A volta dos que não foram

Nos últimos anos tenho feito mais bricolagem do que escrito propriamente dito. Quem me acompanha por aqui sabe que este blog não nasceu com cara de blog – até porque naquele longínquo ano de 1998 os blogs sequer existiam! Eu comecei compartilhando notícias e artigos que achava interessante, links úteis para quem quisesse acessar, mas, apesar de já me aventurar editando uma e-zine desde 1999, escrever, escrever mesmo, foi só lá pelo ano de 2004. Somente a partir daí comecei a dar cara e forma às minhas opiniões, sentimentos e paixões. Além de compartilhar o que acontecia pela Internet passei também a compartilhar o que me instigava o cérebro, tocava a alma e mexia com meu coração.

Escrevi muito. Muita coisa boa e também muita coisa ruim – se bem que nossos próprios textos, assim como nossos próprios filhos, sempre serão lindos, ainda que não. Mas os meus, são. Filhos e textos. Bem, no caso deste último, quase. Mas os últimos anos não foram tão graciosos assim em termos de produção. Acho que muito se deu por conta das chamadas redes sociais – Facebook, Twitter, Instagram, o escambau! – que com seu imediatismo e anonímia trouxe um ambiente mais “agradável” para todos aqueles que decidiram tirar seus monstros dos armários. Ou, ao menos, deixar à vista suas verdadeiras personalidades.

O blog, para mim, sempre foi uma grande “brincadeira”. É minha penseira virtual, onde de quando em quando compartilho minhas elucubrações, relembro de coisas que não quero esquecer e ainda utilizo como um quartinho de badulaques, acumulando pensamentos dos quais não quero me desfazer.  Nunca quis ganhar dinheiro com isso, ou, como diria meu amigo Bicarato, “monetizar” este nosso cantinho virtual. Sei que não é muito para os profissionais do ramo, mas tenho uma média de aproximadamente 100 visitas diárias, dando mais de 2,5k de visualizações por mês. E isso sem escrever absolutamente nada. Nem que preste, nem que não preste.

Diante desses números é fácil entender o encanto das Redes Sociais. Coloque uma foto bonitinha ou faça algum comentário ferino sobre algum tema relevante ou polêmico e em pouquíssimo tempo já poderá ter centenas de “likes” – sendo este o verdadeiro combustível que movimenta essas redes. Conheço pessoas que postam alguma coisa como se fosse a mais trivial do mundo, mas ato contínuo fica monitorando a própria conta para verificar não só quantos vão curtir como também quem são as pessoas que curtiram e/ou comentaram.

Cansei de ver usuários que já começam escrevendo “desculpe pelo textão”, como se estivesse escrevendo um tratado, mas que na realidade trata-se de um mero textinho de três ou quatro parágrafos – que já é muito mais do que os parágrafos de duas linhas normalmente publicados. Só este texto aqui já ultrapassou – e muito! – essa métrica torta que procura prevenir os leitores de que seus cérebros deverão ser utilizados. Um verdadeiro desserviço à inteligência e à capacidade de raciocínio estruturado.

É lógico que existem exceções, mas mesmo essas me causam um certo desânimo. Mestres do jornalismo, literatura, pensamento filosófico e de tantas outras áreas que outrora tiveram seus próprios blogs com postagens interessantíssimas, cujas caixas de comentários traziam discussões excelentes que somente abrilhantavam ainda mais a postagem original, hoje permanecem somente nas redes sociais, ainda com textos interessantes (mas não mais com tanta profundidade), tendo em sua grande maioria se rendido ao encanto das curtidas e dos comentários vazios ou meramente bajulatórios…

Sei lá, ando meio cansado de tudo isso. Deve ser por esse motivo que faz tanto tempo que não escrevo, pois eu mesmo caí nessa armadilha por tempo demais. Faltou-me a sobriedade tanto física quanto espiritual para conseguir dar um passo para trás e compreender que, como disse o personagem, temos que escolher entre o que é certo e o que é fácil. E cada vez mais, para mim, escrever aqui no blog é que é o certo. Ainda que venha a cair no mais absoluto ostracismo.

Mas somente assim serei fiel às minhas origens.

Não tem como voltar no tempo. Não há um capacitor de fluxo à disposição para que eu possa selecionar o momento exato em que as coisas começaram a descambar (em todos os sentidos) e tentar consertar tudo aquilo que deu errado. O tempo é uma via de mão única e já passou da hora de eu colocar esse trem descarrilado de volta aos trilhos.

Já tentei fazer isso antes.

Por mais de uma vez.

Mas atualmente, em tempos de pandemia e destempero social, tendo um Coronavírus que pode estar me aguardando em alguma esquina e que poderá decidir meu futuro imediato a curto prazo e de forma definitiva, acho que é melhor tentar, novamente, tomar as rédeas da situação.

Vamos ver no que dá…

O Pai

Rubem Alves

Pois eu não tinha intenção alguma de escrever sobre o dia dos pais. Mas, de repente, passando os olhos num livro que uma amiga me enviou, encontrei a seguinte afirmação: “Tomar uma decisão de ter um filho é algo que irá mudar sua vida inteira de forma inexorável. Dali para frente, para sempre, o seu coração caminhará por caminhos fora do seu corpo”.

Aí as ideias puseram a se movimentar por conta própria. Pensei na minha condição de pai. É verdade: pai é alguém que, por causa de um filho, tem sua vida inteira mudada de forma inexorável. Isso não é verdadeiro do pai biológico. É fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter alma. Um pai biológico se faz num momento. Mas há um pai que é um ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por caminhos fora do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho (muito embora o filho não saiba disto).

Lembrei-me dos meus sentimentos antigos de pai, diante dos meus filhos adormecidos. Veio-me à mente a imagem de um “ninho”. Bachelard, o pensador mais sensível que conheço, amava os ninhos e escreveu sobre eles. Imaginou que, “para o pássaro, o ninho é indiscutivelmente uma cálida e doce morada. É uma casa de vida: continua a envolver o pássaro que sai do ovo. Para este, o ninho é uma penugem externa antes que a pele nua encontre sua penugem corporal”. Era isso que eu queria ser. Eu queria ser ninho para os meus filhos pequenos. Queria que meu corpo fosse um ninho-penugem que os protegesse, um ninho que balança mansamente no galho de uma árvore ao ritmo de uma canção de ninar…

Que felicidade enche o coração de um pai quando o filho que ele tem no colo se abandona e adormece! Adormecida, a criança está dizendo: “tudo está bem; não é preciso ter medo”. Deitada adormecida nos braços-ninho do seu pai ela aprende que o universo é um ninho! Não importa que não seja! Não importa que os ninhos estejam todos destinados ao abandono e ao esquecimento! A alma não se alimenta de verdades. Ela se alimenta de fantasias. O ninho é uma fantasia eterna. Jung deveria tê-lo incluído entre os seus arquétipos! “O ninho leva-nos de volta à infância, a uma infância!” (Bachelard). Aquela cena, a criança adormecida nos braços do pai, nos reconduz à cena de uma criancinha adormecida na estrebaria de Belém! Tudo é paz! Desejaríamos que ela, a cena, não terminasse nunca! Que fosse eterna!

É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida de uma criança. É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida de um pai. O efêmero e o eterno abraçados num único momento! “Conter o infinito na palma da sua mão e a eternidade em uma hora”: o pai que tem o seu filho adormecido nos seus braços é um poeta! Essas palavras do poeta William Blake bem que poderiam ser suas. Um homem que guarda memórias de ninho na sua alma tem de ser um homem bom. Uma criança que guarda memórias de um ninho em sua alma tem de ser calma!

Mas logo o pequeno pássaro começará a ensaiar seus voos incertos. Agora não serão mais os braços do pai, arredondados num abraço, que irão definir o espaço do ninho. Os braços do pai terão de se abrir para que o ninho fique maior. E serão os olhos do pai, no espaço que seus braços já não podem conter, que irão marcar os limites do ninho. A criança se sente segura se, de longe, ela vê que os olhos do seu pai a protegem. Olhos também são colos. Olhos também são ninhos. “Não tenha medo. Estou aqui! Estou vendo você”: é isso o que eles dizem, os olhos do pai.

O que a criança deseja não é liberdade. O que ela deseja é excursionar, explorar o espaço desconhecido – desde que seja fácil voltar. Tela de Van Gogh. É um jardim. No lado direito do jardim, mãe e criança que acabam de chegar. Ao lado esquerdo o pai, jardineiro, agachado com os braços estendidos na direção do filho. É preciso que o pai esconda o seu tamanho, que ele esteja agachado para que seus olhos e os olhos do seu filho se contemplem no mesmo nível. A cena é como um acorde suspenso, que pede uma resolução. É certo que o filho largará a mão da mãe e virá correndo para o pai… E a fantasia pinta a cena final de felicidade que o pintor não pode pintar: o pai pegando o filho no colo, os dois rindo de felicidade…

O tempo passa. Os pássaros tímidos aprendem a voar sem medo. Já não necessitam do olhar tranquilizador do pai. É a adolescência. Ser pai de um adolescente nada tem a ver com ser pai de uma criança. Pobre do pai que continua a estender os braços para o filho adolescente, como na tela de Van Gogh! Seus braços ficarão vazios. Como se envergonharia um adolescente se seu pai fizesse isso, na presença dos seus companheiros! É o horror de que os pássaros companheiros de voo o vejam como um pássaro que gosta de ninho! Adolescente não quer ninho. Adolescente quer asas. Os ninhos, agora, só servem como pontos de partida para voos em todas as direções. Liberdade, voar, voar… A volta ao ninho é o momento que não se deseja. Porque a vida não está no ninho, está no voo. Os ninhos se transformam em gaiolas. Se eles procuram os olhos dos pais não é para se certificar de que estão sendo vistos mas para se certificar de que não estão sendo vistos! Aos pais só resta contemplar, impotentes, o voo dos filhos, sabendo que eles mesmos não podem ir. Nos espaços por onde seus filhos voam os ninhos são proibidos. Mas eles terão de voltar ao ninho, mesmo contra a vontade. E o pai se tranquiliza e pode finalmente dormir ao ouvir, de madrugada, o barulho da chave na porta: “Ele voltou…”

Quem é pai tem o coração fora de lugar, coração que caminha, para sempre, por caminhos fora do seu próprio corpo. Caminha, clandestino, no corpo do filho. Dito pela Adélia: “Pior inferno é ver um filho sofrer sem poder ficar no lugar dele.” Dito pelo Vinícius, escrevendo ao filho: “Eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua…”

Sei que é inevitável e bom que os filhos deixem de ser crianças e abandonem a proteção do ninho. Eu mesmo sempre os empurrei para fora

Sei que é inevitável que eles voem em todas as direções como andorinhas adoidadas.

Sei que é inevitável que eles construam seus próprios ninhos e eu fique como o ninho abandonado no alto da palmeira…

Mas, o que eu queria, mesmo, era poder fazê-los de novo dormir no meu colo…

Pais e Filhos

Você me diz que seus pais não entendem
Mas você não entende seus pais
(…)
São crianças como você
‘O que você vai ser quando você crescer?’
(Pais e Filhos, Legião Urbana)

        

O cartaz de meu primeiro Dia dos Pais com o Kevin, a tampa da caixinha porta-treco
(que uso até hoje) que ganhei do Erik e “arte” feita pelo Jean…

Dia dos Pais… Trata-se de uma data comemorativa para homenagear a paternidade, atualmente celebrada no segundo domingo de agosto – e que neste ano de 2020 cairá no próximo dia nove.

Ainda que em outros países seja celebrado em datas diversas, no Brasil somente foi comemorado pela primeira vez em 1953 – tendo sido “pensado” por um publicitário chamado Sylvio Bhering, à época diretor do jornal O Globo (do grupo empresarial de Roberto Marinho), um tanto com objetivos sociais – homenagear, de fato, os pais – quanto com nada nobres objetivos comerciais – movimentar a sociedade de consumo em busca de presentes para esse dia. Inicialmente a tentativa foi associar a data ao dia de São Joaquim, pai de Maria, mãe de Jesus Cristo (16 de agosto no calendário litúrgico da Igreja Católica), mas já nos anos seguintes a data também foi deslocada para um domingo, certamente por ser um dia mais fácil de se reunir a família, no caso o segundo domingo do mês de agosto – e assim permanece até hoje.

Apesar de seu apelo inicial ao consumismo, a comemoração do Dia dos Pais acabou ficando arraigada na sociedade brasileira, sendo uma data em que muitos filhos, ainda que distantes, se lembram de mandar ao menos um “oi” para seus pais – o que se torna muito mais relevante nestes tempos de pandemia e de forçado isolamento social. É, enfim, uma data em que um pai gostaria de se sentir amado e lembrado por seus filhos.

Mas, na minha livre interpretação da letra da música Pais e Filhos, do Legião Urbana, todo pai já foi também um filho. E mais: também teve por sua vez seu próprio pai. E suas diferenças. E discussões. E reconciliações. Aquele que hoje deveria ter todas as respostas também já foi ontem um garotinho cheio de perguntas. É um ciclo que se repete. Ou melhor, são ondas, tais como as ondas do mar, que vêm e vão. Explico.

Quem me conhece minimamente sabe que também é do conhecimento até do Reino Mineral o quanto gosto de história e genealogia. Então, para manter o foco genealógico do que tenho a dizer, vamos ficar somente na minha linha paterna – sem entretanto deslembrar os acontecimentos históricos, sociais e econômicos de cada época para que possamos compreender como veio se dando a relação de pais com filhos desde então. Somente assim a conclusão deste texto deverá ficar menos ininteligível…

Apesar de ter traçado minha ascendência nesse ramo até o ano de 1629, comecemos já com meu trisavô, Joaquim Theodoro de Andrade, que em fins do Século XIX foi um dos herdeiros das diversas fazendas deixadas por seus pais na região de Madre de Deus, MG. Ora, pela tradição familiar não é muito difícil cogitar que ele provavelmente também tenha se dedicado à vida no campo, nos tratos de lavoura e de gado. Estamos falando do ano de 1868 (quando da abertura do inventário), em pleno Brasil-Império ainda governado por Dom Pedro II, mas já em pleno declínio da cultura cafeeira, principalmente pela falta da mão de obra escrava – o que já vinha ocorrendo desde os anos seguintes à proibição do tráfico de escravos (1831) e que ainda iria se agravar com o advento da Lei do Ventre Livre (1871) e a própria Abolição da Escravatura (1888). Diante desse quadro cabe supor que, diferente de seu pai, e em conjunto com seus 11 irmãos, Joaquim deve ter vivido muito mais para tentar manter (e ver se desfazer) um patrimônio que não foi construído por ele.

“Pai rico, filho nobre, neto pobre”. Este é um antigo ditado que parece retratar bem o que aconteceu em diversas famílias não só pelo Brasil, mas também pelo mundo afora.

O filho de Joaquim, nascido em 1877 na cidade de Madre de Deus, MG, foi meu bisavô João Agnello de Andrade. Há notícias de que teria falecido cedo, com cerca de apenas 40 anos. Apesar de seus ancestrais terem sido fazendeiros na região de Sul de Minas – e diante da falta de documentação da época – num gigantesco exercício de suposições é plenamente possível imaginar que a fortuna amealhada nas gerações passadas não veio a agraciar essa nova geração. Ora, logo após a Proclamação da República (1889) e com as sucessivas crises do café, na virada do Século XIX para o XX tivemos o começo da Revolução Industrial no Brasil (com cerca de cem anos de atraso em relação à Inglaterra) bem como a Crise do Encilhamento, conjunto de fatores que veio a resultar no início da industrialização no Rio de Janeiro (então Capital do País). Assim, em que pese a cultura familiar de fazendeiros, é bem provável ter sido esse o motivo que fez com que meu bisavô tenha migrado ainda mais para o Sul, para a cidade de Santa Rita de Jacutinga, MG, onde em 1901 casou-se. Há registros de que não só ele como também parte de seus filhos, tenham trabalhado na cidade vizinha de Valença, no Rio de Janeiro. Ou seja, diferente de seu pai, quebrou uma tradição, saiu do campo e, talvez com um quê de esperança, para criar seus 10 filhos resolveu abraçar aquele novo mundo que se lhe surgia.

Mas ainda estamos falando da virada do século. Num curto período de tempo o mundo ainda seria flagelado pela Primeira Guerra Mundial (1914), pela Gripe Espanhola (1918), pela Grande Depressão (1929) e pela Segunda Guerra Mundial (1939). Como resultado direto desses acontecimentos, em cerca de apenas 30 anos, foram diretamente consumidas mais de 140 milhões de almas por todo o planeta. Restaram ainda outros tantos milhões de mutilados e com sequelas. Não deve ter sido um período nada fácil para aqueles que sobreviveram e só posso imaginar uma densa falta de esperança que pairava no ar por esses tempos. Algo como tudo isso que estamos vivendo especificamente neste ano de 2020 em virtude do Coronavírus.

E o filho de João Agnello, meu avô nascido em 1909 em Santa Rita de Jacutinga, MG, Antonio de Andrade passou por tudo isso. Não o conheci, pois faleceu em 1970, quando eu tinha apenas um ano de idade. Até onde pude descobrir, diferente de seu pai, foi um homem que tinha um pé na cidade e outro no campo (talvez mais para este último). Ao que tudo indica o que lhe interessava era tentar possuir seu próprio canto para poder criar os 12 filhos que viria a ter, de modo que abraçava as oportunidades que se lhe apresentassem. Tanto o é que montou e manteve um salão de barbeiro próximo à estação ferroviária local, o que lhe garantia tanto o sustento como o dinheiro para as cachaças que tanto gostava.

Mais tarde, no final da década de 40, veio de trem com toda a família para São José dos Campos, SP, após seu irmão já ter vindo e se certificado de que haveria trabalho para ele. Antes de ter sua própria terra, morou em diversos locais na zona rural, entre São José e Igaratá, sempre cultivando a terra (feijão, milho, arroz, etc) e criando um “gadinho”… Mas nem só da terra viveu, pois também empregou-se pelas fazendas da região, onde fazia serviços diversos, principalmente de marcenaria. E apesar da vida sofrida, era bem animado, adorava os arrasta-pés, foguetórios e tomar umas e outras sempre que podia.

A cidade de São José dos Campos (que agora em 2020 completou 253 anos) até então era classificada como estância climatérica, pois desde 1918, com a construção do Sanatório Vicentina Aranha (assim como de várias outras casas depois), foi o centro de migração de centenas de doentes vindos de várias regiões do país para tratamento da tuberculose. Aqui ficavam todos aqueles que não tinham posses suficientes para serem tratados na estância de Campos do Jordão, escolhidas à época pelo fato de ambas serem cidades afastadas dos grandes centros urbanos, o que minimizava o risco de contágio. Essa fase sanatorial durou até cerca de 1950, quando começou a transformação de São José dos Campos em um polo industrial e tecnológico, tendo início com a instalação do Centro Técnico de Aeronáutica – CTA (1950), do Parque Industrial da Johnson & Johnson (1954), do Complexo Industrial da General Motors do Brasil (1958), bem como de diversas outras empresas e indústrias dos mais diversos setores. Foi um período de prosperidade para a região e ainda levariam alguns anos para que se instalasse a Ditadura Militar no Brasil.

E foi por essa época que o filho mais velho de Antonio, nascido em Santa Rita de Jacutinga, MG, em 1937, José Bento de Andrade (também conhecido como meu pai), resolveu que já era hora de deixar o campo e seguir seu rumo para a cidade. Meu avô foi contra, pois queria que ele tivesse uma “profissão de sucesso”, o que no seu entender era ser tropeiro pela região e pelo Brasil afora. Mas esse “sonho” era dele e não de seu filho. Do alto de seus cerca de 20 e tantos anos ele lhe disse que não queria nada com isso não, que a vida ali era muito sofrida, que queria ir para a cidade tentar a sorte. E assim o fez. Apesar de ser um homem de estudos primários escassos, fez-se a si mesmo. Construiu-se. Com um inafastável esforço próprio no desejo de ser alguém, veio para cidade, arranjou emprego numa mecânica, casou-se, levantou sua casa no bairro de Santana (onde vive até hoje), teve três filhos, e por fim mudou-se para outro emprego numa indústria onde ficou até sua tranquila aposentadoria. Ele nunca foi de mudanças drásticas, de vida atribulada no campo, nem nada disso, e, ainda, apesar de à sua época até ter tomado suas cervejinhas, nunca gostou de bebida alcoólica em excesso – ou seja, ordenou toda sua vida de um modo bem diferente de seu pai

A assim chamada Geração X abrange aqueles que nasceram no início dos anos 60 até o final dos anos 70 (pegando, talvez, o comecinho dos anos 80). É considerada como um grupo de pessoas sem identidade aparente, mas que enfrentariam um mal incerto, sem definição, um futuro hostil de pós-guerra, num tempo de incertezas e de Guerra Fria (a longeva polarização entre Estados Unidos e União Soviética). Essa geração nasceu, cresceu, passou pela fase hippie, teve ideais, esqueceu-se dos mesmos e foi fazer carreira no mercado de trabalho. Atravessou todo o período de evolução tecnológica, tendo presenciado o surgimento e desenvolvimento dos modernos meios de comunicação, viu surgir o computador pessoal, a Internet, o celular, a impressora, o e-mail, etc. O mundo ao seu redor mudou muito e adaptação nunca foi uma opção, mas sim uma necessidade.

Eu, filho do Seo Zé Bento, pertenço a essa geração. Nasci em São José dos Campos, SP, em 1969. Tive uma boa infância, meio de nerd, meio de pé descalço. Minha família era da chamada “classe média” (quando essa ainda existia), de modo que vivi plenamente minha adolescência, viajei um tanto (normalmente de carona) e paquerei outro tanto – pois ainda não existia o termo “ficar” e aqueles relacionamentos esporádicos não podiam ser chamados de namoro. Desde o início da adolescência aprendi a beber, a fumar, a teimar e a ser dono do meu próprio nariz. Sempre adorei estar com os amigos, no meio de gente, de falar alto, de curtir a vida. Eu e meu pai tivemos discussões homéricas por conta disso, pois eu não concordava com o modo e opção de vida dele, assim como ele também não concordava com o meu. Foi somente alguns anos após meu primeiro casamento (casei aos 18) e depois de um tanto de lambadas existenciais que finalmente entendi que ambos estávamos errados: não fazia sentido nos compararmos. Ele, com todos seus defeitos, era ele, assim como eu, também com todos os meus, era eu. Apesar de aparentemente contraditório, foi somente com essa compreensão que veio a aceitação de que eu não precisava gostar de meu pai para amá-lo. Pois não adianta: eu sempre fui, sou e serei diferente de meu pai.

Do meu primeiro casamento, que durou cerca de dez anos, não tive filhos. Se os tivesse, provavelmente seriam da Geração Y, também conhecidos como Millenial: aqueles nascidos do começo dos anos 80 até meados da década de 90. Uma geração que desenvolveu-se em uma época de grandes avanços tecnológicos e prosperidade econômica, tendo crescido com muito do que seus pais não tiveram, como TV a cabo, videogames, computadores, vários tipos de jogos e muito mais. Internalizaram a tecnologia desde pequenos, acostumaram-se à multitarefa e a conseguir o que queriam, não gostando de se sujeitar às tarefas subalternas de início de carreira e por isso sempre trocando de emprego com frequência em busca de oportunidades que oferecessem maiores desafios e crescimento profissional.

Não, meus três filhos, todos de meu segundo (e último) casamento, pertencem à Geração Z, também chamada de Centenial. São aqueles nascidos a partir do final dos anos 90 até aproximadamente 2010 – o que é justamente o caso deles: Kevin em 1999, Erik em 2001 e Jean em 2004. Os que pertencem a essa geração são “nativos digitais”, pois nunca viram o mundo sem computador. São multitarefa, mas seu tempo de atenção é muito breve. Como informação não lhes falta, estão sempre um passo à frente dos mais velhos, concentrados em adaptar-se aos novos tempos. Seu conceito de mundo é desapegado de fronteiras geográficas, pois para eles a globalização não foi um valor adquirido no decorrer do tempo e a um custo elevado. Aprenderam a conviver com ela já na infância. Daí serem desapegados de conceitos históricos ou mesmo da história em si, pois o que interessa é que o presente é a estrada a ser pavimentada para o futuro. Seus maiores problemas são relacionados à interação social, pois, paradoxalmente, por estarem tão conectados virtualmente acabam por sofrer de falta de intimidade com a comunicação verbal.

Quando pequeninos e ainda cabiam em meu colo e eu em seus corações.

Acho que já perceberam onde essa história vai dar, né?

Sim, é isso mesmo: meus filhos são diferentes de mim. E principalmente com a chegada da adolescência essa diferença aumentou de forma exponencial. Tenho absoluta certeza de que a responsabilidade é só minha, pois no decorrer de sua infância até que fomos bastante parceiros, mas quando estavam crescendo e provavelmente mais precisavam de minha presença, eu estava ausente. Seria muito cômodo de minha parte alegar que foi em razão do trabalho, das responsabilidades, da política, ou do que quer que seja. Foi tudo isso, também. Mas na sua essência, não. Não mesmo. Eu estava muito ocupado (ainda) sendo e fazendo tudo aquilo que meu pai não gostava e não queria e não percebi que estava mais uma vez repetindo um ciclo de gerações. Ou sendo apenas o refluxo de mais uma onda na areia, afastando-me cada vez mais da margem. Não só o fosso que começou a nos distanciar acabou por se transformar num imenso vale, como eu ainda tive a capacidade – ainda que involuntária – de queimar todas as pontes pelas quais passei.

Kevin, Jean e Erik em 2020: Geração Z.

Talvez por sermos de gerações tão distintas – afinal “pulamos” toda a Geração Y – essa situação estivesse fadada a acontecer. Não sei. Não posso ter certeza. Mas sei que foi n’o ano que passei fora que tudo se consolidou pra pior, quando minha ausência começou a se fazer presente e nosso distanciamento de gostos e coisas se acentuou. Afinal, diferente de meus filhos, eu vivo com um pé nos dias de outrora pois acredito que a história, o passado, é que verdadeiramente nos ensina o caminho para o futuro para que não cometamos os mesmos erros – nem os nossos, nem os de nossos pais (ainda que, mesmo conscientes disso, acabemos por fazê-lo). Acredito também que a vida é feita de momentos (e mesmo assim, com eles, eu os estou perdendo um a um devido à minha própria negligência), por isso tenho uma profusão deles na minha memória: situações tanto corriqueiras quanto inusitadas que vivenciamos, momentos de carinho e de amor, circunstâncias de dor e de sofrimento, mas principalmente aqueles especiais, marcantes, o primeiro passo, a primeira palavra, a primeira conquista… Não os tenho todos de memória, mas esforço-me para guardá-los.

E é por isso que escrevo. Porque sei que a memória é curta e delével. Não conseguirei reter para sempre esses momentos, pois tudo é inconstante e passageiro. Até nós mesmos. Então é preciso deixar registrado. Porém a comunicação se torna tão mais difícil já que as poucas paixões que tenho (veículos antigos, motos, mecânica, história, genealogia, a família) sequer lhes interessam. E pela falta de interesses comuns até mesmo nosso diálogo restou comprometido. Ou praticamente inexistente. Quero ter a certeza de que meus filhos me amam, mas também sei que meramente me toleram. Então guardo tanto os meus quanto os nossos momentos em palavras impressas para que fique registrado que, de fato, existiram. Ainda que não se lembrem. Ainda que não se interessem. Ainda que não queiram. Mas essa foi a maneira que encontrei de conservá-los para mim, para eles e para quem mais queira apreender desse passado. Pois, independentemente de todos os meus erros, tenho um orgulho gigantesco de cada um de meus filhos, cada qual a sua maneira, e meu maior desejo é que algum dia eles venham também a ter orgulho de mim.

Essa é, hoje, a nossa realidade.

Talvez algum dia mude, não sei.

Como já havia dito, queimei as pontes pelas quais passei e não há retorno fácil, pois é preciso reconstruí-las. Sei que reconstruir pontes é uma tarefa árdua e difícil, mas também sei que tem que ser feito através de esforço mútuo a partir de ambas as margens que se encontram isoladas.

E é esse o desafio que devo me impor… É bem como diz a música: “É preciso amar as pessoas / Como se não houvesse amanhã / Por que se você parar pra pensar / Na verdade não há”. Estou desperdiçando tempo, idade, saúde e sanidade sem dar um passo sequer para consertar essa situação. É difícil. É doído. Mas é necessário ao menos tentar reconstruir o diálogo enquanto ainda há tempo. E mudanças drásticas serão necessárias. Rogo sinceramente para que eu tenha perseverança e que me seja concedida oportunidade para isso – bem como dizem as primeiras linhas da Oração da Serenidade:

“Deus,
Conceda-me a serenidade
Para aceitar aquilo que não posso mudar,
A coragem para mudar o que me for possível
E a sabedoria para saber discernir entre as duas.
Vivendo um dia de cada vez,
Apreciando um momento de cada vez (…)”

PS1: Tenho em casa muito bem guardada uma pasta que contém a maioria dos desenhos e recadinhos que meus filhotes costumavam me deixar antigamente, quando ainda tínhamos diálogo. Dentre eles tenho esta “planta da casa” – segue com a planta em escala (da época) para fins de comparação…

         

Legenda: no gramado do fundo nós jogando bola, à direita a churrasqueira soltando fumaça, no corredor à esquerda nossa cachorrinha Léa, no corredor à direita os latões de lixo, os quartos identificados com os móveis dispostos nos exatos lugares, o escritório com dois computadores, no banheiro alguém no chuveiro com sabonete na mão, a cozinha com sua bancada externa e na sala a mesa redonda que costumávamos ter.

PS2: A partir dessa música veio boa parte da inspiração para este texto. Ouçam a letra, com calma e atenção, do começo ao fim. Vale a pena.

Trabalho é dignidade

[Eis uma resenha saborosíssima publicada em 2015 pelo amigo virtual Jarbas Novelino lá no BTS – Boletim Técnico do Senac e também disponível em seu blog Boteco Escola. Dá no que pensar. Muito. Eu mesmo, por mais que seja apaixonado pelo trabalho que desenvolvo na área de licitações públicas – afinal de contas trata-se do desenvolvimento de todo um procedimento revestido de uma estrutura jurídica visando atingir algum fim específico para viabilizar que o Poder Público tenha a capacidade de atender à população –, ainda assim por diversas vezes já pensei em voltar aos românticos tempos da adolescência, quando meu maior prazer era trabalhar numa bicicletaria de bairro da periferia, de sol a sal, sujo de graxa, com pouca grana, mas extremamente realizado a cada serviço concluído. Feliz mesmo. Leiam. De minha parte vou ver se encontro esses livros por aí…]

CRAWFORD, Matthew B. Shop Class as Soulcraft: An inquiry into the value of work. New York: Penguin Books, 2009. 245 p.

GUILL, Michael Gates. How Starbucks Saved My Life: A son of privilege learns to live like everyone else. New York: Gotham Books, 2007. 266 p.

Trabalho é Dignidade: Visita a uma cafeteria e a uma oficina mecânica

O título desta resenha é uma afirmação do escritor F. Scott Fitzgerald, utilizada por Michael Gates Gill para definir o trabalho duro, intenso e comprometido de seus companheiros numa casa de café em Nova Iorque. Boa parte dos companheiros de Gates é composta por jovens negros que tiveram infância e adolescência vividas em duras condições dos bairros degradados da grande cidade americana. No trabalho e pelo trabalho, esses jovens ganharam a dignidade que lhes foi negada desde o nascimento. A afirmação de Fitzgerald é um convite para reflexões sobre relações entre o trabalhador e suas atividades. Trabalhar pode ser apenas um meio de ganhar a vida, mas pode também ser um modo de estar no mundo como um cidadão ou cidadã que tem orgulho do que faz.

O trabalho tem valores que lhes são intrínsecos. Pode ser uma atividade que nos traz muita satisfação, ou pode ser uma atividade vista apenas como meio de ganhar a vida. Neste último caso, ele produz a famosa síndrome da sexta feira, identificada em expressões de alívio de trabalhadores que proclamam alegria por escapar da chatice de suas profissões nos finais de semana.

Há quem sugira que a satisfação no trabalho deve ser responsabilidade do trabalhador. Nessa linha, competiria ao profissional descobrir como ele pode dar sentido ao que faz, não importando muito a natureza e conteúdo de suas atividades. Essa solução de tons moralistas não leva em conta o conteúdo do trabalho. De acordo com ela, qualquer profissão pode ser digna, dependendo da maneira pela qual o profissional lhe dá significação.

Estudos clássicos sobre degradação do trabalho como o de Paul Willis (1991) e o de Jean Rousselet (1974) mostram trabalhadores totalmente insatisfeitos com o que fazem para ganhar a vida. Na pesquisa feita por Willis junto a adolescentes ingleses de extração operária, as reações a propostas conformistas de valorização de um trabalho degradado são caracterizadas por revolta e ironia. No estudo feito por Rousselet sobre a situação laboral francesa no pós 68, o trabalho é visto com extremo pessimismo. Convém aqui oferecer uma mostra das observações feitas pelo sociólogo francês:

O fato de serem os valores relacionados com o trabalho os mais ameaçados hoje em dia não encontra apenas explicação no aparecimento de novas necessidades de consumo ou na generalização das inquietações juvenis.

Se tantos jovens, e até adultos, não hesitam em testemunhar nas suas opiniões ou condutas uma surpreendente indiferença por essa forma de atividade humana [trabalho], considerada, outrora, como essencial, é porque também, por seu lado, o progresso tecnológico começa a esvaziar a atividade laboral de significado moral, desumanizando-a de forma desordenada. (ROUSSELET, p. 137)

Essa visão pessimista do destino do trabalho na sociedade que se convencionou de chamar de pós-industrial perpassa toda a obra de Rousselet. Mais à frente, o autor observa:

O frequente exemplo das derrotas de toda a espécie só reforça em grande parte da juventude a ideia de que não existe, de fato, qualquer possibilidade razoável para a maioria dos trabalhadores escapar à mediocridade de sua condição e do determinismo sociocultural (ROUSSELET, p.172)

Análises como as de Willis e Rousselet não são muito lembradas nos dias de hoje. Elas contrariam o otimismo que predomina entre os formadores de opinião, educadores inclusos, que promovem a visão de que o trabalho está cada vez mais complexo, criativo e interessante por causa do ingresso crescente de tecnologia nas atividades produtivas. Há, porém, autores que apresentam um panorama em que a introdução de novas tecnologias segue caminho inverso, tendo como resultado empobrecimento do conteúdo do trabalho.

O trabalho numa oficina mecânica

Uma análise do valor do trabalho que merece atenção apareceu num livro que se tornou bestseller nos Estados Unidos: Shop Class as Soulcraft: An inquiry into the value of work, de Matthew B. Crawford.

Para apreciar Shop Class as Soulcraft é preciso inicialmente considerar quem é seu autor. Os pais de Crawford viveram intensamente os movimentos sociais dos anos sessenta. Seu pai é um cientista que pesquisa e ensina física em grandes universidades dos EUA. Sua mãe é uma ativista social que passou boa parte da vida em comunidades hippies. Na infância e adolescência, o autor não conheceu lares convencionais, pois vivia com a mãe nas comunidades das quais ela era membro muito ativo. Antes de iniciar seus estudos de segundo grau, Matthew Crawford trabalhou como eletricista. E em seus tempos de estudante, voltava a canteiros de obras nas férias de verão para exercer seu ofício na construção civil. No final da juventude, ele se interessou por mecânica de automóveis e, durante algum tempo, esteve empregado numa oficina que preparava carros de corrida. Matthew graduou-se em física. Em seus tempos de universidade encantou-se com filosofia e acabou fazendo mestrado e doutorado nessa área de conhecimento.

Após o doutorado, Crawford conseguiu emprego como executivo de uma organização não governamental, mantida por empresas da área de energia, que atua no campo de pesquisas sobre meio ambiente. Mas, ele não permaneceu muito tempo nesse emprego de prestígio e bem remunerado. Depois de sete meses à frente da organização, pediu demissão, comprou uma oficina de reparo de motos antigas e começou a ganhar a vida como mecânico. Cabe reparar que durante seus estudos de pós-doutorado, Crawford passava boa parte do tempo reparando motos num porão que ele alugou para exercer suas atividades no campo da mecânica.

O livro de Crawford analisa o trabalho a partir das experiências de vida do autor, um intelectual que resolveu deixar a academia para reparar motos que, muitas vezes, já saíram de linha ou cujas fábricas não mais existem. Esse destino profissional não é fruto de algum desastre ou de falta de oportunidades. É uma escolha motivada pela compreensão do que é o trabalho e de que atividades podem ser intelectualmente desafiadoras e psicologicamente compensadoras.

O título do livro faz referência a um ambiente que era comum em escolas americanas na primeira metade do século XX, a oficina (shop class). A Escola Nova e certa saudade das virtudes que eram atribuídas ao trabalho artesanal levaram as escolas americanas a instalar em seus prédios oficinas onde predominavam atividades de marcenaria e mecânica. Tais oficinas não tinham finalidade de capacitar trabalhadores por meio de engajamento dos alunos em atividades que exigiam produção manual de obras, mas a de garantir aprendizagens de valores importantes relacionados com o trabalho. Dos anos de 1970 para cá, há um número expressivo de ferramentas de qualidade em lojas que vendem artigos de segunda mão. Boa parte dessas ferramentas vem de oficinas escolares que foram desativadas. Em seu lugar surgiram laboratórios de informática.

A desativação das oficinas em escolas americanas vem acontecendo em nome daquilo que se convencionou chamar de sociedade do conhecimento. Crawford vê a medida como um engano dos educadores e dos formadores de opinião. Para ele, o fim das oficinas sinaliza falta de compreensão quanto ao significado do trabalho manual. Em sua análise, o autor lembra observação de um dos filósofos de Mileto, Anaxágoras: “somos mais inteligentes que os outros animais porque usamos nossas mãos”. O autor também faz referência à fenomenologia de Heidegger, lembrando que os objetos que manipulamos revelam saberes que estão nas coisas. Essas observações são alguns dos argumentos que Crawford utiliza ao mostrar acerto de sua decisão em deixar um cargo executivo muito bem remunerado para passar boa parte do dia com as mãos sujas de graxa reparando motos. Voltarei a esse contraste entre o trabalho numa oficina e o trabalho na gestão de uma organização que articulava saberes científicos para justificar decisões de empresas da área de energia. Mas, antes disso, convém examinar outros temas que o autor desenvolve em seu livro.

O protótipo de local de trabalho hoje é um espaço onde o profissional dispõe de uma mesa, um computador e outros instrumentos de informação. A visão otimista vê em tal espaço um local típico da sociedade da informação. Crawford, com alguma ironia, apelida tal espaço de cubículo, fazendo referência a Dilbert, The Office, uma história em quadrinhos que mostra os absurdos da vida dos trabalhadores em ambientes burocráticos. Logo depois que concluiu o mestrado, ele acabou conseguindo um emprego numa empresa que produzia resenhas de artigos científicos para sistemas acadêmicos de informação. Ao ingressar em tal atividade no Vale do Silício, o jovem mestre acreditava que faria um trabalho intelectual significativo. Acreditava que sua aprendizagem nos estudos universitários seria expandida com a leitura dos trabalhos científicos que ele deveria fazer para produzir resenhas. Mas, essa esperança logo se desfaz. A empresa de informação que o contratou criou um padrão de resenhas que mecanizou o trabalho. Além disso, estabeleceu cotas absurdas de produtividade. Ao atingir a competência esperada, o autor tinha a inacreditável meta de resenhar 28 artigos diariamente. Cabe aqui uma observação incidental. Na literatura de ficção científica, produção automatizada de textos é explorada no romance de ficção científica The Tin Man (FRAYN, 1965). No ambiente editorial pintado pelo romance há uma máquina que produz automaticamente reportagens, bastando que lhe forneçam alguns termos chave que podem definir acontecimentos merecedores de veiculação pela imprensa. Essa padronização do discurso, permitindo que a produção de textos ocorra de modo automático foi também explorada no campo da inteligência artificial com o programa Eliza, criado por Joseph Weizenbaum (1976). Em todos esses casos, elimina-se o julgamento humano por meio de padrões e rotinas que garantem a produção de textos aparentemente bem articulados. Máquinas e programas produzem tais textos sem qualquer referência à semântica. Ou seja, não operam no território dos significados. Quando os seres humanos operam do mesmo modo, há um completo esvaziamento do conteúdo do trabalho intelectual.

Crawford examina argumento que poderia ser utilizado contra sua crítica ao esvaziamento do trabalho na empresa da área de informação que o contratou, o de que as resenhas deviam ter qualidade porque eram bem aceitas pelo mercado. O autor entende que tal argumento é equivocado quando se examina a questão da qualidade do trabalho. O mercado ás vezes converte em artigos respeitáveis, produtos sabidamente inferiores. Isso explica, segundo Crawford, o sucesso do Windows. E essa respeitabilidade é apenas função do predomínio de algo para o qual não temos alternativa viável. Ao analisar sua experiência no episódio da produção mecanizada de resenhas, o autor insiste na ideia de que é desejável que o trabalho deve ser animado por virtudes que lhes são intrínsecas. Uma atividade esvaziada de conteúdo desestimula o profissional. Fazer bem um trabalho é desejo que nasce do próprio trabalho, não de incentivos ou motivos externos.

A ideia de que ocupações satisfatórias são aquelas cujo conteúdo de trabalho desafia e envolve o trabalhador de modo significativo, destacada no caso do episódio da elaboração de resenhas, perpassa toda a obra. Crawford mostra que o trabalho do mecânico é prazeroso, envolvente e, muitas vezes, mais desafiador do ponto de vista intelectual que as profissões burocráticas, as profissões do cubículo. A identidade profissional do mecânico é significativa no trabalho e na vida. No trabalho ela requer um envolvimento com atividades, desafios e realizações próprias de uma atividade que vale a pena. Na vida, ela oferece muitas satisfações pelo reconhecimento que as pessoas manifestam por alguém cujas obras (reparo de motocicletas) podem ser concretamente apreciadas.

Com o empobrecimento do conteúdo em muitas áreas profissionais, surgiu um movimento que sugere que o trabalho pode ser enriquecido pela criatividade dos trabalhadores. Para examinar tal movimento, Crawford escolhe exemplos apresentados por Richard Florida em The Rise of the Creative Class. Florida afirma que há milhares de novos Einstein, membros de uma classe criativa nos negócios. E essa classe é formada por gente muito jovem capaz de propor mudanças que alavancam lucros das empresas. E Florida, segundo Crawford não identifica esses trabalhadores criativos com grandes executivos, mas com gente do chão de fábrica ou do balcão de loja que contribui com ideias para melhorar continuamente a produção. A medida da criatividade dos novos Einstein é verificada por meio do lucro das empresas. Todo o discurso otimista sobre a suposta criatividade dos empregados não se vincula à satisfação que o trabalho pode assegurar nas atividades cotidianas, mas no sucesso empresarial das pequenas invenções dos novos gênios. O autor critica duramente essa perspectiva de uma criatividade espontânea. Convém citar um trecho da obra de Crawford sobre tal questão:

A verdade, porém, é que a criatividade é um subproduto da mestria cultivada por meio de longa prática. Parece que ela é construída por meio da submissão (pense num músico praticando escalas, ou em Einstein aprendendo álgebra tensorial). Identificar criatividade com liberdade combina bem com a cultura do novo capitalismo, no qual o imperativo de flexibilidade não permite dedicação a uma tarefa por tempo suficiente para desenvolver reais competências. (p. 51)

O que Crawford chama de submissão no texto citado é um mergulho em atividades que envolvem completamente seu executor e exige que ele respeite e aprecie os insumos com os quais interage para realizar uma obra. Esse modo de ver explica a migração do executivo de um escritório de luxo de Washington para o chão de uma humilde oficina de reparo de motos. Nos trabalhos burocráticos atuais, os trabalhadores não percebem claramente qual é o objeto de suas atividades. Não desenvolvem compromisso com obras. Isso, segundo o autor, é acentuado no caso da gestão. Os gestores já não administram produção de obras, administram tão somente satisfação/insatisfação dos empregados.

Volto ao aspecto que mais chama a atenção na história de Matthew Crawford, a saga de um doutor em filosofia que virou mecânico e escreveu um livro para justificar sua decisão radical. A explicação para isso é apresentada mais profundamente no capítulo Thinking as Doing. O autor observa que o atual sistema de ensino privilegia o conhecimento do que (knowing that) que se opõe ao conhecimento do como (knowing how). No campo de preparação para o trabalho, isso gera aspirações pelo exercício de ocupações que não são condicionadas pelas circunstâncias. Mas…”Nós geralmente não encontramos as coisas de modo desinteressado [desencarnado], pela simples razão de que as coisas que não nos dizem respeito são incapazes de resultar em engajamento interessado” (p.163). Em suas análises, Crawford apresenta o trabalho do mecânico como uma atividade que engaja as pessoas em relações significativas com os outros. Esses outros são pessoas, equipamentos, ferramentas, insumos. Todos eles grávidos de significado, em situações desafiadoras. Nessas relações há um saber sempre em construção, pois esse mundo imediato precisa ser transformado de alguma maneira pelo profissional e, ao mesmo tempo, o transforma. O fazer inteligente, necessário para transformar outros significativos, faz do trabalho (trabalho do mecânico) uma atividade que compromete o trabalhador com o resultado de seu trabalho. Em termos cognitivos, trabalhos assim mostram que é preciso fazer para entender. Ao contrário do que sugere o pensamento hegemônico, o fazer tem grande riqueza intelectual. O autor recorre a Heidegger para mostrar isso:

Uma das questões centrais da ciência cognitiva , com raízes na epistemologia predominante, tem sido a de como conceber como nossa mente “representa” o mundo, uma vez que mundo e mente são concebidos como inteiramente distintos. Para Heidegger, não existe o problema de representação do mundo porque o mundo apresenta a si mesmo originalmente como algo no qual já estamos inseridos e excluídos. Os insights do filósofo sobre o caráter situado da cognição cotidiana lança uma luz sobre o conhecimento especializado (expert knowledge), como o de bombeiros e mecânicos, que também está inerentemente situado. (p. 164)

Com a citação que faz referência a Heidegger, eu quis enfatizar as dimensões epistemológicas do fazer propostas por Crawford. Essas dimensões desafiam o lugar comum de um par antitético que assombra a educação, teoria e prática. O filósofo travestido de mecânico mostra que esse tradicional modo de ver é um equívoco que resulta em depreciação de trabalhos nos quais predominam atividades manuais. As transações entre sujeito e objetos naquilo que Heidegger chama de saber local são um conhecimento envolvente e significativo. Sem elas, o saber abstrato, proposicional, o saber do que, não poderia ser elaborado.

Os aspectos epistemológicos propostos por Crawford são interessantes e podem nos ajudar a superar dualismos que acabam resultando em visões equivocadas sobre a natureza do trabalho. Quero encerrar minhas considerações sobre Shop Class as Soulcraft, dando necessário destaque ás análises do autor sobre as dimensões valorativas de trabalhos manuais envolventes como o de mecânico, marceneiro, eletricista. Nessas ocupações, os profissionais, dado seu envolvimento com o significado intrínseco do que fazem, sempre estão comprometidos com a obra. Essa circunstância tem desdobramentos importantes no campo da ética. O atendimento a demandas de qualidade, postas pela natureza dos objetos com os quais o profissional interage, garantem realização de um trabalho que respeita todos os atores diretamente envolvidos. O mecânico tem profundo compromisso com as motos que repara, com os clientes que solicitam seus serviços e com a comunidade de prática com a qual ele compartilha os saberes da profissão. Para tudo isso cabe a frase de Fitzgerald: trabalho é dignidade.

O trabalho numa cafeteria

Outro olhar sobre o trabalho manual e as possibilidades que esse oferece para a realização pessoal é oferecido por livro que conta uma história inusitada: How Starbucks Saved My Life: A son of privilege learns to live like everyone else. A obra narra história de um executivo desempregado que, aos sessenta e três anos começou carreira nova como barista numa loja da Starbucks. O autor do livro é Michael Gates Gill, antigo diretor de criação de uma das maiores agência de propaganda do planeta. Depois de vinte e cinco anos dedicados à corporação, Gates é demitido. Profissional maduro, ele não procura nova colocação no mercado, parte para a carreira solo de consultor. No início, contando com antigos clientes da sua carteira dos tempos em que atuava na agência, consegue alguns contratos. Com o tempo, os clientes vão rareando, até a ocasião em que ninguém mais procura seus serviços. Por acaso, uma gerente da Starbucks lhe pergunta se ele não quer um emprego. Intrigado, mas desesperado com a falta de perspectiva que enfrentava, ele diz que sim. Tempos depois, de acordo com cronograma de recrutamento da empresa, ele é chamado e, apesar de sua idade madura e falta de experiência, é contratado.

Gates entra num mundo inteiramente desconhecido para ele. Seus companheiros de trabalho são muito jovens, quase todos negros, com pouca escolaridade, vindos de famílias desestruturadas. A própria gerente que lhe ofereceu trabalho era uma jovem afro-americana de vinte e oito anos que passara a infância e adolescência em lares provisórios. O autor, pelo contrário, era filho de família da elite, graduado por Yale.

O livro narra aventuras de aprendizagem das tarefas típicas de um barista da Starbucks, envolvendo higienização da loja, elaboração de vinte e oito diferentes tipos de café, atividades de abertura e de fechamento da loja, cuidados de reposição de itens do cardápio, operação do caixa, relacionamento com clientes. Para Gates não foi fácil aprender e desempenhar algumas atividades que demandavam muita agilidade física e força. Além disso, sua inabilidade para lidar com dinheiro gerou pavor no momento em que foi escalado para operar um dos caixas da loja. Ao mesmo tempo em que ele vai aprendendo a profissão de barista, cresce sua admiração por boa parte de seus parceiros na loja. Muito jovens, pobres, com experiências que beiraram a marginalidade, os companheiros de Gates trabalham como muita competência e desenvolvem um sentimento de dignidade que ele passa a admirar. Ao mesmo tempo, o antigo diretor de criação vai conseguindo enxergar que o trabalho braçal na loja de café demanda inteligência e envolvimento dos quais ele sequer suspeitava em seus tempos de executivo.

Gates compara sua vida de barista com sua vida de executivo. E, surpreendentemente, sugere que suas atividades na cafeteria são muito mais envolventes e compensadoras que suas atividades como publicitário. O livro é de uma literatura leve, sem voos profundos como os realizados por Crawford em Shop Class As Soulcraft. Mas, vale a pena considerá-lo em reflexões sobre o trabalho. O autor viveu uma experiência rara para os filhos da elite e apresenta uma contribuição que pode iluminar nossa compreensão sobre o significado do trabalho que envolve o profissional e dá sentido à sua vida.

Gates e Crawford falam de dignidade do trabalho com base em experiências que, infelizmente, merecem pouca atenção em análises sobre educação profissional e tecnológica. Vale a pena visitar a obra de um e outro para rever modos de olhar para a formação de trabalhadores em todos os níveis de ensino. Vale a pena visitar a obra de um e outro para verificar como se manifestam os valores que são intrínsecos ao trabalho.

Referências

FRAYN, M. The Tin Man. New York: Ace Publishing Corporation, 1965.

ROUSSELET, J. A Alergia ao Trabalho. Lisboa: Edições 70, 1974.

WEIZENBAUM, J. Computer Power and Human Reason: From judgment to calculation. San Francisco: W. H. Freeman and Company, 1976.

WILLIS, P. Aprendendo a Ser Trabalhador: Escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

Jarbas Novelino Barato. Professor. Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Tecnologia Educacional pela San Diego State University (SDSU).

Indigestão

O livro que atualmente estou lendo tem o título de Joãozito – A infância de João Guimarães Rosa. Foi escrito por seu tio-irmão – posto que compartilhavam praticamente da mesma idade e das mesmas traquinagens – Vicente Guimarães. Eis um trechinho saboroso para mera degustação:

De sua verve infantil, do pouco que dizia aquele menino caladão, quase nada anotado ficou na lembrança dos de mais idade. Nenhum outro caso engraçado, nem resposta interessante, que figurar pudesse na coleção de Pedro Bloch “Criança diz cada uma”.

Mamãe Chiquitinha apenas se recorda deste acontecido: Ela, Joãozito e suas filhas Iza e Zezé visitavam uma amiga que tivera criança. Encantados estavam com o recém-nascido, quando uma sobrevoz nervosa, a voz do dono da casa, se fez ouvir em repreensões gritadas. Ao chegar ao lar, ao santo lar, o chefe sendo dele, viu no sofá da sala, desrespeitoso, o namorado de sua cunhada beijando-a prolongadamente, nos lábios. Indecência! Sem-vergonhice! Desonra! Crime!… O tempo era outro, compreendamos. Décadas passadas!…

O ousado, degenerado criminoso, foi posto para fora aos gritos, e a mocinha, chorosa, de envergonhada face enrubescida escondida pelas mãos, recolhida ao quarto, para posteriores severas conversas e julgamentos impiedosos. De santa moça que era, aparente ingênua, passou a siguilgaita desavergonhada.

Que escândalo! A notícia, aumentada e comentada, propagou-se. Excelente prato-do-dia para um arraialzinho desnovidadeiro.

Era manhã seguinte. Joãozito estava na loja do pai, quando lá apareceu o malogrado. Pálido e de cara padecida, pediu um purgante, o “Rubinat”, corriqueiro purgativo, usual comum, vendido até nas outras casas comerciais.

Joãozito, ao ouvir o pedido de compra do moço, perguntou-lhe:

– Uai! Você está de indigestão de beijos?

Diário da Quarentena

Um relato sincero de um confinamento em família durante a pandemia

Antonio Prata

Algum momento em janeiro – Li num jornal sobre um vírus na China. Que viagem se preocuparem com um vírus na China. As pessoas morrem de dengue no Brasil e a imprensa preocupada com moléstia de morcego na Cochinchina?

15 de março – Duas semanas sem sair de casa. Minha irmã conseguiu um esquema de compra de álcool em gel 70% na dark-web. Ela comprou 100 litros para mim. A ex-namorada do meu primo é irmã de um traficante de cocaína, mísseis terra-ar e animais silvestres que me conseguiu 10 máscaras N-95 em troca do nosso Honda Fit, mais seis parcelas de R$ 2.000,00. Minha mulher ficou um pouco ressabiada com minha atitude intempestiva, mas foi convencida de que é melhor estar vivo sem carro do que morto com carro.

15 de março – Tem álcool em gel e máscara pra vender nas lojas Americanas a R$ 9,99 o litro e R$ 20,00 a dúzia. Frete grátis. Minha mulher ameaçou sair de casa. Eu disse que ela não podia sair de casa por causa da quarentena. Dividimos a casa. Eu fico quarentenado no lavabo, ela e as crianças no resto do apartamento. Ainda acho que saiu barato.

01 de abril – O traficante devolveu meu Honda Fit! Mentira: 1º de abril! (Sei que é estúpido tentar enganar a mim mesmo no primeiro de abril. Coisas da quarentena. No lavabo.).

20 de abril – Minha mulher teve dificuldades para abrir um pote de palmito. Pediu ajuda. Negociei bem: em troca, eu poderia usar o resto da casa. Sorte que minha mulher ama palmito mais do que me odeia. Vitória!

23 de abril – As crianças não aguentam mais ficar fechadas no apartamento. Liberamos Netflix o dia inteiro. Liberamos sorvete o dia inteiro. Banho só aos domingos. O único ponto em que conseguimos não transigir foi sobre fumarem cigarro e beberem uísque antes do meio-dia. Isso não. Eles têm seis e cinco anos, precisam de regras.

26 de maio – Começaram as aulas em casa, com apostilas e lives por hang-out. Ao contrário do que eu pensava, não é só conectar e deixá-los ali. Tem que ficar do lado o tempo todo ajudando. Buscando régua. Buscando tesoura. Buscando “botões de diferentes cores”. Buscando “barbante ou outro tipo de linha”. Ensinando como põe e tira do mudo. Explicando que caxorro não é com x. Reconectando quando cai. Não consigo mais trabalhar. Nem comer. Nem dormir.

27 de maio – Eu e a minha mulher decidimos acabar com essa história de homeschooling. (Adaptando aquela piada do cunhado: se homeschooling fosse bom, não tinha “choo” no meio). Caso eu morra e este diário venha a público: Pedro, Bel, Paula, cunhado e cunhadas queridos, amo vocês. É só uma piada pra mim mesmo no meu diário. Coisas da quarentena.

3 de junho – Meus filhos se revoltaram por não ter aula. Liberamos sorvete e Netflix desde o café da manhã e cigarro e uísque depois das dez. Insistimos para que não fumem na cama nem na cabana da Peppa, pelo risco de incêndio.

187 de junho – Sim. Cento e oitenta e sete de junho. Os dias não passam. As semanas não passam. Estamos presos em 2020. #diadamarmotafeelings.

Julho. Acho – Tomei todo o uísque das crianças. Peguei a máquina de fazer barba e cortei o meu cabelo e o delas. Liguei pra uma ex-namorada da quinta série, chorando. Vomitei em cima do quebra-cabeças de 2000 peças da Patrulha Canina que minha mulher e as crianças estavam terminando de montar. Tuitei contra a #foicedesaopaulo e a #globolixo e só lembrei que eu trabalhava para a Folha e a Globo quando ligaram de lá para me demitir. De volta pro lavabo. Rezando para que saia logo a vacina. Ou para que ainda haja na despensa algum pote de palmito.

Seja você também um herói

Se você é um daqueles que acredita que é “só uma gripezinha”, que esse negócio não se transmite tão fácil, que o pior já passou, que a cloroquina é sua tábua de salvação, ou qualquer outra dessas “verdades absolutas”, por gentileza, pode parar de ler por aqui. Adeus.

Continuou?

Pois bem. Aproveitando uma ideia lá do blog dois:pontos, do Hélcio Costa, acerca de máscaras e heróis – e não vamos aqui tratar dos “heróis de verdade”, ou seja, médicos, enfermeiros, bombeiros, policiais (alguns) -, quero demonstrar que, mesmo no mundo dos quadrinhos, os heróis e super-heróis podem pisar na bola nessa época de pandemia.

Vejamos alguns dos principais personagens desse universo:

Nota Zero: Superman, Supergirl, Mulher Maravilha, Aquaman, Ajax, Capitão Átomo, Shazam, Doutor Estranho, Thor, Viúva Negra, Capitã Marvel, todo o Quarteto Fantástico e até mesmo o poderoso Hulk. Nenhum, NENHUM, deles usa máscara em nenhum momento. No afã de salvar a tudo e a todos, não só estão correndo o risco de contrair o Coronavírus, como também – pior – se algum deles for portador (e que talvez não venha a ter nenhum sintoma devido aos seus poderes) será um vetor de contaminação para toda a sociedade. Lamentável.

Nota Um: Arqueiro Verde, Lanterna Verde, Batman, Robin, Batgirl, Ciborgue, Flash, Capitão América, Wolverine, Demolidor, o lendário Zorro e até mesmo o antiquíssimo Mightor. Na realidade a nota também deveria ser ZERO, mas estou dando um desconto pelo fato de que pelo menos alguma máscara existe. Mas os riscos de contaminação são exatamente os mesmos do grupo anterior, pois equivale àquelas pessoas que apesar de sair para as ruas com máscara, ainda assim a utilizam de forma errada, deixando o nariz de fora ou simplesmente com a singela função de segurar a papada do queixo.

Nota Cinco: Homem de Ferro. É. Só ele e mais nenhum outro nesta categoria. Poderia até ser uma nota dez, mas como o ego do Tony Stark é gigantesco, a maior parte das vezes que ele está de armadura e vai conversar com alguém, levanta a máscara e expõe seu rosto. E com isso, os olhos, o nariz, a boca e todos os perdigotos que puder lançar no ar e para quem quer que esteja na sua frente.

Nota Dez: Spawn e Homem Aranha. Estes são os campeões! O primeiro não tira a máscara nunca, pois é um ser infernal feio de doer, enquanto que o Peter Parker, apesar de toda sua coragem, morre de medo que descubram sua verdadeira identidade. Com isso não correm risco de se contaminar nem de contaminar ninguém. Parabéns!

Enfim, a brincadeira é essa, mas o negócio é sério. Na vida real não podemos nos dar ao luxo de correr o risco: nem de contrair, nem de contaminar. Então seja você também um herói. Use máscara. Sempre. E só para não deslembrar: