) preparado pelo dr. Ernest Grosscup, devidamente credenciado como perito médico judicial, descreve as múltiplas fraturas, lacerações e lesões corporais sofridas pelo sr. Coyote em decorrência da colisão acima referida. O tratamento demandou a aplicação de uma bandagem completa de atadura a toda volta do crânio (com a exceção das orelhas), a adoção de um suporte ortopédico especial para o pescoço e o uso de aparelhos de gesso completos ou parciais em todas as quatro patas.

Com os movimentos tão tolhidos por todo esse aparato terapêutico, o sr. Coyote ainda assim se via obrigado a prover seu sustento e, com tal finalidade, adquiriu da Ré, como forma de auxílio à sua locomoção, um par de Patins a Jato Acme. Todavia, ao tentar empregar o referido produto, envolveu-se num acidente notavelmente similar ao ocorrido com o Trenó a Jato. Aqui, a Ré reincidiu na venda direta pelo reembolso postal, sem dar-se ao cuidado de qualquer advertência ao consumidor, de um produto em que usa potentes motores a jato (dois, no caso em pauta) na propulsão de veículos inadequados para tal, marcados pela insuficiência ou mesmo a ausência completa dos devidos dispositivos de segurança para o passageiro. Prejudicado pelo peso de seus aparelhos de gesso, o sr. Coyote perdeu o controle dos Patins a Jato logo depois de prendê-los aos pés, colidindo tão violentamente com um cartaz de beira de estrada que nele produziu um recorte na forma de sua silhueta completa.

O sr. Coyote afirma ainda que, em ocasiões numerosas demais para detalhar no presente requerimento, sofreu os mais variados infortúnios com explosivos adquiridos à Ré: o Buscapé “Gigantinho” Acme, a Bomba Aérea Auto- Guiada Acme, etc. (Para uma relação completa, ver o Catálogo Acme de Explosivos pelo Reembolso Postal e o depoimento do queixoso sobre esse aspecto da questão, anexados ao Processo como Prova C.) De fato, é possível afirmar com toda a segurança que nenhum dos explosivos adquiridos da Ré pelo sr. Coyote jamais exibiu o desempenho que dele se esperava. Para citar apenas um exemplo: à custa de muito tempo e intenso esforço pessoal, o sr. Coyote construiu, ao longo da orla externa de uma elevação isolada, uma calha inclinada de madeira que começava no alto da referida elevação e ia descendo em espiral, descrevendo voltas em seu redor, até poucos metros acima de um x preto pintado no chão do deserto. A calha inclinada foi construída de tal maneira que um explosivo esférico do tipo vendido pela Ré pudesse descer rolando rápido e facilmente por ela até o ponto de detonação, indicado pelo X. O sr. Coyote cobriu o x com uma generosa pilha de alimento para aves, e então, carregando a Bomba Acme Esférica (número 78-832 do Catálogo), subiu até o alto da supracitada elevação. A presa do sr. Coyote, ao ver a pilha de alimento, aproximou-se, ao que o sr. Coyote acendeu o pavio do engenho explosivo Numa fração de segundo, porém, o pavio queimou até o fim, provocando a detonação da bomba.

Além de anular todo o meticuloso esforço construtivo do sr. Coyote, a detonação prematura do produto da Ré resultou nos seguintes danos estéticos ao sr. Coyote:

1. Chamuscamento grave dos pêlos da cabeça, do pescoço e do focinho;

2. Empretecimento facial pela fuligem;

3. Fratura da orelha esquerda na base, causando o tombamento do dito apêndice, logo em seguida à detonação, com um rangido claramente audível;

4. Combustão total ou parcial dos bigodes, produzindo seu enroscamento, desmanche no ar e desintegração em cinzas;

5. Arregalamento radical dos olhos, devido ao calcinamento das pálpebras e sobrancelhas.

E tratemos agora dos Calçados a Mola Acme. Os vestígios de um par do referido produto adquirido pelo sr. Coyote no dia 23 de junho constituem a Prova D encaminhada pelo Autor da presente ação a esta Corte. Alguns fragmentos foram encaminhados para a devida análise ao Laboratório de Metalurgia da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, onde até hoje, todavia, não foi encontrada qualquer explicação para o súbito e radical mau funcionamento do produto. No anúncio da Ré, os referidos Calçados a Mola são de extrema simplicidade: duas sandálias de madeira e metal, cada uma delas presa a uma mola de aço forjado de alto poder tensiométrico, mantida em posição de grande compressão por um mecanismo cujo desarme pode ser comandado por um gatilho de cordão. O sr. Coyote julgava que tal aparato teria como capacitá-lo a capturar sua presa com curtíssimo tempo de perseguição, num momento inicial da caça em que os reflexos rápidos são fator decisivo.

A fim de aumentar ainda mais a força propulsora dos referidos calçados, o sr. Coyote prendeu-os pela sola à face lateral de um volumoso rochedo. Em posição adjacente a este rochedo, ficava um caminho que a presa do sr. Coyote costumava percorrer regularmente. O sr. Coyote calçou suas patas traseiras nas sandálias de madeira e metal e agachou-se em preparação, segurando com firmeza o cordão de disparo em sua pata dianteira direita. Dali a pouco tempo, a presa do sr. Coyote de fato apareceu no caminho, rumando em sua direção. Sem desconfiar de nada, deteve-se muito perto do sr. Coyote, claramente ao alcance da extensão total das molas. O sr. Coyote avaliou a distância com todo o cuidado e puxou o cordão.

A essa altura, o produto da Ré deveria ter impelido o sr. Coyote para diante e para longe do rochedo. Ao invés disso, contudo, por razões desconhecidas, os Calçados a Mola Acme empurraram o rochedo para longe do sr. Coyote. Enquanto a presa visada assistia incólume, o sr. Coyote ficou imóvel por alguns instantes, suspenso em pleno ar. Em seguida, foi puxado com toda a força pelo retrocesso das molas, o que provocou uma violenta colisão de seus pés com o rochedo em que todo o peso da cabeça e de seus quartos anteriores recaiu sobre suas extremidades posteriores.

A força desse impacto, por sua vez, determinou uma nova extensão das molas, em virtude da qual o sr. Coyote viu-se impelido dessa vez verticalmente para o alto. O que foi acompanhado de um segundo retrocesso e uma segunda colisão. Nesse ínterim, o rochedo supracitado, de forma aproximadamente ovóide, começara a rolar aos solavancos encosta abaixo com uma velocidade crescente, aumentada pelos sucessivos vaivéns da mola. A cada retrocesso, o sr. Coyote se chocava com o rochedo, ou o rochedo se chocava com o sr. Coyote, ou os dois se chocavam com o solo. Uma vez que o declive era bastante longo, tal processo se estendeu por um tempo considerável.

A sequência dessas colisões resultou numa série de lesões físicas de ordem sistêmica ao sr. Coyote, a saber: achatamento dos ossos cranianos, destroncamento lateral da língua, redução do comprimento das pernas e do torso e compressão geral das vértebras, da base da cauda até a cabeça. A ocorrência desses choques repetidos ao longo do eixo vertical produziu uma série de dobramentos horizontais regulares nos tecidos corporais do sr. Coyote – condição rara e extremamente dolorosa em virtude da qual o sr. Coyote passou a expandir-se e contrair-se alternadamente no comprimento quando andava, emitindo um desafinado som de acordeão a cada passo. A natureza altamente perturbadora e embaraçosa desse sintoma acabou por constituir-se, para o sr. Coyote, em importante empecilho para uma vida normal em sociedade.

Como este Tribunal deve saber, a Ré detém o monopólio virtual da manufatura e da distribuição das mercadorias necessárias ao trabalho do sr. Coyote. Afirmamos que a Ré abusa de sua posição privilegiada no mercado, em detrimento do consumidor de seus produtos especializados como o pó-de-mico, as pipas de papel tamanho gigante, as armadilhas para tigre birmanês, a bigorna e os elásticos de borracha de cinquenta metros de comprimento. Por mais que tivesse perdido a confiança nos produtos da Ré, não existia outra fonte de suprimento a domicílio à qual o sr. Coyote pudesse recorrer. Só podemos tentar imaginar o que nossos parceiros comerciais da Europa Ocidental e do Japão iriam pensar de situação semelhante, na qual se permite que uma empresa gigantesca vitime seu consumidor vezes sem conta, da maneira mais descuidada e malévola que se possa conceber.

O sr. Coyote vem requerer, com todo respeito, que este Tribunal considere essas implicações econômicas mais amplas e obrigue a Ré ao pagamento de danos punitivos no montante de dezessete milhões de dólares. Ademais, o sr. Coyote pede reparação de danos materiais (refeições perdidas, despesas médicas, dias indisponíveis para sua ocupação profissional) no valor de um milhão de dólares; e de danos morais (sofrimento mental, perda de prestígio) no valor de vinte milhões de dólares; além de honorários advocatícios no valor de setecentos e cinquenta mil dólares. Pedido total: trinta e oito milhões, setecentos e cinquenta mil dólares. Concedendo ao sr. Coyote o montante requerido, este Tribunal irá penalizar a Ré, seus diretores, funcionários, acionistas, sucessores e procuradores, na única linguagem por eles compreendida, reafirmando o direito individual do predador à proteção equitativa da lei.

Homossexualismo e adoção de crianças

Uma de minhas fontes de atualização na área de direito é o Boletim da AASP – Associação dos Advogados de São Paulo, que recebo semanalmente, e que por si só já faz valer a pena o pagamento da baixíssima mensalidade (alguém me lembre de mais tarde cobrar pela propaganda gratuita). Infelizmente nosso próprio órgão de classe, a OAB de São Paulo, apesar de cobrar uma das anuidades mais caras entre as categorias profissionais (seiscentos e trinta contos por ano), é, na MINHA opinião, a que menos faz pelos seus inscritos, principalmente em termos de literatura jurídica, serviços informatizados que realmente funcionem, cursos e palestras que sejam – de fato – interessantes, etc, etc, etc.

Mas voltemos ao nosso tema. Achei bastante interessante o acórdão abaixo, sendo de destacar que sim, tinha que ser do Sul do país, onde normalmente as cabeças pensantes costumam ser vanguardistas, caracterizadas mais pelo jusnaturalismo (“é direito o que é justo”) do que pelo positivismo (“é direito o que está na lei”). O texto foi extraído do Ementário do Boletim AASP nº 2476, de 19 a 25 de junho de 2006:

Adoção – Casal formado por duas pessoas de mesmo sexo – Possibilidade.

Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. Negaram provimento. Unânime.

TJRS – 7ª Câm. Cível; ACi nº 70013801592 – Bagé – RS; Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos; j. 5/4/2006; v.u.