Comida de Boteco

Dia desses, num breve proseio com o copoanheiro de plantão, falávamos sobre um tal de concurso que estão fazendo pelas redondezas: “petisco de buteco”.

É lógico que não poderíamos, juntamente com nossos fermentados e destilados de praxe, também deixar de destilar nossa etílica criatividade para um evento de tal pompa e circunstância! E se você tem estômago fraco então pare de ler este texto neste exato momento! Não só porque você não aguentaria uma verdadeira comida de boteco, mas também porque os níveis de ironia, sarcasmo e tiração de sarro seguem num tom bem elevado, provavelmente acima do suportado por pessoas sensíveis como você…

Continuou, né? Tá bom. Por sua conta e risco, então.

Pois bem. Ele me perguntou se eu havia lido o tal do edital desse concurso e comentou que parecia que tinha uma taxa de cem contos pra participação. Do edital já lhe adiantei que nem sequer passei perto, pois tenho mantido minhas leituras naquilo que importa pro meu ofício, então não vou gastar minha vista com um monte de letrinhas juridicamente embaralhadas – e que provavelmente levariam meu senso crítico a um outro estágio de sarcasmo. E quanto à taxa de participação, meu, CEM CONTOS? Sinceramente, não sei se a informação procede ou não, mas vocês não tem ideia de quantos “petiscos de buteco” dá pra fazer com essa grana!

E acho que foi aí que chegamos ao cerne da questão: será que o organizador desse concurso REALMENTE sabe o que é um boteco? Por mais louvável que seja a iniciativa, me parece que não. Pois boteco, boteco MESMO, é outra coisa. Talvez esse sujeito esteja acostumado não com botecos, mas sim com bares, lanchonetes, restaurantes, petiscarias, mas isso também é outra coisa. Provavelmente, diferente da realidade de um boteco, ele deve frequentar locais que possuem mesas com toalhas de linho, garçons pronto a servi-lo, maître para organizar o local, chefs para cuidar do cardápio, coristas seminuas dançando no palco bem em frente, enquanto que ali à direita, num pole dance, tem uma fantástica ruiva que… Não! Péra! Isso é outra coisa…

Enfim.

Onde estávamos?

Ah, sim. Boteco.

Boteco é um lugar em que o dono chega todo dia pontualmente sabe-se lá a que horas, abre as portas de aço, arruma as caixas de bebida num canto, entre as mesinhas de plástico e as de lata (às vezes tem algumas de madeira também), limpa a bagunça da noite anterior, dá uma varridinha de leve (os cantos das paredes são tradicionalmente arredondados de tanta poeira), desentorta a bandeira do seu time pendurada na parede, se benze em respeito à imagem do santo que fica no outro canto, recebe as pessoas, serve as bebidas, faz as comidas e ainda cuida do caixa. Às vezes tem algum membro da família pra ajudar (a esposa, o filho vagabundo ou aquele cunhado que ninguém suporta), às vezes não. Nesses casos, quando precisa pagar alguma conta na lotérica mais próxima, pega um dos cachaceiros de confiança pra “cuidar” do estabelecimento enquanto estiver fora, não sem antes dar uma boa medida no nível das garrafas de cachaça e outras bebidas que ficam ali, bem do lado da pia. O que ele não sabe é que o caboclo dá suas bicadas do mesmo jeito – mas depois completa com água!

Boteco vem de botequim, diminutivo de botica, derivado do grego apótheke, palavra cuja origem remonta a milhares de anos no passado e pode ser toscamente traduzida por algo como “casa de bebidas onde se reúnem pés sujos, cachorros, violeiros, cachaceiros e outros sujeitos bons de proseio”.

Apesar de uma tradicional confusão cultural, é importante lembrar que um boteco não é um bar. Nem mesmo um bar ruim, como diria Antonio Prata, estando mais próximo da definição do Leonardo Boff… Etimologicamente eu diria que boteco está para bar assim como moleque para criança, velho para idoso, futebol de rua para pelada. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Mas voltemos ao concurso.

Concluímos que se fôssemos nós a fazer um concurso de Comida de Boteco (“petisco” é muito fresco e “buteco” é uma corruptela que falta para com o respeito tanto à língua portuguesa quanto aos botecos de verdade – na minha nada humilde opinião, é claro), teríamos então que montar uma planilha de quesitos rigorosíssima e com uma pontuação condizente à realidade da coisa.

Já na primeira leva de palpites pensamos em algo específico em relação à comida em si: fragrância (cherança); substância (sustança); crocância (mordança); abundância (êita porção servida!); ignorância (arre égua!!!); e, ao final, é claro, ânsia.

Deveríamos também considerar a situação jurídica do estabelecimento: se possui documentação e impostos em dia; se as coisas tão atrasadas mas é do antigo dono que faleceu; se não sabia que precisava de tudo isso pra abrir um boteco; se tem que enxotar todo mundo e fechar as portas rapidinho sempre quando chega a fiscalização. Pontuação inversamente proporcional à regularidade do local.

Aliás, falando em fiscalização, concordamos de bom grado que se o boteco tiver alvará da Vigilância Sanitária já estará sumariamente desclassificado do concurso, deixará de ser considerado um boteco e ainda sofrerá boicote pelos cachaceiros da cidade!

Outro quesito importante: a chapa. Se tiver chapa. Uma chapa limpa e bem cuidada demonstra um nível de asseio inaceitável para o preparo de uma verdadeira comida de boteco. A graduação da pontuação começaria pela simples análise de quantidade de gordura acumulada, aumentando de acordo com os restos de outros lanches que tenham passado por ali e atingindo sua nota máxima caso sejam encontradas substâncias totalmente desconhecidas e inexplicáveis – mas que ainda assim proporcionam à comida aquele gostinho tão bão…

Já para as frituras serão analisadas a qualidade do óleo e a idade da panela. Caso o mesmo óleo não tenha sido utilizado para pelo menos cinco tipos diferentes de frituras (incluídos aí peixe, pastel e coxinha) não será sequer pontuado. A panela deverá obrigatoriamente possuir crostras negras de idade que remontam a eras geológicas por toda sua volta. Gambiarra no cabo (se tiver cabo) e furos tapados contam pontos extras.

O cozinheiro é um item à parte. Tá certo que existem aqueles botecos em que os donos já trazem “pronto de casa” ou mesmo que compram daquela tiazinha que acorda às quatro da manhã e prepara os salgados pra no mínimo metade dos bares da cidade. Mas não é disso que estamos falando. Ao preparar seus quitutes – quer sejam lanches, porções, frituras ou seja lá o que for (afinal de contas quase tudo levemente comestível ou mastigável pode ser considerado como “comida de boteco”) é importante avaliar tanto a forma de preparo quanto as condições do cozinheiro: se usa luvas descartáveis; se usa luvas NÃO descartáveis; se lavou as mãos; se cortou as unhas; se existe explicação pr’aquele preto debaixo das unhas; se ao menos tem unhas. Panos de prato também serão pontuados à parte de acordo com o nível de cândida acumulado que venha a ser encontrado nas tramas do tecido. Se for encontrada (o que garantiria uma pontuação extra). O manuseio também será avaliado: se o pano de prato permanece dobrado à disposição ali de ladinho; se encontra-se pendurado num gancho próximo; se está preso no lateral da gaveta do caixa; se fica no ombro do cozinheiro e é o mesmo que utiliza para enxugar os copos, limpar o balcão, enxugar o suor da testa, secar o sovaco e, eventualmente, assoar o nariz.

A apresentação tem diversas variantes, passando pela tradicional estufa em cima do balcão, invariavelmente com bandejinhas ostentando pedaços de carnes indefinidas praticando nado sincronizado naquela piscina olímpica de gordura e óleo, como também salgados amanhecidos dos mais diversos tipos (ovos cozidos coloridos, por serem representantes de uma outra época, garantem muitos pontos adicionais) até a simples vitrine com uma ou duas moscas varejeiras do lado de dentro atestando a qualidade do alimento. O suporte pode se dar através de pratos de louça, plástico ou isopor (limpos ou não); guardanapos de papel que podem ou não segurar aquela gordura pingando e escorrendo nos dedos; e mesmo a clássica retirada com uma pinça e entrega diretamente na mão mesmo do cliente. Saquinhos de papel de padaria, ainda que usados e com restos de farelo de pão, bem como pedaços de jornais em tiras podem eventualmente ser aceitos, desde que, neste último caso, seja de no máximo uma semana (não pelo estado de conservação, mas por só trazer notícia velha).

A forma de degustação está diretamente ligada à disponibilidade do ferramental. Explico. Quesitos específicos avaliarão se a iguaria sob análise deve ser apreciada com a utilização de talheres, palitos ou guardanapos. Os quesitos seguintes avaliarão se existem talheres, palitos ou guardanapos. A pontuação continuará de acordo se os talheres são ou não lavados regularmente; se os palitos são comprados, reaproveitados ou feitos em casa; se o guardanapo é de pano, papel absorvente ou aquele negócio de qualidade e origem indecifráveis, que raramente limpa algo e que fica naquelas papeleiras inoxidavelmente enferrujadas bem no meio da mesa. Pontuação extra levará em consideração a necessidade de que, com ou sem ferramentas, as mãos tenham que ser usadas na degustação e se foi possível limpar aquela meleca residual que escorreu por entre os dedos num guardanapo ou, na ausência de guardanapo, na borda da toalha da mesa ou, se a toalha for de plástico, qual foi o tamanho e a consistência da mancha que tenha ficado na calça. Mais pontos extras se nunca mais for possível usá-la.

Acompanhamentos obrigatórios de acordo com o tipo de comida servida podem também render pontos extras, sendo aceitáveis e pontuáveis elementos do tipo suco, refrigerante, cerveja, vinho do garrafão embaixo do balcão, cachaça, azeite, orégano, coentro, pimenta, pimenta forte, pimenta muito forte, pimenta da braba mesmo, água-água-pelamordedeus, Epocler, Eno, e outras variantes. No caso da cachaça ser o acompanhamento, quer seja da tradicional, quer seja da artesanal (hmmm… aquela amarelinha…), aos juízes fica proibida a degustação de mais de três iguarias por sessão, bem como voltar pra casa dirigindo, assim como a utilização de celular para enviar mensagem para aquela ex que não quer vê-lo nem pintado de ouro, mas pela qual ele sempre chora quando está de fogo.

No que diz respeito aos juízes qualquer um pode ser aceito, independentemente de currículo, não importando a cor, a raça, o sexo, a preferência sexual, a religião, o partido político, o time que torce, sendo apenas imprescindível que nenhum desses temas jamais seja discutido no boteco, mesmo sabendo, é lógico, que vão ser. A única exigência é que ao menos um deles, por razões óbvias, tenha que ter o apelido de “avestruz”…

Enfim, meus queridos, brincadeiras à parte, no que diz respeito ao tradicional boteco como o conheço, prefiro mesmo é ficar com as palavras finais daquele excelente texto do Leonardo Boff:

O boteco é um estado de espírito, o lugar do encontro com os amigos e os vizinhos, da conversa fiada, da discussão sobre o último jogo de futebol, dos comentários da novela preferida, da crítica aos políticos e dos palavrões bem merecidos contra os corruptos. Todos logo se enturmam num espírito comunitário em estado nascente. Aqui ninguém é rico ou pobre. É simplesmente gente que se expressa como gente, usando a gíria popular. Há muito humor, piadas e bravatas. Às vezes, como em Minas, se improvisa até uma cantoria que alguém acompanha ao violão.

Ninguém repara nas condições gerais do balcão ou das mesinhas. (…)

Se bem repararmos, o boteco desempenha uma função cidadã: dá aos frequentadores especialmente aos mais assíduos, o sentimento de pertença à cidade ou ao bairro. Não havendo outros lugares de entretenimento e de lazer, permite que as pessoas se encontrem, esqueçam seu status social e vivam uma igualdade, geralmente, negada no cotidiano.

Aliás, em tempo: caso alguém queira se aventurar na cozinha para tentar fazer alguma tradicional Comida de Boteco (quer venha a seguir as regras acima ou não), eis aqui algumas dezenas de receitas para que possa experimentar: Receitas do Festival de Comida de Boteco – BH.

E vê se me chama, hein?

Vencido é a mãe!

Essa história já é um pouco antiga, quando os tempos eram outros e este nosso anti-herói de plantão ainda não tinha a vida regrada e familiar que hoje leva… Vamos chamá-lo de “Fred”.

Pois bem, lá estava ele com a sua já habitual insônia atravessando mais uma dessas noites quentes de Verão. Vira pra um lado, nada. Vira pra outro, nada. Desiste. Maldita insônia! Melhor dar uma olhada no que está passando na TV, fumar um cigarro, sei lá – distrair-se de alguma forma.

Mas cadê cigarro?

Só então lembrou-se de ter jogado o maço fora pouco antes de tentar começar a dormir, quando deu cabo do último sobrevivente!

“Bem, a noite é uma criança – mal passa de uma da matina – e já que estou com um carro aqui à disposição, melhor sair pra comprar mais dessas pílulas cancerígenas para atravessar o restante dela”, foi o que disse de si para si em uma bem lógica conclusão. Nessa época morava num bairro chamado Jardim Paulista e a única padaria 24 horas que sabia estar aberta ficava lá pelas bandas do Centro, há alguns quilômetros de distância.

E assim o fez. Foi, tranquilo, dirigindo e vendo pelo caminho um tanto daquele povo que estava indo ou vindo da balada, uns ainda sóbrios, outros nem tanto, bem como algumas moçoilas do ramo que estavam por ali para vender a única coisa que tinham para vender…

Chegou na padaria, de cara já pediu dois maços e – por quê não? – também duas latinhas de cerveja. Quem sabe com um pouquinho de teor alcoólico o sono não viria antes do amanhecer do dia? Entrou no carro e tomou seu rumo, de volta pra casa, desta vez atravessando o Anel Viário da cidade.

E eis que no meio do caminho havia uma batida policial. Um comando da polícia, no meio do caminho!

“Tudo bem! Podem até me parar, pois duvido que hoje encontrem alguém mais sóbrio e acordado que eu!”, foi o que pensou enquanto olhava para as duas latinhas intocadas, dentro de uma sacola, no banco do passageiro.

– Documentos!

– Pois não, seu guarda… Aqui está o meu e aqui o do carro.

Nisso o oficial se afastou para conferir sabe-se lá o que junto à viatura enquanto ele permaneceu bem ali, dentro do carro, fumando um cigarro e torcendo para que ele voltasse com um bafômetro! Ah, isso seria muito divertido!

– Senhor, queira sair do veículo, por gentileza.

– Pois não, seu guarda! – respondeu num exagerado tom de gentileza que, junto com o sorriso que ostentava, beirava a zombaria…

– Sinto muito, senhor, mas vamos ter que apreender o veículo.

– CUMÉQUIÉ? COMO ASSIM “APREENDER O VEÍCULO”???

– Acontece que o licenciamento está vencido desde o dia trinta e o senhor não pode transitar com o veículo nessa situação. Conforme consta no artigo 230 do Código de Trânsito Brasileiro é necessário que eu…

– Mas seu guarda, espera um pouco, vamos conversar, tá bom? Veja bem, este carro é da minha mãe e ela sempre foi muito cuidadosa no que diz respeito à documentação. Simplesmente não é possível que ela tenha deixado vencer o documento de… PÉRAÊ!!!

– Pois não, senhor?

– Você disse que o documento venceu no dia trinta? Dia trinta agora? Mas HOJE é dia trinta!

– Não, senhor, hoje é dia primeiro. Dia trinta foi até a meia-noite de ontem.

– CUMASSIM? Mas isso não faz nem duas horas! O que você está me dizendo é que este veículo vai ser apreendido simplesmente porque o documento venceu de ontem pra hoje? Há apenas duas horas ou menos?

– Exatamente, senhor. Vencido é vencido.

De nada adiantou argumentar, apelar para o bom senso, para o superior imediato, lembrar do local em que se encontravam, da distância até sua casa, do horário, nada. O sujeito era irredutível.

Absurda, insólita, inacreditável situação. Mas ainda assim, verdadeira! Aos olhos daquele guarda o documento estava simples e irremediavelmente vencido. Ora, vencido estava ele pela bur(r)ocracia que determinava a fria obediência à lei pelo diligente oficial – ao qual as denominações que passavam pela cabeça de nosso amigo não eram lá assim tão diligentes e muito menos publicáveis neste nosso cantinho de respeito!

Nada mais restou senão voltar pra casa. A pé. Alguns quilômetros, apenas, pelo ermo Anel Viário.

Ao menos as latinhas não foram confiscadas…

Maldita insônia!

A Mensagem

Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo:

E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel, voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?

Antonio Mineiro


Antonio Mineiro e sua charrete.

Antonio Antunes Júnior foi meu bisavô pelo lado materno. Nasceu em 11 de fevereiro de 1889 em Mogi Mirim, SP, filho de Antonio Antunes, legítimo português, e de Francisca de Paula Romana, natural de Ouro Fino, MG.

Apesar de paulista, era conhecido no bairro como Antonio Mineiro, sujeito de gênio forte e pavio curto. Lavrador e conhecido amansador de cavalos, morava em Santana, sendo que sua casa ficava ali no finalzinho da Av. Princesa Izabel, antes da última curva, e suas terras avançavam tanto pro lado da Vila Cristina quanto pro lado do Rio Paraíba, onde construiu diversas casinhas de quarto-cozinha que alugava e lhe dava sustento na velhice.


A casa de meu bisavô, década de oitenta. Hoje é um depósito de bebidas…

Foi nessa casa que o conheci e apesar de ele ter falecido em 3 de maio de 1974, no dia seguinte dos meus recém completadados cinco anos, ainda lembro-me dele – em especial de sua cadeira de balanço, que ficava bem na cozinha de piso de caquinhos e cimento queimado, ao lado de uma pesada e rústica mesa, bem próxima do filtro de barro empertigado no canto da parede. Eu costumava ficar em seu colo e ronda-me na memória a curiosidade que eu sentia em tentar descobrir como é que aquele negócio, que era uma cadeira, ficava indo pra frente e pra trás…

Meu bisavô casou-se três vezes. Seu primeiro casamento foi com minha bisavó, Dyonisia Maria de Jesus, em 1907 – poucos meses após o falecimento de seu pai, o português Antonio Antunes.


Antonio, Dyonisia e suas duas filhas.

O casal teve apenas duas filhas: Benedicta Dyonisia Antunes (a “Tia Dita”) e Maria Dyonisia de Jesus, minha avó. Entretanto Dyonisia, a primeira, minha bisa, faleceu em 1914 durante o parto daquela que seria sua terceira filha – mas ambas não resistiram. Minha avó tinha apenas dois anos quando ela faleceu.

O segundo casamento de meu bisavô se deu em 23 de dezembro de 1916, com Maria José do Nascimento, mineira de Conceição dos Ouros, nascida em 1900.


Antonio, Maria José, as duas filhas do primeiro casamento e três do segundo.

Além de criar as duas enteadas, Maria José teve ainda dezoito filhos. É isso mesmo: DE-ZOI-TO! Mas destes somente nove sobreviveram… Ela faleceu em janeiro de 1942, durante o parto da última das crianças.

Nesse meio tempo Dyonisia, sua filha caçula do primeiro casamento (minha avó), acabou casando com meu avô, Bernardo Claudino Nunes, em 1931. Tiveram duas filhas: Dionísia Nunes (minha tia, hoje na Itália) e Bernardete Nunes, minha mãe. Entretanto Dyonisia, a segunda, minha avó, faleceu em 1945 de doença desconhecida. Minha mãe tinha apenas dois anos quando ela faleceu.


Meus avós: Maria Dyonisia e Bernardo.


Meu avô Bernardo, Antonio Mineiro e meu tio-avô Claudino.

Já o terceiro casamento de meu bisavô foi por volta de 1944 com Guilhermina Libano (ou “Libaneo”), nascida em 1897 em Borda da Mata, MG. Quando minha avó faleceu, meu avô trabalhava em São Paulo e precisou deixar suas filhas (minha tia e minha mãe) com Antonio e Guilhermina, em São José dos Campos.

E foi ali, naquela casa, que minha mãe cresceu e veio a conhecer um tal de José Bento de Andrade (vulgo meu pai), moçoilo garboso, vindo da roça e cheio de boas intenções… Diz a lenda que quando meu pai foi pedir minha mãe em namoro para Seo Antonio Mineiro, ele olhou bem fundo nos olhos daquele rapagote, esticou a mão mantendo três dedos levantados e foi dizendo enquanto abaixava cada um dos dedos:

“Quer casar, hein? Então senhor José entenda que comigo a coisa funciona assim: são três meses para namorar (baixa um dedo), noivar (baixa outro dedo) e casar (baixa o terceiro dedo e mostra um ameçador punho fechado)…”

Se foi por isso ou não, sinceramente não sei. Só sei que não demorou muito pro casalzinho estar bem casado…


Meus pais: Bernardete e José Bento.

Antonio e Guilhermina não tiveram filhos. Após o falecimento dele meu pai construiu uma edícula no fundo de nossa casa e ela veio morar conosco. Cresci chamando-a de “vó”, sem, na época, conhecer a linha complexa de parentesco que nos ligava. Adorava seus pastéis fritos, cuja massa ela mesma fazia, bem como lhe era grato pelos trocados que de vez em quando nos dava – “um agrado”, ela dizia. De minha infância, boa parte enfiado no quintal de casa onde havia um pequeno pomar, eu costumava passar horas em sua companhia, brincando à sua volta, e ouvindo histórias e estórias, as quais infelizmente se perderam no tempo. Faleceu em 1982.

Mas como já havia dito, minha mãe foi criada pelos avós (meus bisavós) e – já devem ter percebido – curiosamente houve uma espécie de ciclo em que histórias se repetiram em gerações consecutivas. Mas ninguém melhor que minha própria mãe, que vivenciou essa história, para contá-la com propriedade. Eis seus apontamentos:

“O tempo passa e a história sempre se repete.

Maria Dionísia de Jesus, nasceu em Borda da Mata, e um ano depois nasceu Benedita Dionísia de Jesus, em 1º de agosto de 1908. Em 29 de outubro de 1909 nasceu outra menina, mas a mãe dessas crianças, Dionísia Maria de Jesus, faleceu no parto – assim como, dias depois, também faleceu a menina.

Mas as irmãs cresceram, unidas e amorosas.

Após dois anos, Antônio Antunes Júnior, seu pai, com dificuldades por ser viúvo e com duas meninas para criar, resolveu se casar com Maria José, que ficou criando as duas meninas e, ao longo de sua vida, teve ainda mais 18 filhos, mas só cresceram Benedita, Palmira, Antônio, João, Bernardete, Helena, Sebastião, Maria Benedita e Aparecida.

Maria Dionísia e Benedita Dionísia, sendo as duas irmãs mais velhas, precisavam trabalhar para ajudar na criação de todos os outros irmãos; enquanto que estes iam para escola, elas ficavam ajudando a madrasta. Maria era muito frágil, e Benedita, mesmo sendo a mais nova, sempre fazia o trabalho das duas, para que nada acontecesse à irmã.

Um dia, Maria, já moça, se casou com Bernardo Claudino Nunes, tendo sido muito doloroso para as duas irmãs se separarem. Maria era moça meiga e dócil, de modo que a madrasta admirava a doçura com que Maria a respeitava e hospedava em sua casa.

Maria tinha os cabelos longos, olhos brilhantes de curiosidade para aprender tudo de bom que havia. Tinha um grande desejo de ser costureira, mas não podia pagar alguém que a ensinasse. Um dia seu marido, chegando em casa disse: “Maria, está aqui um presente. Veja se está a seu gosto.” Ao abrir, que surpresa! Uma máquina de costura, bem usada, mas perfeita, daquelas que eram tocadas à mão – e Bernardo já trouxera também alguns tecidos.

Assim que o marido foi trabalhar, Maria desmanchou uma camisa, passou todos os pedaços, colocou em cima do tecido, cortou e costurou igual a outra, e, quando Bernardo a vestiu, disse: “Perfeito! Ficou muito bom!”. Maria se tornou uma grande costureira, fazia roupas masculinas, femininas, vestidos para noivas e ternos para noivos, ajudando nas despesas do lar.

Já Benedita se casou com Ezechias da Costa Andrade.

Benedita era lavadeira, lavava e passava roupas, e possuía ainda uma hortinha, de modo que os filhos desde pequenos saíam para vender hortaliças, para ajudar o pai, que trabalhava no CTA, em serviços pesados e baixo salário.

Maria teve alguns filhos que faleceram pequenos, um deles se chamava José, sofreu de paralisia infantil, e veio a falecer. Por último nasceu Dionísia, em São José dos Campos, no bairro Pau de Saia. Ali viviam os três, Dionísia, Bernardo, agora carreiro, e a esposa, costureira. Porém, um dia, deu uma doença nos bois de carro e morreram todos. Bernardo, ficando sem saber o que fazer, mudou-se com a família para São Paulo, Capital, no bairro da Lapa, Vila Leopoldina, e foi trabalhar em uma fábrica. A esposa costurava sempre, e após quatro anos nasceu Bernardete, em 10/09/43. Dois anos mais tarde, Maria, que estava doente, muito fraca, veio a casa da irmã Benedita e disse que queria que ela criasse as meninas, pois sabia que podia confiar na irmã. Voltando para São Paulo, foi internada num hospital e faleceu poucos dias depois.

Aí começa novamente a história da vida de duas meninas sem mãe. Só que desta vez a mais velha era mais forte e a menor a mais fraca. Com apenas seis anos de idade Dionísia sentia-se responsável pela irmã e a trazia sempre nos braços para que não chorasse. Ficaram seis meses num orfanato de freiras para que fizesse exames mensais (devido à mãe ter morrido de doença), mas esses exames nunca acusaram nada de grave. Bernardo não sabia mais o que fazer, pois nenhuma pessoa queria cuidar das meninas, e nem mesmo as irmãs não queriam que o pai fosse visitá-las, pois só aumentava o choro das duas quando chegava a hora de ir embora. Foi aí que resolveu trazer as duas meninas para São José dos Campos, no Bairro do Bom Sucesso, para casa dos avós.

Maria José Antunes, a segunda esposa de Antonio Antunes Junior, faleceu no parto do décimo-oitavo filho, e Antonio ficou viúvo pela segunda vez. Depois de dois anos casou-se com Guilhermina Libano, que era natural de Borda da Mata, em Minas Gerais, e ela prontificou-se a criar os enteados e as duas netas.

Mas quando Dionísia fez oito anos o pai a levou para São Paulo, para estudar.

E Bernardete não foi com o pai. Tinha medo de ficar só, pois já tinha perdido a mãe e achava que já havia encontrado uma família. A irmã iria à escola, o pai para o trabalho, e o medo acabou por falar mais alto.

E assim foi a separação das irmãs Dionísia e Bernardete.

A vida é o Trem e o Tempo os trilhos, sempre a separar…”

E, para provar que estamos sempre vinculados a círculos, fadados à repetição em nossas vidas, tenho mais alguma coisinha a acrescentar nessa história, que chegou até nossos dias através dos causos contados em família…

Acontece que Antonio, meu bisavô, na mocidade, enamorou-se de Guilhermina, só que não chegaram a se casar porque suas famílias não o permitiram. Parece que Dona Chiquinha, mãe de Antonio, não aceitava o enlace dos dois pois eram meio que primos. Assim, cada qual tocou sua vida. Antonio casou e enviuvou por duas vezes, enquanto que Guilhermina permaneceu solteira durante toda sua vida.

Quis o destino que voltassem a se encontrar e pudessem consumar o casamento, tão desejado outrora.

Viveram juntos e felizes até o final de seus dias.


Antonio e Guilhermina.

Como costumam dizer por aí, parece que nesse filme da vida só existem cerca de vinte pessoas, e todo o restante são meros atores coadjuvantes…

Disjuntando os pedaços

E eis que ontem à noitinha, depois de um dia pra lá de cansativo – pois fui acompanhar meu pai numa consulta junto ao Pronto Socorro Municipal (levou SÓ seis horas!) -, eis que finalmente consigo chegar em casa… Rotina de sempre: parar o carro em frente ao portão, puxar o freio de mão, descer do carro, entrar pelo portãozinho lateral, acender a luz da garagem (Ué? Não acendeu…), abrir o portão maior, engatar a primeira, entrar com o carro, fechar o portão, etc, etc, etc.

Voltei ao interruptor. Meio bambo, mas sempre foi assim. Esquisito. Acho que deu defeito. Amanhã cedo eu troco.

Foi então que percebi que o carro do meu sogro estava com o capô aberto. O que só poderia significar uma coisa: ele estava tentando fazer algo e (pra variar) não deu certo.

Subi as escadas e já fui ter com os filhotes:

– Então, pai. Nenhuma das tomadas de casa tá funcionando. A gente liga o disjuntor mas desarma…

Fui dar uma conferida no conjunto: temos um par de disjuntores para lâmpadas (10 amperes), outro par para tomadas (um de 25 e outro de 30 amperes, não sei o porquê – um dia desses ainda arrumo essa bagaça) e um terceiro para o chuveiro (50 amperes).

O das tomadas estava desarmado.

Liguei.

Fumaça e desarme imediato!!!

Bão, não tinha jeito. Ao que parece alguma coisa devia ter “fritado” um dos disjuntores e a melhor saída já seria trocar o par de uma vez…. Ao menos o resto da casa estava funcionando (fora as tomadas da parte antiga – onde também está ligada toda a garagem). Somente no dia seguinte pra comprar isso…

Pausa para os leigos – entenda como funciona o sistema elétrico de sua casa. São dois os conceitos a serem compreendidos: Voltagem (tensão) e Amperagem (corrente). Em termos bem simples, imaginemos que a energia elétrica fosse como o seu encanamento d’água. Não o seu, o da sua casa. A voltagem seria a quantidade de água consumida por cada aparelho, ou seja, numa tubulação com fluxo constante de água, sua televisão, que consome mais (220V), teria que ter uma torneira bem larga à disposição; já para carregar seu celular, que consome menos (5V), bastaria uma torneirinha pequenininha, praticamente um conta-gotas. Como nesse exemplo o fluxo de água é constante, caso precise de mais energia então terá que instalar um cano mais largo. Já a amperagem diria respeito à pressão da água. Isto é, ainda que meu encanamento garanta que consigo encher um balde de 220V, talvez as especificações daquele equipamento, digo, balde, determinem que ele tenha que ser enchido rapidamente, ou seja, com uma pressão d’água maior. O problema todo começa se eu tiver pressão demais (muita amperagem) e o encanamento começar a estourar! Daí me surge a figura do disjuntor (ou, em casos mais antigos, do fusível) que tem a função de cortar toda a água do sistema de encanamento antes que tudo fique ferrado demais e o balde transborde, a televisão queime, a torneira arrebente, o celular exploda, a água se espalhe, a casa queime… Basicamente é isso. Sei que tá meio confuso, mas sou advogado, não eletricista, então o que é que vocês esperavam?

Cai o pano, fecha a noite, corta para o dia seguinte.

Seizevintecinco da manhã é o horário que, de segunda a sábado, eu saio de casa para levar o filhote do meio para escola. Nem antes, nem depois. Nesse ritual diário, quando ainda sequer amanheceu direito, eu desço para a garagem, acendo a luz (catzo, esqueci que não tá acendendo), abro o portão, entro no carro (melhor acender o farol, já que tá escuro), engato a ré, ponho o carro pra fora e…

PÉRAÊ!!!!

Dei uma olhada no carro do meu sogro e de relance percebi algo que não deveria estar ali. Tinha alguma coisa errada com esse negócio…

Desci e fui conferir de perto, sob os veementes protestos do filhote que achava que a gente ia acabar se atrasando para a escola. Garanti-lhe que não, que era só um minutinho, mas que precisava entender o que eu tinha visto.

Que raio de tomada é essa? Será que ela ainda estava ligada em alguma coisa que estivesse “fechando curto”? Se fosse assim o disjuntor não estaria desarmando porque tinha pifado, mas simplesmente porque ainda estava cumprindo sua função! Bastaria desligar o que quer que essa tomada estivesse alimentando e o disjuntor voltaria a armar normalmente. Mas, vejamos onde esse fio vai dar…

NÃO, NÃO, NÃO! Eu simplesmente não acredito! Isso não pode ser o que estou pensando! Ele não faria isso, não, não faria. Quer dizer, se aquele fio elétrico estava ligado num cargo de transferência de carga (mais conhecido como “cabo chupeta”), TINHA que ter um transformador no meio do caminho; aquilo não poderia estar ligado direto na bateria. Afinal de contas 220V da tomada não é compatível com 12V da bateria do Gol! Seria como abrir uma torneira de jardim no máximo para tentar encher um copinho de café. De plástico. Do vagabundo!

MÈRDE.

Era.

ODESINFELIZDOMEUSOGROFEZDENOVO!!!!!!!

Bastou, literalmente, tirar o plug da tomada e todos os problemas acabaram…

Menos o meu.

Apesar de tudo, tenho ABSOLUTA CERTEZA que vai acabar sobrando pra mim ter que providenciar a carga da desgraçada dessa bateria!

SE der carga… o_O