Paranóias

Logo em seguida, depois de minha última mensagem, teve início uma discussão sobre paranóias, onde uma amiga trouxe à tona lembranças sobre o ano 2000. Disse que foi a passagem de ano mais tensa de toda sua vida, pois achava que todos os equipamentos obsoletos da União Soviética entrariam em colapso e mísseis intercontinentais seriam disparados para todo o mundo, inclusive para cidade vizinha à sua, São José dos Campos, que abriga o CTA – Centro Tecnológico Aeroespacial, INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a Embraer – produtora de aviões, bem como outras fábricas de armamento militares, tais como Engesa, Tectran e Avibrás.

Somente teve sossego lá pela uma e meia da manhã, quando teve certeza que nada mais iria acontecer. Foi com uma mórbida satisfação que lhe disse que “parou de se preocupar à toa, pois certamente um míssel demoraria mais que uma hora e meia para transpor um percurso tão longo”.

Ela engoliu em seco, antes de começar a praguejar…

Isso me fez lembrar algumas neuras da infância. É interessante a maneira pela qual somos afetados por aquilo que lemos ou assistimos (anotação mental para mim mesmo: prestar mais atenção no que os filhotes andam assistindo).

Existiam algumas revistas de curiosidades na época – algo como a Super Interessante e outras do gênero – que traziam notícias do mundo científico. Lembro-me de ter ficado apavorado com a idéia de ser picado por uma mosca de nome Tsé-Tsé, que transmitia a “doença do sono”. E se aquele pernilongo que me picou fosse uma dessas? Será que vou dormir pra sempre? E agora?

Outra notícia que me assombrou por algum tempo foi a de uma doença na qual o ser humano envelhecia dez anos em apenas um, sendo que trazia as fotos de uma garotinha de apenas cinco anos de idade, mas com todos os sintomas de uma senhora de cinquenta…

O tempo passou e deixamos na infância os medos da infância. Certo? Errado. A Guerra das Malvinas, com todo o estardalhaço da mídia, juntando uma pitada das profecias de Nostradamus, foi o suficiente para uma nova onda de neuras…

Poderia citar um sem-número de manias e medos que tive e se perderam no tempo, numa narrativa digna do personagem de Jack Nicholson em “Melhor Impossível”, mas seria bobagem…

Mas esses “medos” nem sempre se esvaem totalmente. Acho que já contei essa história por aqui, mas não custa repetir: há uns quinze anos estávamos eu e um amigo sentados na cozinha, tomando vinho e contando velhas estórias de fantasmas – enquanto nossas respectivas já tinham ido dormir. Numa espiral descendente de causos fomos desfiando-os um a um: lobisomem, saci, loira do algodão na boca, o filho ingrato, a procissão de ossos, a mulher da janela, o cão que arranhava, o corpo seco, e por aí afora.

Já de madrugada, num dado momento um olha pro outro e diz:

– Não é por nada, não. Sei que está meio quente, mas… vamos fechar essa janela da cozinha, vamos?

A idéia foi aceita de imediato, mas não sem antes dar uma lenta olhada para o escuro do quintal com um certo temor pulsando na boca do estômago…

“Guarde seu champanhe”

Apesar de ser um texto meio antigo, não deixa de ser interessante. Retirado diretamente das catacumbas de meu computador, posso garantir que esse realmente é de autoria do Luís Fernando Veríssimo…

1998. Ano da Copa do Mundo, ano de eleição e ano de decidir, de uma vez por todas, o que fazer com os computadores na virada do milênio, quando – se entendi bem – eles interpretarão o ano 2000 como sendo o ano 00, concluirão que o tempo acabou e se autodesligarão para sempre, jogando nossa civilização no caos. E, antes de mais nada, ano de decidir se 2000 será mesmo o primeiro ano do terceiro milênio ou último do segundo.

Você eu não sei, mas eu sofro de uma certa neurose cronológica. Preciso saber, sempre, a hora exata, ou razoavelmente aproximada. Há pessoas que não entendem como a vida era possível antes do velcro ou do controle remoto. Eu não concebo a vida sem o relógio de pulso. Minha obsessão pela hora certa não é incomum. É a mesma que levou a humanidade a procurar formas cada vez mais precisas de medir a passagem do tempo, do pau fincado no chão às oscilações de um elétron de átomo que definem os 86.400 segundos que dura cada rotação da Terra. E ainda se angustiar com a descoberta de que a rotação da Terra não é constante e sua variação pode chegar a um milésimo de segundo num ano. Não me importo com um milésimo de segundo a mais ou a menos no meu ano, mas não aguento não saber se estou a dois ou três anos do fim do século.

Um dos grandes problemas da medição do tempo sempre foi adequar o tempo artificial determinado pela religião, o comércio e a vida cívica e o tempo natural. A difícil coordenação de ciclos lunares, anos solares e calendários humanos levou a repetidas revisões dos métodos de organizar o tempo na Antiguidade. Numa Pompilius, o segundo rei de Roma, acrescentou dias e meses ao calendário primitivo de 10 meses supostamente elaborado por Rômulo (com a presumível assistência de Remo) e baseado nas fases da Lua e nos períodos de gestação de mulheres e gado. (A aproximação do milênio, que leva tantos ao desespero ou ao misticismo, leva-me a ler adoidado sobre o tempo e sua história, o que não deixa de ser uma forma de pânico organizado.) Em todas as reformas do calendários depois de Numa Pompilius, o objetivo era harmonizar os dois ritmos que ditam o nosso tempo, o dos movimentos da Terra em relação aos movimentos da Lua, e o dos movimentos da Terra em relação ao Sol.

Muitas fórmulas foram tentadas, mas no ano 150 a.C. os romanos inventaram um mês de 22 ou 23 dias, chamado Mercedonius, que deveria ser inserido depois do dia 23 de fevereiro em anos intercalados – ou sempre que fosse preciso. No velho calendário romano, 23 de fevereiro era o último dia do ano e dia do Festival da Terminália, quando se faziam sacrifícios a Terminus, deus dos limites. Quem determinava se era preciso ou não acrescentar o Mercedonius no calendário e tornar o ano mais longo eram os pontífices, os romanos encarregados de administrar os cultos do Estado. E passou a ser comum os pontífices só alongarem os anos em que seus amigos estavam no poder. Com um ou mais Mercedonius, estendiam o mandato de seus preferidos sem necessidade de uma emenda de reeleição. O que só mostra como é antigo o hábito do patriciado de passar dos limites para proteger os seus. Quem acabou com o costume foi, ironicamente, Júlio César, quando fez sua própria reforma do calendário romano.

Júlio César – o original, não o nosso – encarregou Sosigenes, o seu assessor para assuntos cronológicos, de dar um jeito definitivo na questão. Sosigenes, como tecnocratas em Estados ainda por nascer, agiu sem nenhuma sutileza. Para restabelecer a ligação da data certa com o equinócio da primavera e ressincronizar o tempo oficial com o tempo natural, determinou que três meses inteiros fossem acrescentados ao ano de 46 a.C., que, com seus 445 dias, ficou conhecido como “O ano da grande confusão”. Também abandonou a adesão estrita aos ciclos lunares e estabeleceu para sempre os 365 dias do ciclo solar como base do calendário ocidental, além de inventar o ano bissexto. Bem ou mal, a reforma juliana aguentou 1600 anos.

A reforma seguinte que nos interessa foi a do papa Gregório XIII, em 1582. Mais uma vez o problema foi o desencontro com o equinócio vernal, tornado mais grave para a Igreja pela importância do equinócio na fixação da data da Páscoa. Como na reforma anterior, apelaram para uma intervenção radical no calendário: eliminaram dez dias do ano. Um decreto papal determinou que, depois de 4 de outubro, viesse 15 de outubro de 1582. Também mudaram a regra dos anos bissextos: desde então os anos que encerram (ou iniciam?) os séculos só têm um dia a mais em fevereiro se não forem divisíveis por 400, como se não tivéssemos complicações suficientes. O ano 2000 será bissexto, isso está estabelecido. Mas será o começo do novo milênio ou o último ano do milênio velho?

As liberdades tomadas com o calendário pela conveniência religiosa inspiraram o arcebispo James Ussher a calcular que o mundo tinha sido criado no dia 23 de outubro de 4004 a.C. – ao meio-dia. Não se sabe se o bom bispo levou em consideração nos seus cálculos os meses adicionais do Sosigenes e os dias cortados de Gregório. Mas, com todas as suas ficções e inconstâncias, o calendário romano adaptado pela Igreja é o que rege as nossas vidas e as nossas celebrações – mesmo porque no tempo natural não existem séculos e milênios. E, no século 6 da Era Cristã, Dionysius Exiguus, ou Dionísio o Pequeno, preocupado em organizar uma cronologia da sua igreja triunfante para o papa João I, introduziu uma variação na contagem do tempo histórico usada até então. Não mais os anos desde a fundação de Roma, mas os anos desde a circuncisão do menino Jesus, oito dias depois do seu suposto nascimento no dia 25 de dezembro do ano 753 romano. O primeiro ano da nova era seria I Anno Domini. Não houve o Anno Domini zero. Assim o último ano do primeiro século depois de Cristo tinha sido 100 e o último ano do primeiro milênio seria 1000.

Os cálculos do baixinho podiam ser tão fantasiosos e arbitrários quanto o do bispo Ussher, mas não temos outros. Guarde seu champanhe especial por mais um pouco, portanto, 2000 é o último ano do segundo milênio depois de Cristo.

Mas vá explicar tudo isso a um computador.