As enfermeiras

Drauzio Varella

A assistência médica no Brasil é centrada na figura do médico.

A epidemia que enfrentamos agora, provocada por um vírus contra o qual ainda não existem vacinas nem medicamentos específicos, ressalta o papel decisivo de enfermeiras, técnicas de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogas e o pessoal de limpeza e desinfecção das enfermarias e UTIs, enquanto reserva aos médicos funções mais discretas nas equipes que atuam nas linhas de frente.

É voz corrente que as enfermeiras ajudam os médicos a cuidar dos pacientes, inversão de valores injusta –nós é que as ajudamos, quem cuida são elas. O padrão de atendimento de um hospital ou de um serviço ambulatorial de saúde é estabelecido pelo corpo de enfermagem, aos médicos cabe interpretar exames, definir as linhas gerais do tratamento e prescrever as medicações indicadas.

Diante de uma epidemia dessas, em que receitamos apenas drogas para aliviar sintomas e cuidados respiratórios que dependerão de fisioterapeutas para os exercícios necessários e do ajuste fino dos aparelhos de respiração mecânica, nossas prescrições têm impacto limitado na evolução dos infectados, especialmente daqueles em estado grave.

Amparar o doente enfraquecido no caminho até o banheiro, pegar veias invisíveis para administrar soro e os antibióticos, trocar o pijama e os lençóis da cama, recolher a urina, dar banho depois de um episódio de diarreia e tranquilizá-lo nos momentos de fragilidade psicológica na solidão das madrugadas não são tarefas realizadas por médicos.

Para alguém que se recupera de uma pneumonia, são fundamentais os exercícios respiratórios e os procedimentos que dependerão do contato direto com o doente e do empenho de fisioterapeutas. O médico se limita a anotar na prescrição “fisioterapia respiratória”.

Ciosos de nossa exclusividade dos assim chamados atos médicos, impedimos que outros profissionais exerçam atividades para as quais foram preparados, depois de frequentar quatro ou cinco anos de universidade, muitas vezes seguidos de cursos de pós-graduação. Não deixamos que se encarreguem nem sequer de alguns acompanhamentos ambulatoriais que não conseguimos fazer.

Entre outros exemplos, está o controle da pressão arterial de quem sofre de hipertensão, crucial para evitar complicações que encurtam a vida e aumentam os custos do SUS e da saúde suplementar.

Entregamos aos pacientes uma receita com os medicamentos que devem tomar, muitas vezes sem esclarecer com a devida ênfase a natureza crônica da doença e suas possíveis consequências nem reforçar a necessidade da aderência ao tratamento. O resultado é catastrófico. No fim do primeiro ano, perto da metade interrompeu a medicação. Entre os demais, estão os que o fazem de forma irregular e aqueles que mantêm níveis de pressão ainda elevados sem desconfiar.

Se os controles da hipertensão e de outras enfermidades crônicas ficassem a cargo da enfermagem e dos farmacêuticos que a legislação obriga a estar presentes na farmácia da esquina, em contato direto com os pacientes, não seria mais inteligente?

Não é ridículo obrigar estudantes a passar quatro anos nas faculdades de farmácia e bioquímica para deixá-los de plantão em funções burocráticas, nas drogarias?

É claro que não caberia a esses profissionais prescrever hipotensores, hipoglicemiantes, antibióticos e outros tratamentos que exigem formação especializada, mas explicar como os remédios devem ser tomados, quais os efeitos colaterais mais comuns, as possíveis interações medicamentosas e encaminhar ao médico aqueles com má resposta à medicação prescrita.

Pequenos municípios com grande dificuldade para atrair médicos podem estruturar as equipes do Estratégia Saúde da Família –considerado um dos melhores programas de saúde pública do mundo– sob o comando de enfermeiras que tenham acesso a unidades básicas de saúde de cidades mais próximas, para transferir os casos que não cabem a elas resolver.

Não se trata de deixar que os mais pobres recebam cuidados precários, mas de garantir acesso à assistência aos que não têm nenhuma. Basta criar protocolos com critérios rígidos, de modo que cada profissional conheça os limites de sua atuação e possa executar as funções para as quais foi preparado.

Que a epidemia sirva para criarmos novos modelos de atenção à saúde.

Das trincheiras da dor, brotou uma flor

James Deam Amaral Freitas

São tempos difíceis. Medo e morte estão impregnados no ar e, como se não bastasse, são contagiosos. O mundo padece de sua busca desenfreada pela própria aniquilação, já que as promessas ilusórias de sobrevivência rapidamente se traduziram em desigualdades, opressões, violência, destruição. Às custas de um micro-organismo ameaçador, a sociedade globalizada escancara suas mazelas e demarca ainda mais suas fronteiras.

O vírus inimigo, em cujo nome ostenta-se uma coroa, não briga por poder, nem por status, até porque seu tamanho é da ordem de nanômetros e sua visibilidade inacessível a olho nu. E justamente por não ter vocação alguma para a ostentação, ele expõe nossa mania de grandeza ao ridículo, desnudando nossa vulnerabilidade e nossa incapacidade de aceitar a mais letal de todas as ameaças: o ser (de)sumano.

Nessa batalha, à medida que o vírus ocupa os hospitais e as estatísticas de mortalidade, somos obrigados a desocupar as ruas, os espaços públicos; a diminuir o ritmo, o barulho, a poluição; a nos afastar para nos proteger de nós mesmos. Confinados e sem máscaras de proteção respiratória e social, demonstramos estar impregnados de uma dualidade cruel, que tanto cura quanto mata; tanto transcende quanto oprime; tanto aprende quanto limita.

Por um lado, os senhores da guerra, que nunca gostaram de crianças, mulheres, idosos e toda espécie de gente carente de dinheiro e poder, oferecem o sangue alheio em favor da economia, do mercado financeiro, dos lucros e da prescrição das vidas que não devem viver. Por outro, o mundo em pausa dá mostras dos benefícios da ausência humana: bosques, rios e mares limpos; espaços urbanos tranquilos; carros estacionados; ruídos sísmicos, vibrações causadas na crosta terrestre, diminuídos. E nessa batalha entre os gritos dos perversos e o silêncio dos que têm alma, a vida tem se transformado em questão de opinião.

Apesar de tudo, há juízo em meio a histeria; trégua diante da batalha. A esperança é capaz de atravessar as esquinas do mundo e se espalhar. Foi nessa travessia que ela veio encontrar as mãos habilidosas e solidárias de Bernarda Costa, uma mulher que, na grandeza dos seus 87 anos, decidiu dar sua contribuição no combate à pandemia, a partir da confecção e doação de máscaras de tecido. Seu universo de atuação era modesto, a pequena cidade de Santa Quitéria, no interior do Maranhão. Destinada a vizinhos e amigos, sua produção não tinha vaidade de larga escala. Todavia, o que faltava em proporção, sobrava em atitude, compromisso e inspiração. Sua iniciativa exemplar disseminou pela cidade e contagiou inúmeras voluntárias, que colaboraram com a costureira na produção de mais de 1000 máscaras de proteção.

Bernarda é, sem dúvida, uma entusiasta da vida. Representa a esperança encarnada no corpo de uma mulher nordestina, que aprendeu a cultivar sua força e coragem, na aridez do solo e da sociedade excludente. Ela é como a flor do mandacaru, capaz de suportar as intempéries do tempo, as quais podemos denominar quarentena, e ser reserva de vida na natureza, ou de afeto em períodos de horror.

Há uma guerra em curso. Incerta e cruel como todas as outras. Mas há Bernardas e mandacarus para dissipar a descrença e trazer à tona a debilidade dos senhores espinhos e a potência da cura em flor, que se abre a um universo capaz de, solidariamente, se reinventar.

O homem está levando uma surra de um micro-organismo, apesar de sua proverbial arrogância

J. C. Guimarães

O prejuízo econômico começa a aparecer e já é estratosférico. Da ordem do trilhão de dólares. Mas os números não param de aumentar. Apenas no próximo semestre enxergaremos o Everest em toda a sua plenitude. E será espantoso. A economia planetária deverá suportar o golpe, mas já ninguém duvida que ela está levando um ippon universal. Quem será o mastodonte capaz de derrubar o mundo?

Desta vez, a economia é só um reflexo. A causa vem de outra parte. Sob qualquer aspecto que se olhe, a humanidade está passando por um período de medo. Primeiro, literalmente o medo da morte (cuja origem, nos dias que correm, é única para quase todos os terráqueos), e segundo o medo de ficar pobre, quebrar, perder a renda e até passar fome. Continuar vivo é a melhor opção, mas, segundo os prognósticos, será duro. Estaremos pagando o preço por algo de errado que fizemos contra a mãe Natureza? É um caso a se pensar, tendo em vista que ela não fala: envia sinais. E é bastante irônica. Por algumas semanas o céu ficará mais azul, graças a um patógeno assassino que paralisa chaminés e escapamentos. Goela abaixo, porque o ser humano a desdenha. É arrogante.

O ano de 2020 já é uma data de alta relevância histórica, sobretudo por sua perturbadora excepcionalidade. Provavelmente nenhum ser humano vivo testemunhou (ou imaginou testemunhar) os efeitos de uma pandemia global. Nem nunca imaginou que uma cápsula proteica invisível, formada de ácidos nucleicos e às vezes de lipídios e proteínas, cujo tamanho médio não passa de 150 nanômetros — ou seja, invisível até para os telescópios ópticos — fosse aquele “mastodonte”, com força suficiente para afugentar nossa complexa civilização. O homem está levando uma surra de um micro-organismo. Apesar de sua proverbial vaidade.

Um vírus — que em grego significa “veneno” — é tão estranho que nem sequer existe consenso se se trata de um ser vivo. Mesmo assim consideram-no um parasita. Não deixa de ser horripilante (e impressionante) a ideia de que desta vez um hospedeiro — portanto um parente de Alien — é o nosso inimigo comum, aqui como no Japão. Em outras palavras, estamos lidando com uma “criatura” biológica como nós.

O medo só não é maior porque essa coisa não tem o nosso tamanho para vermos o quanto sua aparência é asquerosa e nojenta. Sua fonte de energia e condições de replicação está em nossas células. Levou-nos, de fato, a uma guerra. A vida e a morte estão em jogo, e lágrimas correm aos milhares todos os dias há vários meses, em decorrência do ataque deste inimigo implacável. A expressão “hospital de campanha” — usada normalmente em conflitos armados, entre humanos — tornou-se parte de nossa rotina, no Brasil como nos Estados Unidos, nestes como na Itália ou Espanha. Gostamos de fazer comparações: pois bem, o número de mortos até a data de publicação deste texto corresponde já ao de militares norte-americanos mortos na Guerra do Vietnã, em 20 anos. Ou: um estádio lotado. Em quatro meses.

Algo está unindo a humanidade de forma assustadora, assolada de maneira brutal. Nem de perto se compara à gripe espanhola em 1918, mas a quantidade de contaminados já passa do milhão: a escala numérica que nos aproxima daquele outro vírus. Entre doentes efetivos e vítimas latu sensu, somos bilhões em todo o mundo. Pois o mundo parou como nunca se viu. Não há registro de coisa igual. Um dos três pilares da economia — a produção — estancou e ameaça colapsar, abaixo de seus dependentes. Até a grande indústria, excluindo a de alimentação, paralisou suas atividades. Foi freada por um “simples” parasita, que nos obriga a todos ficar em casa. Com medo. Se saímos à rua — é inevitável em alguns momentos da quarentena, pois carecemos de provisões — temos uma desconfortável sensação de estar levando um fantasma para dentro de casa, ao retornar para o abrigo.

A depender de quanto tempo isso dura, é previsível que o caos se instale. Que guerras civis explodam. Talvez não agora, mas numa pandemia mais prolongada, futuro adentro. Porque elas são cíclicas e só podemos nos preparar. Tentar, ao menos. Certos absurdos já são um fato, aqui e agora. É muito estranho, de repente e ao mesmo tempo, ver quase todas as atividades humanas pararem. Muito estranho saber que frotas inteiras de jatos comerciais estão no chão: é real. Muito estranho ver tantas pessoas usando máscaras, e você ser uma delas (o que estarão pensado disso os mendigos?). Muito estranho não podermos simplesmente nos encontrar com nossos colegas, parentes e, principalmente nosso pai, nossa mãe e nossos avós. Que mal poderia haver em gestos tão caros de simpatia e amor? Muito estranho ver as contas de água e energia, e até impostos!, serem suspensos. Muito estranho testemunhar o Estado, mesmo nas economias ultra-capitalistas, bancar a sobrevivência de maciços contingentes populacionais e de um percentual alarmante de empresas, obrigando-nos a rever certos conceitos. Não há um incêndio, uma torre caída, um bombardeio aéreo, nada… Bem, talvez haja um inusitado bombardeio aéreo.

Enfim, é muito estranho também você sair á rua em pleno meio de semana e encontrar as ruas desertas, como num gigantesco feriado meio apocalíptico. E, ao mesmo tempo, ter a sinistra certeza de que um certo exército está sendo mobilizado, e que seu esforço e suor heróicos triplicaram por nossa causa; a certeza de que as UTI’s estão a todo vapor, tanto quanto as funerárias.

Simplesmente impensável que coisas assim pudessem acontecer. Ou mesmo existir. É de fato assustador. Como numa distopia.