Asterix ajuda a entender o Capitalismo

Sérgio Domingues
em Janeiro de 2004

Comparar Obelix e Companhia, de Goscinny e Uderzo, às obras de Marx, Engels, Lênin, Rosa, Trotski, Gramsci, não tem nenhum sentido. Mas, essa pequena obra-prima em quadrinhos merece a atenção de quem luta contra o capitalismo.

“Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos… Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Laudanum, e Petibonum…”

A apresentação acima acompanha todos os álbuns de Asterix, personagem do italiano Albert Uderzo e do francês René Goscinny. A série de 31 álbuns é um dos exemplos do que há de melhor na literatura em quadrinhos.

O que a introdução não explica é que os “irredutíveis” gauleses devem sua invencibilidade a uma poção mágica. A bebida dá aos aldeões uma enorme força física e seus efeitos duram o suficiente para destruir qualquer tentativa romana de conquistar a aldeia. Esta, na verdade, simboliza o nacionalismo francês.

Cada álbum da dupla é uma obra-prima feita de belos traços e cores, humor, roteiro, ironia, conhecimento histórico e muita inteligência. Mas um deles é tudo isso e ainda pode ser usado para mostrar como as relações capitalistas podem corroer laços comunitários de convivência. Trata-se de Obelix e Companhia.

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A história começa com a imagem da fortificação de Babaorum, a mais próxima da aldeia gaulesa (Prancha 1-A). As legiões romanas, famosas por sua disciplina e dedicação, estão entregues à mais terrível indisciplina e ao mais completo ócio. Só esperam a chegada das legiões que ficarão em seu lugar. As razões? A desmoralização diante das sucessivas surras tomadas dos gauleses.

Vou fazer algumas observações a que chamarei de parênteses. Os leitores que os acharem desnecessários ou quiserem tirar suas próprias conclusões, podem seguir o texto principal sem prejuízos para a compreensão da história.

Enquanto isso, César, em Roma, está desesperado por uma saída para o impasse diante da aldeia de Asterix. Convocou senadores e patriarcas para aconselhá-lo na tarefa. Dentre estes, está Regius Velhacus, recém formado pelo “reformatório de ensino superior”. Ele propõe a César derrotar os gauleses por meios não militares. Através da corrupção pelo ouro. César se interessa.

Mas, um dos presentes discorda. Diz que o melhor ainda é a boa e velha força bruta. Ao ouvir isso, César diz a ele: “Sim, Pediculus, eu me lembro! Você era um jovem tribuno corajoso, audaz, até pensava nos problemas do povo…Agora, com o ouro dos saques, veja em que você se transformou!” Depois, dirigindo-se a todos: “Sim! Vejam o que o ouro, as vilas, as orgias, as comissões na compra de armas fizeram de vocês! Gordos e decadentes!…” (Prancha 9-A)

César vira-se para Velhacus e pergunta: “Você acha que pode transformar aqueles gauleses em algo parecido com isso?”, apontando para os gordos patriarcas. A resposta: “Pode crer! Eles vão lutar por outra coisa e nunca mais para defender sua aldeia!” (9-B).

Os primeiros parênteses: há, nos Estados Unidos, quem defenda um modo mais eficiente de acabar com o regime cubano do que o embargo econômico. Bastaria estabelecer as mais amplas relações comerciais com a ilha. O efeito corrosivo da presença dos produtos capitalistas mais avançados colocaria por terra um sistema de poder que usa como pretexto a penúria a que o povo cubano foi condenado pela brutalidade norte-americana. Esta aventura de Asterix poderia dar razão à tese.

Velhacus parte para a Gália. Por acaso, encontra Obelix na floresta que separa a fortificação romana da aldeia gaulesa. Como sempre, o grande gaulês carrega um menir(1) de sua própria fabricação. Velhacus encontra o pretexto para por seu plano em ação. Compra o menir e pede para entregar mais um na fortificação romana no dia seguinte. Obelix faz mais um menir e o leva a Velhacus. Este lhe diz que vai pagar o dobro do que pagara pelo anterior. Diante do espanto de Obelix, o romano explica as razões do aumento nos seguintes termos: “… problemas de da economia, fluxo de oferta e demanda…reversão atípica das expectativas. Flutuação cambial…é complicado” (13-A).

Javali é o prato preferido na aldeia e o único item na gordurosa dieta de Obelix. Mas com o aumento das encomendas de menires, Obelix já não tem tempo para caçar. Se vê obrigado a oferecer dinheiro a um outro aldeão, Analgesix, para caçar javalis para ele.

Asterix estranha a intensa produção de menires e questiona Obelix. Este dá sua explicação nos termos em que aprendeu a pensar com Velhacus: “…Se a demanda for igual à quantidade de bens produzidos, divididos pela quantidade de moeda boa, multiplicada pela quantidade de moeda má que sai de circulação, os preços cairão” (15-B).

A vida da aldeia começa a entrar em colapso. Obelix recebe cada vez mais dinheiro de Velhacus. Passa a contratar gente para ajudá-lo na fabricação de menires. Ao mesmo tempo, outros aldeões são desviados de suas funções normais para caçar javalis. Estes são vendidos para quem não tem tempo de caçar por estar trabalhando para Obelix.

Ao sair para caçar, Asterix descobre que a floresta está apinhada de caçadores de javalis devido ao surgimento da troca de javalis por dinheiro.

As relações conjugais também não vão bem. Uma das mulheres da aldeia se insinua para Obelix, uma vez que ele comprou todo os belos tecidos do mercador que visita a aldeia regularmente. Obelix a contrata para fazer-lhe uma roupa. O marido cobra o almoço. Mas ela se nega a preparar a refeição porque está costurando para Obelix. “Como não posso contar com você, preciso arranjar um meio de ganhar dinheiro”, diz ela. (23-B e 24-A).

Mais parênteses: o enredo mostra como a forma de troca de mercadorias entre os aldeões vai se alterando. Antes eram trocas entre produtores diferentes. O peixeiro comprava do ferreiro, mas este também seria fornecedor do peixeiro, quando ele precisasse de uma nova balança ou de facas. O dinheiro está presente, mas seu caráter intermediário é mais claro. Com a especialização da aldeia na fabricação de menires, todo o resto começa a girar em sua órbita. Já não circulam produtos e serviços através do dinheiro, mas dinheiro através de produtos e serviços. Há uma passagem de O Capital, de Marx que diz: “… uma mercadoria não se torna dinheiro somente porque todas as outras nela representam seu valor, mas, ao contrário, todas as demais nela expressam seus valores, porque ela é dinheiro. Ao se atingir o resultado final, a fase intermediária desaparece sem deixar vestígios. (…) Ouro e prata já saem das entranhas da terra como encarnação direta de todo trabalho humano. Daí a magia do dinheiro.”

Asterix sente que está em andamento um plano para desunir a aldeia. Prepara a reação. Estimula todos os moradores a entrar no negócio dos menires para concorrer com Obelix. A confusão aumenta. O ferreiro, o peixeiro, o quitandeiro, todos largam suas tarefas tradicionais para também fabricar menires. Ao entusiasmo geral pela nova atividade, Asterix adiciona um aumento de produtividade através do uso da mais avançada “tecnologia” local: a poção mágica. O resultado são entregas cada vez maiores ao acampamento romano.

A consequência é que César começa a se desesperar com a quantidade de menires que chega a Roma. Velhacus o tranquiliza. Diz que vai estimular a compra de menires, usando um marketing todo específico: “As pessoas compram, diz ele, A – o que é útil, B – o que é confortável, C – o que é agradável, D – o que causa inveja nos vizinhos. Está no item D o ponto básico da campanha.” Propõe a massificação. Cita as qualidades que devem ser ressaltadas: “A – durabilidade, B – ineditismo e C – outras qualidades que ainda vou descobrir” (32-A).

A prancha 34-A mostra Velhacus apresentando a César os produtos que inventou para transformar a posse de menires em moda: Togas com menires bordados, relógios solares com ponteiros em forma de menir, jóias com o mesmo motivo e um estojo “faça você mesmo” com martelo e talhadeira para uso familiar.

Parênteses: É uma ideia comum a de que o capitalismo inventa coisas desnecessárias para serem vendidas. No entanto, esta é uma discussão complexa. Qual o limite entre o que é estritamente necessário e o que passa a ser supérfluo? Muito difícil de determinar. Claro que alimento, vestuário e habitação poderiam ser considerados o nível mais básico. Mas em regiões muito quentes, a nudez total seria a regra? Não é o que se verifica. Mesmo entre indígenas em regiões tropicais, os adereços e acessórios simbólicos fazem parte da vida social. Não há uma relação direta entre necessidade e uso. Além disso, hoje já é muito comum ver tribos inteiras vestidas com roupas urbanas, mesmo que não sejam necessárias devido ao clima. Aí, já entra o fator da dominação cultural.

Em O Capital, ao discutir quanto deve ser a soma dos meios necessários para manter a vida normal de um trabalhador, Marx diz que “a soma dos meios de subsistência deve ser (…) suficiente para manter no nível de vida normal do trabalhador”. Mas, adverte que um elemento histórico e moral entra na determinação desse valor. É o caso de indígenas vestidos com camisas do Flamengo, usando relógios de pulso e consumindo bebidas e comidas estranhas à sua tradição e, teoricamente, inadequadas ao ambiente em que vivem.

Mas nem tudo dá certo. Começam a aparecer contradições. Um fabricante romano de menires inicia um movimento protecionista. O fabricante, que se chama Malentendidus, é questionado por César: “Que história é essa?” O fabricante responde: “Os menires gauleses estão colocando em risco a sobrevivência da classe empresarial”. César discorda: “Mas quem fabrica são os escravos”. Malentendidus: “Justamente! O trabalho duro é o único direito do escravo! Não podemos lhes tirar esse direito!” (34-B e 35-A).

A situação evolui para ações concretas. Uma barreira é colocada na entrada de Roma. Numa faixa está escrito “Menires Gauleses Go Home” (35-B).

Parênteses: Um momento muito feliz dos autores. Primeiro, antecipam em pelo menos 15 anos (o álbum é de 1976) as contradições entre a globalização e os interesses de setores nacionais burgueses. Um famoso representante desses setores é José Bové(2), que é francês e lembra Asterix. Em segundo lugar, os escravos romanos não poderiam ter direitos, pois eram considerados coisas. Do ponto de vista formal e real, equivaliam a animais de tração. Portanto, Goscinny e Uderzo devem estar se referindo aos proletários atuais. Estes acreditam ter direitos. Mas só os têm do ponto de vista formal. Do ponto de vista real, seu único grande direito é o trabalho duro. Basta notar que em tempos de ditadura ou de ataque aos trabalhadores, direitos como o voto ou o salário-desemprego podem ser rapidamente suprimidos. Mas o direito a ser explorado continua valendo, nem que seja de modo informal e precário.

As táticas consumistas de Velhacus perdem fôlego. Menires começam encalhar nos estoques e a ser vendidos em liquidação. “Em cada compra de um escravo, dois menires de graça”, diz um anúncio talhado em mármore (37-A).

César pega Velhacus pelos colarinhos, chacoalha e diz: “Foi por sua causa que quase abri falência e quase entramos em guerra civil! Nem mesmo Brutus me prejudicou tanto!” (37-B). Despacha o marqueteiro para a Gália para resolver o problema. Lá chegando, Velhacus simplesmente suspende a compra de menires.

Ao descobrir que os romanos já não querem comprar mais menires, os gauleses começam a se desentender. Uns acusando os outros de concorrência desleal. Mas Asterix lhes faz notar que os verdadeiros culpados são os romanos. Convida-os a acertar tudo com eles. A prancha 43-A mostra Os gauleses entrando numa coluna arrasadora pela fortificação de Babaorum, destruindo tudo e colocando os romanos em fuga. Inclusive, Velhacus.

A cena final é aquela que fecha todas as aventuras de Asterix. Um grande banquete, com muito vinho, os inevitáveis javalis e muita diversão. Só não há música porque o único bardo da aldeia tem uma voz horrível. Durante os banquetes, fica amordaçado e amarrado a uma árvore.

Parênteses de encerramento: Podemos entender a vitória gaulesa sobre a estratégia de Velhacus como a impossibilidade de que relações capitalistas se estabelecessem naquele momento histórico. Ainda citando O Capital, Marx diz que “só aparece o capital quando o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra o trabalhador livre no mercado vendendo sua força de trabalho, e esta única condição histórica determina um período da História da humanidade.” Essas condições não aparecem nem em Roma, em que a força de trabalho é escrava, nem na aldeia, em que os moradores possuem seus próprios meios de produção (ou de subsistência através da caça e da coleta). Voltando ao exemplo cubano, a ilha governada por Fidel apresenta as duas condições. Força de trabalho assalariada e meios de produção controlados pelo Estado e não pelos trabalhadores.

Mas é claro que os geniais criadores de Asterix não pretendiam qualquer exatidão histórica. O domínio do formato satírico lhes deu liberdade para fazer a crítica de aspectos da atual sociedade capitalista em plena antiguidade romana. E o fizeram de forma magistral através de um material bonito, divertido e fácil de assimilar. Que tal usá-lo em cursos de formação?

Notas:

(1) Segundo o dicionário Houaiss, menir é um monumento megalítico do período neolítico, geralmente de forma alongada, altura variável (até cerca de 11 m) e fixado verticalmente no solo. Podia servir de marco astronômico. Também pode representar o totem ou outros espíritos, frequentemente apresentando traços figurativos.

(2) José Bové é criador de ovelhas e líder da Confederação Camponesa da França. Tornou-se conhecido em 1999 ao liderar a invasão de uma lanchonete McDonald’s na França em protesto contra a globalização econômica. No final do mesmo ano, em Seattle, nos Estados Unidos, Bové participou de manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC). Participa dos Fóruns Sociais Mundiais.

Acabou!

Marco Aurélio

No começo, ficou todo mundo meio sem acreditar. Parecia um sonho. Depois de tanto tempo fechados em casa, finalmente chegava o final da quarentena.

— Acabou! — gritou um na rua. Outro, outro. Uma senhora da janela. — Acabou!

A humanidade podia enfim respirar. Melhor: respirar sem uma máscara na cara. A vacina demorou, mas saiu. Meses depois, o primeiro antiviral eficaz contra o novo coronavírus. Com uma esforço tremendo de governos, corporações e indivíduos de todo o globo, a doença foi erradicada do planeta.

Quando saiu a notícia, todos ficaram desconfiados. Ninguém sabia mais como sair à rua, como respirar sem duas camadas de algodão separando o rosto da atmosfera. Aos poucos foram saindo. Um, outro, outro. Acabou! Nas ruas e calçadas, começou um movimento espontâneo: pessoas jogavam suas máscaras de todos os tamanhos e formatos, com todas as estampas, despejavam álcool gel sobre elas e acendiam o fogo. Nunca mais isso.

— Vou ficar três meses sem lavar a mão!  —  disse um.

— Eu não preciso mais dar banho nas minhas compras!  —  se deu conta uma moça, maravilhada.

E a alegria quando se deram conta de que era possível novamente tocar outras pessoas? Estranhos se abraçavam e beijavam na rua. Divórcios de quarentena se desfaziam, reconstruindo casamentos. Casais de namorados separados pela pandemia tiravam o atraso de meses de desejo represado.

Foram duas semanas de glória e esperança no futuro da humanidade. A vida seria melhor, mais leve, mais solidária. Velhos rancores se amainaram. Armistícios foram declarados. Dívidas, perdoadas. O otimismo geral refletiu no mercado financeiro. Havia no ar uma promessa de prosperidade inédita na história humana.

E aí veio o asteroide.

Rúbrica

Na coluna “Dicas de Português”, publicada hoje no “Correio Braziliense”, a Professora Dad Squarisi cita um erro de português que a incomoda: a pronúncia da palavra rubrica como proparoxítona. Fez-me lembrar de um fato ocorrido na década de 1960, numa determinada unidade do exército no Rio de Janeiro, onde eu atuava como oficial intendente. Elaborei um ofício a determinado órgão requisitando material para o nosso almoxarifado, com o registro da rubrica em que o produto se enquadrava. O documento, levado ao major fiscal administrativo para assinatura, foi devolvido para que se colocasse acento agudo no “u” da palavra rubrica. Peguei um dicionário da língua portuguesa do Hildebrando de Lima e fui até o oficial para mostrar-lhe que não cabia o acento recomendado. A resposta foi mais ou menos nos seguintes termos: “Aprenda, Tenente Carrano, que no exército quem manda é o seu superior, e não um dicionarista qualquer. Coloque o acento, como recomendei”. Daí se pode entender, depois da exoneração de dois ministros da saúde que quiseram seguir uns cientistas quaisquer, o motivo de o Jair Messias ter colocado um militar à frente do Ministério da Saúde.

Pedro Carrano, 77 anos, Genealogista

Cavaleiros do Apocalipse

Nelson Moraes

Os quatro cavaleiros do Apocalipse entram num bar.

– Sabe – diz a Morte, recostando-se ao balcão e pedindo aquela que matou o guarda – , acho que cansei.

– Cansou do quê? – pergunta a Guerra, pedindo um Silver Bullet. – Eu, que não tenho um minuto de paz, é que já devia pendurar as chuteiras.

– Muito engraçado vocês falarem isso – diz a Fome, jogando o cardápio longe porque nele só tem bebida. – Dou expediente integral nos quatro cantos do mundo e nunca foi cogitada sequer uma licença remunerada.

– Ai, que lindo – fala a Peste, pedindo uma Corona. – As três divas agora resolveram entrar em crise existencial conjunta? O que falta mais, assinar uma nota de repúdio?

– Você só fala isso – replica a Guerra – porque não trabalha igual a gente. E só aparece de tempos em tempos. Expediente de freelancer é outra história.

– É mesmo? – a Peste volta a dizer, acentuando o sarcasmo e virando a long neck.– Pois vocês reclamam de barriga cheia (inclusive você, Fome, sua poser). Não veem o drama que é ser freelancer, e viver sempre por conta própria.

– Como assim? – pergunta a Guerra.

– Simples – a Peste responde. – Vocês todas têm quem banque vocês, queridas. Onde vocês aparecerem sempre haverá alguém respondendo pelo feito. Guerra? Não falta quem assuma a responsabilidade. Fome? É só olhar os embargos internacionais ou governantes corruptos que desviam os recursos alimentares. Morte? Potencialmente cada habitante da Terra é um assassino. Agora pra Peste não tem refresco (falar nisso, desce outra Corona). Nunca aparece um responsável por ela. Quando ela surge é sempre subestimada, tratada como detalhe ínfimo, uma doencinha, ninguém liga a mínima, e quem registra a presença dela ainda é tachado de alarmista. Mas basta ela crescer e se mostrar em toda a sua pujança pra todo mundo imediatamente começar a tirar o corpo fora: ninguém tem culpa, as autoridades teoricamente competentes lavam as mãos (sem duplo sentido, por favor), acusações são trocadas por todos os lados mas ninguém assume o estrago. No final ela sai pela porta dos fundos, como a única vilã, e a Humanidade respira aliviada, como se não houvesse tido o menor envolvimento no acontecido. A Peste fica como uma fatalidade intercorrente na História, tipo um terremoto ou tsunami, ponto. – Aí a Peste seca outra long neck. – E aí?

– É – diz a Fome. – É mesmo de perder o apetite.

– Sim – confirma a Guerra. – Viver desse jeito é uma batalha.

– É de matar, mesmo – fala a Morte. – Não tem nada pior que isso.

– Tem sim – fala a Peste, já ligeiramente bêbada.

– O quê? – dizem todas.

– Aguentar esses trocadilhos óbvios de vocês.

As outras três se entreolham, trocando um “iiiiiiiiiiiiih” imaginário e lembrando que quanto mais bêbada mais rabugenta a Peste fica. Depois de um curto silêncio – e da Peste pedir a quarta long neck – a Morte vai à jukebox e coloca It’s the End of The World as We Know It, do R.E.M., pra ver se anima a colega.

– E tem mais – estende-se a Peste, já com a voz pastosa. – Se somos as quatro do gênero feminino, o nome não tinha que ser as quatro amazonas do Apocalipse?!?

É a deixa pra Morte arrastar a Fome e a Guerra pra mesa de sinuca.

Brasil, entre o soco e o grito

Marcelo Dias

Eu não sou gamer. Gosto de jogar videogame de vez em quando. É divertido, porque nos jogos você resolve tudo na estupidez. Tem que resgatar a rainha presa em uma torre? É só enfiar a espada em todo mundo. Na vida real eu partiria para um papinho. “Bora lá tomar uma breja e ver se rola um acerto?” É menos emocionante, eu sei. Mas dói menos.

O Brasil parece que virou um videogame multiplayer gigante, onde a única solução é explodir tudo e todos até acabar com o outro time. Como videogame poderia ser divertido. Mas trata-se da vida real, então a questão não é ser divertido. Não importa quem ganhe, na vida real o time perdedor continua no jogo. Perdedores e vencedores têm que conviver. Dureza.

Eu daria um reset no Brasil, se fosse possível. Ou devolveria para os índios com um bilhetinho bacana de desculpas. Não sei se eles aceitariam. “Tá fora da garantia”, diria um cacique. Talvez o jeito seja dividir o país em dois. Uma parte para Bolsonaristas ferrenhos e outra para Lulistas convictos. Seja lá quem for ficar com o litoral, eu tô com eles. Tenho minhas convicções políticas. E troco tudo por uma praia com caipirinha.

Só que não dá para dividir o país. Nem continuar em clima de guerra. Talvez a solução seja aquela que eu citei no começo. Bora tomar uma breja?

Eu sei, não tem muita graça dizer isso, mas a solução é ter mais diálogo, sim. Antes, é bom esclarecer: “diálogo” envolve duas ou mais pessoas que falam e ESCUTAM. Duas ou mais pessoas discursando sem dar a mínima para o outro não é diálogo. É sobreposição de monólogos. E, pelo visto, quem anda por aí pedindo mais diálogo não quer diálogo coisíssima nenhuma. Quer mais espaço para falar.

Bolsonaro já disse que está “aberto ao diálogo”. E a gente sabe que Bolsonaro está para a palavra “diálogo” como Alexandre Frota está para “romantismo”. A direita prefere bater, porque bater é uma espécie de monólogo com punhos. E não pense que a oposição está melhor. A esquerda também pede diálogo, só que prefere gritar. Tanto que adora uma manifestação. Manifestação é um monólogo com megafones: fala-se alto para não dar chance de resposta.

O diálogo que todos dizem querer está perdido em algum lugar no meio, entre o soco e o grito. E isso não quer dizer que a solução seja o “centrão”. Porque o centrão não é partido, não é nada. É um balcão de mercearia.

Por isso, talvez valesse a pena aprender com o filósofo Sócrates a como estabelecer um diálogo. Ele costumava parar pessoas na rua para travar debates nos quais disparava várias perguntas. E nessa troca de ideias ele construía um raciocínio. Muitas vezes ele esmigalhava os argumentos do outro. Perceba: antes ele os ouvia. Mais do que cuspir certezas, ele fazia perguntas. Você pode até achar isso meio besta, mas não se esqueça de que ele ainda é considerado um dos maiores filósofos gregos. Respeita o cara.

Por aqui, a regra do jogo é “ninguém ouve ninguém”. É uma bela porcaria de regra que empata tudo. Quando se discutiu a redução da maioridade penal, por exemplo, ficamos encurralados entre “reduzir a maioridade” ou “deixar tudo como está”. Em termos de criminalidade, nenhuma das duas ideias resolve absolutamente nada. No mundo existe uma penca de soluções que ficam entre essas duas opções. Alguém quis estudá-las para discutir o tema? Não muito. Saiu todo mundo berrando e batendo para ver quem vencia na marra. Parece medieval. E é mesmo. É o oposto do que Sócrates faria.

Você pode continuar achando que o outro lado é ignorante, burro, comunista, fascista, tosco e “ai que ódio dessa gente”. Sem ouvir o que eles têm a dizer a coisa não anda. Não custa tentar. Quer mais diálogo? Ótimo. Mas OUÇA MAIS ALTO. Nem que seja para esmigalhar melhor os argumentos.

Bolsonaro é o troll que você alimentou

Edson Aran

O problema do cerumano é que ele alimenta os trolls. Todo mundo sabe que não se deve dar comida para a criatura horrenda, mas há certa dificuldade em identificá-la com segurança. De vez em quando, o troll se disfarça de hobbit ou de elfo e se apresenta apenas como alguém preocupado com o país, o mundo e a sociedade. É picaretagem. Basta você engatar uma conversa, que o bicho parte pra cima com memes, gifs e piadas ruins.

O humor do troll é bastante peculiar. Ele nunca usa a ironia e prefere sempre o sarcasmo. Ironia é escrever uma coisa para dizer outra. Sarcasmo é menosprezar o argumento e também o argumentador.

Ironia é florete, sarcasmo é porrete. Ironia é duelo, sarcasmo é tiroteio. Ironia é o Muhammad Ali dançando, sarcasmo é o Rodrigo Minotauro espacando.

Discutir com troll é garantia de virar alvo de tiro, porrada e bomba. Mas esse nem é o problema. O problema é quando esses monstros saem da virtualidade e entram na realidade. Antigamente, eles só causavam irritação nas redes sociais. Agora não. Agora eles vão pra Brasília atacar jornalistas, fazem dancinha com caixão na avenida Paulista e, pior, vencem eleições.

Donald Trump é o exemplo mais notável dessa raça odiosa. Ele é o Master Troll, o King Troll, o Poderoso Troll. Trump é tosco, vulgar e ignorante. Ele é um comentário de Facebook que ganhou vida. Olhe bem para ele. Trump é um avatar humano desenhado no CorelDRAW. A pele é falsa e alaranjada e o cabelo é igual ao daquele brinquedo dos anos 80, o Duende da Sorte. É tudo falso. Trump nem é gente e, por isso, a trollagem é seu único programa de governo. Se a gente não vivesse numa aldeia global interligada digitalmente, isso seria um problema só dos Estados Unidos, mas infelizmente não é mais assim. O americano tosco inspira vários trolls periféricos como Jair Bolsonaro, por exemplo, que é um Trump do Terceiro Mundo, feito com peças de segunda mão e material vagabundo. É um troll ainda mais patético, mais vulgar e mais grotesco que o original, que já é um horror.

Aqui e lá, a campanha eleitoral das criaturas foi na base da trollagem. Era só fake news, palavrão, xingamento, óculos de pixel e muita esculhambação. Tudo linguagem de troll transposta para a arena política.

Mas quem foi que alimentou e engordou os monstrengos? Foi ocê, dona. Desculpa a sinceridade. Foi a senhora.

A esquerda ficou chata, rancorosa e pentelha. E é isso que alimenta o troll. Pra falar a verdade, nem dá pra chamar esses chatonildos de “esquerda”. A divisão esquerda-direita faz sentido na economia, onde o papel do estado define uma posição. Mas é complicado usar a mesma régua para medir a chateação pseudo-sociológica do, argh, politicamente correto, que é autoritário, carola e antidemocrático igualzinho à velha direita.

A esquerda (ou a “esquerda”) virou uma espécie de síndica de condomínio que passa o dia inteiro inventando regrinhas e regulamentos. Não pode falar isso, não pode falar aquilo, não pode usar essa palavra, não pode mencionar essa expressão, não pode tirar sarro do vizinho, não pode frequentar a piscina com esse biquíni indecente e não pode ouvir funk ostentação.

Isso tudo é alimento de troll, dona “esquerda”. O esculacho conquista seguidores, rende audiência e também dá votos. E esculachar gente chata sempre foi a maior diversão do ser humano.

Eu sou do tempo da esquerda festiva, que bebia até resolver todos os problemas do mundo enquanto contava piadas péssimas e cantava todas as mulheres da mesa. “Que comportamento desprezível!”, a senhora diz. Então tá. Talvez fosse. Só que depois a gente ia pra urna e ganhava a eleição. A “esquerda” fiscal-de-condomínio vai pra urna e perde. Tomou, papuda?

A gente precisa voltar a beber e contar piadas ruins. A gente precisa parar de alimentar os trolls. A gente precisa é voltar a trollar os trolls.