A arte de ser infeliz em 2015

Alexandre Petillo

O homem perfeitamente infeliz acredita que a vida é um eterno recomeço e tem direito de desistir de tudo a qualquer tempo; coleciona despedidas como arquivos de mp3; só se alimenta de produtos orgânicos; leva uma garrafa de água por onde anda como se fosse o elixir da juventude; seus males físicos são apenas dois: dor de cabeça (mas não toma comprimidos para não alimentar a indústria farmacêutica) e indignação (dispensa ansiolíticos, mas desabafa no Facebook enquanto consome cerveja gourmet).

O pai e o avô do homem infeliz morreram quase aos noventa anos – e ele o diz frequentemente, sempre lembrando que nossa geração não vai chegar lá. Banho frio por princípio, mesmo no inverno – é um defensor ferrenho do meio-ambiente –, e uma hora e meia de ginástica diária, alterna entre caminhadas, “bike” e alguma ginástica moderna.

O homem perfeitamente infeliz julga-se ameaçado: ao norte, pela queda de cabelo; ao sul, pelo partidos de direita que espalham mentiras (ou pelos partidos de esquerda, que querem fazer daqui uma nova Venezuela, existem homens perfeitamente infelizes dos dois lados); a leste, pelo 3G que não funciona.

O homem perfeitamente infeliz é contra o casamento formal. Toma conhecimento de todas as revoluções artísticas e literárias modernas: gênio é o Marcelo Camelo; brasileiro é o Marcelo Camelo; saber português é o Marcelo Camelo.

Em sua sala, o puzzle de um desenho do Romero Britto emoldurado, que ele mesmo montou, quase 10 mil peças.

A força de vontade do homem perfeitamente infeliz é tremenda: ele parou de tomar refrigerante e ver TV há cinco anos, três meses, doze dias, dezoito horas. Se não parou, vai parar a qualquer momento.

Sua simpatia política é de esquerda, está sempre do lado das minorias e dos menos favorecidos, escreve textos gigantes em defesa dos excluídos direto do seu jardim de inverno. As redes sociais são o seu recreio mental mais importante; ver séries americanas de TV enriquece seus argumentos nas rodas de bares que vendem chope a 10 reais.

Sua psicologia: o mundo ainda vai descobrir minha genialidade. Sociologia: crack é uma doença, mas aqueles viciados me atrapalham quando quero estacionar no centro. Filosofia: sou sempre melhor do que o que me oferecem.

Considera-se dono de um excelente bom humor; cita ditos históricos e provérbios edificantes; sua glória é poder afirmar, diante de alguém em desgraça: “Bem que eu te avisei!”.

O mal profundo do homem perfeitamente infeliz é julgar-se um homem perfeitamente feliz.

( Crônica publicada no jornal O Vale, de 08/02/2015 )

Nota: Este texto é uma versão moderna do homem perfeitamente infeliz descrito por Paulo Mendes Campos em 1960.

Não era amor

Não era amor
Era um sentimento muito mais bonito
Um sentimento nascido no meio de um término
Sem ter no mínimo tido tempo de ter se feito compreendido
Ah, se todo amor fosse correspondido…
Mas enfim, não era amor, era um sentimento muito mais bonito
E as coisas precisam nascer de algum jeito
Nem que seja para morrer, logo ali, no seu peito
Nem que seja para renascer, bem aqui, por respeito
Ou se esconder em nós até que um de nós resolva se desatar
Em tantos
Em tontos
Em prantos
E pronto:
Estamos felizes novamente!
Pra que chorar?
Se nem a sua lágrima sabe por que cai
Se nem a sua mágoa sabe quem é seu pai
Se nem a sua dor sabe por que ai!
Se nem o seu passo sabe por que vai
Gostava de você quando dávamos as mãos
E andávamos bêbados pelos becos
Gostava de você quando eu soltava a sua mão
Para escrever: não era amor
E você soltava da minha
Para completar: era um sentimento muito mais bonito
E a gente ria.
E não se amava.
Éramos muito mais bonitos.
[não era amor; Antônio]