Parabéns, atingimos a burrice máxima

Eis um excelente artigo recomendado pelo sempre antenado amigo e copoanheiro Bicarato.

Sim, eu sei que é longo – bem longo, aliás – mas tenho fé que vocês vão ler até o fim. Porque é disso que precisamos: de leitura, de reflexão, de pensar antes de falar. E, no caso, Eliane Brum falou e falou muito bem.

De minha parte aceito a dica e devo procurar o livro da Marcia Tiburi. Mas também acho que devo começar a estocar alimentos…

Eliane BrumA fogueira de Simone de Beauvoir a partir da questão do ENEM mostrou que a burrice se tornou um problema estrutural do Brasil. Se não for enfrentada, não há chance. Hordas e hordas de burros que ocupam espaços institucionais, burros que ocupam bancadas de TV, burros pagos por dinheiro público, burros pagos por dinheiro privado, burros em lugares privilegiados, atacaram a filósofa francesa porque o Exame Nacional de Ensino Médio colocou na prova um trecho de uma de suas obras, O Segundo Sexo, começando pela frase célebre: “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. Bastou para os burros levantarem as orelhas e relincharem sua ignorância em volumes constrangedores. Debater com seriedade a burrice nacional é mais urgente do que discutir a crise econômica e o baixo crescimento do país. A burrice está na raiz da crise política mais ampla. A burrice corrompe a vida, a privada e a pública. Dia após dia.

Recapitulando alguns espasmos do mais recente surto de burrice. O verbete de Simone de Beauvoir (1908-1986) na Wikipedia, conforme mostrou uma reportagem da BBC, foi invadido para tachar a escritora de “pedófila” e “nazista”. A Câmara de Vereadores de Campinas, no estado de São Paulo, aprovou uma “moção de repúdio” à filósofa. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), da Bancada da Bíblia, descobriu na frase “uma escolha adrede, ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens”. Em sua página no Facebook, o promotor de justiça do município paulista de Sorocaba, Jorge Alberto de Oliveira Marum, chamou Beauvoir de “baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila”. Como o tema da redação do ENEM era “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, houve gente que estudou em colégios caros afirmando que este era um tema de esquerda, e portanto um sinal inequívoco de uma conspiração ideológica por parte do governo federal. Como sugeriu o crítico de cinema Inácio Araújo em seu blog, se defender que a mulher tenha o direito de andar sem ser perturbada, agredida e chutada é tema de esquerda, isso só pode significar que a direita vai muito mal.

A única arma capaz de derrotar a burrice é o pensamento

Está cada vez mais difícil fazer humor no Brasil. Como nada do que foi relatado acima é piada, somos submetidos cotidianamente a uma experiência de perversão. Também não tem sido fácil escrever quando não se é humorista, por que o que se pode dizer, seriamente, diante de uma moção de repúdio à Simone de Beauvoir? Mas é preciso tratar com seriedade, porque talvez não exista nada mais sério do que a boçalidade que atravessa o país. Torna-se urgente, prioritário, fazer um esforço coletivo e enfrentar a burrice com o único instrumento capaz de derrotá-la: o pensamento.

Esta é a potência e a generosidade de um livro lançado pela filósofa Marcia Tiburi, escritora e professora universitária. O título vai direto ao ponto, afinal os tempos são graves demais para papinhos de salão: Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Record). Nas 194 páginas, Marcia enfrenta as várias faces do cotidiano atual com profundidade, mas de forma acessível a quem não está familiarizado com os conceitos. Faz o mais difícil: escrever simples sem simplificar. É um livro que se pretende para todos, e não para os seus pares. Quem acompanha a trajetória da filósofa conhece a sua coragem. E este é um livro de coragem, já que é tão difícil quanto arriscado escrever sobre o que está em movimento, sem a proteção assegurada pelo distanciamento histórico. Poucos são os intelectuais que se arriscam a sair do conforto de seus feudos para enfrentar o debate público com suas dúvidas. E por isso aqueles que se arriscam de forma honesta, sem ficar arrotando suas certezas e suas credenciais, ou usando-as para massacrar aqueles que já são massacrados, são tão preciosos.

O confronto atual não é entre direita e esquerda, mas entre os que pensam e os que não pensam

“Eu queria saber por que dialogar é impossível”, conta Marcia Tiburi, sobre a pergunta que a moveu nessa busca. Para enfrentar a ausência do pensamento, a filósofa propõe a resistência pelo diálogo. Este é um esforço de cada um –e de todos. Arriscar-se a deixar o “isolamento em comunidade”, a forma atual da vida social e política, para confrontar o que ela chama de “consumismo da linguagem”. Compreender o confronto atual como um confronto entre direita e esquerda, desenvolvimentistas e ecologistas, governistas e oposicionistas, machistas e feministas é, segundo ela, uma redução. O confronto atual seria mais profundo e também mais dramático: entre os que pensam e os que não pensam.

O exercício que faço, deste parágrafo em diante, é buscar compreender a fogueira em que Simone de Beauvoir foi jogada nos últimos dias, entre outros fatos recentes, a partir das ideias deste livro. Para começar, a seriedade do episódio do ENEM pode ser demonstrada neste trecho tão agudo: “Se levarmos em conta que falar qualquer coisa está muito fácil, que falamos em excesso e falamos coisas desnecessárias, um novo consumismo emerge entre nós, o consumismo da linguagem. O problema é que ele produz, como qualquer consumismo, muito lixo. E o problema de qualquer lixo é que ele não retorna à natureza como se nada tivesse acontecido. Ele altera profundamente nossas vidas em um sentido físico e mental. O que se come, o que se vê, o que se ouve, numa palavra, o que se introjeta, vira corpo, se torna existência”.

Vale perguntar. Num país em que a preocupação com a educação é uma flatulência, em que a não educação é a regra, para onde vai o lixo e que tipo de impacto ele produz na tessitura do cotidiano, nos corações e mentes de quem o consome? O que acontece com a fogueira de Simone de Beauvoir num contexto em que aqueles que a jogaram no fogo possivelmente sequer a leram? Que restos dos discursos vazios sobre a filósofa permanecerão na memória de uma população que não tem seus livros na estante e que tipo de eco produzirão?

Como dimensionar a gravidade de um vereador eleito, pago com dinheiro público para legislar e, portanto, para decidir destinos coletivos, dizer que a escolha da frase de Simone de Beauvoir para uma prova do ENEM é algo “demoníaco”, como afirmou Campos Filho (DEM)? E como enfrentá-la com a seriedade necessária?

Com a palavra, o autor da “moção de repúdio”: “Foram buscar lá Simone de Beauvoir, lá pro ano de mil trocentos e pôco… (…) A grande maioria é favorável à lei da natureza. Homem é homem. Mulher é mulher. (…) Cuidado com essa pulsão, essa pulsão pode levar à cadeia. O senhor pode passar na frente do caixa eletrônico e ter uma pulsão de vontade de roubar e vai preso. Pode ter uma pulsão de vontade de estuprar e vai preso. Então, tomem cuidado com essa pulsão, ah, hoje de manhã sou menina, agora à noite eu sou homem….”.

O vazio de pensamento não é silencioso, mas repleto de clichês, frases prontas e repetições

O vereador nem sequer sabe em que século Simone de Beauvoir nasceu, viveu e produziu pensamento – “mil trocentos e pôco”. Nem sequer tentou compreender o que a frase citada no ENEM significa. Não é engraçado. É a ruína causando mais ruína. O que interessa é fazer barulho, porque o barulho encobre o vazio de ideias. O que importa é perverter a palavra, usando o que sequer tentou entender para enclausurar o pensamento e reafirmar a certeza em nome de uma suposta “lei da natureza” que jamais existiu. A perversão do fascista é a de acusar o outro de manipulação ideológica quando é ele o manipulador. É acusar o outro de impor um pensamento quando é ele que empreende todo os esforços para barrar qualquer pensamento. É impedir o diálogo denunciando o outro pelo ato que ele próprio cometeu. É nessa repetição de boçalidades que seguem os discursos de outros vereadores, invocando clichês bíblicos, lembrando de Sodoma e Gomorra e Adão e Eva, abusando de Deus.

Para perverter a realidade, o fascista conta com o consumismo da linguagem. Trata-se, como aponta Marcia Tiburi, de um vazio repleto de falas prontas. Não é um vazio silencioso, espaço aberto para buscar o outro, o inusitado, o surpreendente. Mas sim um vazio barulhento, abarrotado de clichês, de frases repetidas e repetitivas, usadas para se proteger do pensamento. Os lugares-comuns, neste caso específico a constante invocação de Deus e de leis bíblicas, são usados como um escudo contra a reflexão. Todo o esforço é empreendido para não existir qualquer chance de pensamento, ainda que um bem pequenino.

Neste vazio, a filósofa acredita que os meios tecnológicos e a mídia desempenham um papel crucial. Repete-se o que é dito na TV, no rádio. Fala-se, muito, sem pensar no que se diz. No gesto do mero “compartilhar” sem ler, tão fácil quanto comprar com um clique pela internet, foge-se do pensamento analítico e crítico, trocando-o pelo vazio consumista da linguagem e da ação repetitiva. É assim que a burrice se multiplica em cliques, propagando-se em rede. O título deste artigo é esperançoso, mas não corresponde à realidade: a burrice não tem limites, ela sempre pode atingir patamares ainda mais extremos.

Se não houver limites para a idiotice, resta isolar-se e estocar alimentos

Episódios semelhantes à “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir ocorriam esporadicamente em rincões afastados, e logo eram ridicularizados. Hoje, acontecem na Câmara de Vereadores de uma das maiores e mais ricas cidades do estado de São Paulo, no sudeste do Brasil, uma cidade que abriga várias universidades, entre elas a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), uma das mais respeitadas do país. E cadê os intelectuais? Rindo dos burros nas cantinas universitárias? Será? Não era de se esperar mais iniciativas de busca do diálogo, de criação de oportunidades para explicar quem é Simone de Beauvoir e refletir sobre sua obra, ou mesmo a ocupação da Câmara, para produzir reação e movimento que permitisse o conhecimento e combatesse a ignorância?

Talvez o polêmico livro Submisssão (Alfaguara), do francês Michel Houellebecq, possa ter alguma ressonância maior por aqui. Nele, só para lembrar, o protagonista é um acadêmico desencantado que se depara com a vitória de um partido islâmico nas eleições da França. Depois de assistir ao desenrolar dos acontecimentos pela TV, já que não se sente motivado a participar de nenhum debate que não seja sobre a sua própria tese acadêmica (ou nem mesmo sobre ela), se choca com o resultado eleitoral. É o protagonista que não protagoniza –ou só protagoniza por omissão (ou submissão). Aos poucos, os novos donos do poder lhe acenam não só com a manutenção dos privilégios, mas com uma considerável ampliação dos privilégios. E ele, afinal, conclui que aderir pode não ser tão ruim assim.

Os burros estão por toda parte e muitos deles estudaram nas melhores escolas e, o pior, muitos ensinam nas melhores escolas. A “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir foi aprovada pela Câmara de Campinas por 25 votos a cinco. Assim, os burros são a maioria. É preciso enfrentá-los com pensamento, fazer a resistência pelo diálogo. Ou, como diz Marcia Tiburi: “Sem pensamento não há diálogo possível nem emancipação em nível algum. Se não houver limites para a idiotice, resta isolar-se e estocar alimentos”.

O promotor e professor universitário que reduziu Simone de Beauvoir a “uma baranga”, ao comentar a questão do ENEM em sua página no Facebook, fez o seguinte comentário: “Exame Nacional-Socialista da Doutrinação Sub-Marxista. Aprendam jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo capitalismo opressor e se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se depila”. Depois da repercussão negativa, o que incluiu uma nota de repúdio por parte da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Jorge Alberto de Oliveira Marum apagou os posts e defendeu-se, em outra postagem, alegando que pretendia ter sido irônico: “Ironia, para quem não sabe, é uma figura de linguagem que consiste em afirmar o contrário do que se pensa”. Interprete-se.

A burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu

“Distorcer é poder” é o título de um dos capítulos do livro em que a filósofa enfrenta a prática amplamente difundida de esvaziar as palavras pela distorção. Como transformar a vítima em culpada, como se faz rotineiramente com as mulheres no falso debate do aborto, por exemplo, ou no tratamento do estupro. Ou distorcer para que aquele que detém os privilégios pareça ser o que têm seus direitos ameaçados: o branco, por exemplo, quando se apresenta como prejudicado pelo sistema de cotas raciais que busca reparar injustiças históricas cometidas contra os negros, ocultando assim que sempre foi o privilegiado; ou quando se invoca um suposto “orgulho heterossexual” na tentativa de mascarar a violência contra os homossexuais, alegando que querem privilégios, quando todos sabem que a heterossexualidade jamais foi contestada ou atacada, nem em sua expressão nem em seus direitos. E também é por essa conversão que os manifestantes de junho de 2013 foram tachados de “vândalos” por parte da mídia e, hoje, uma lei em discussão no Congresso ameaça converter quem protesta em “terrorista”.

A própria “democracia” pode ser vista a partir da prática da distorção, já que há aquela, mais difundida, que é vendida pelo mercado. “De um lado, há uma democracia que deve parecer como realizada, contra outra democracia, que está na ordem do desejo e do sonho e que não teria preço”. O capitalismo sequestra a democracia também como palavra, que passa a ser consumida, junto com outras: felicidade, ética, liberdade, oportunidade, mérito. Palavras que a filósofa chama de “mágicas”, invocadas a serviço do ocultamento da opressão. “Antidemocrático, o capitalismo precisaria ocultar sua única democracia verdadeira: a partilha da miséria e, hoje em dia, cada vez mais, a matabilidade”, afirma Marcia Tiburi.

Quando se invade o verbete de Simone de Beauvoir na Wikipedia é também disso que se trata: distorcer e replicar até virar “verdade”. Aliena-se os fatos de seu contexto histórico para produzir rótulos. Assim, após o ENEM, a filósofa foi tachada de “pedófila” e de “nazista”. Ambas as afirmações já foram retiradas da página pelo responsável, avisando que a manteria fechada até “que o furor acabasse e as pessoas perdessem o interesse em danificar o artigo”. Entre as dezenas de distorções do verbete, segundo a matéria da BBC, um usuário disse que a filósofa havia escrito um “livro de estupro”. Outro informou que Beauvoir era uma “antifeminista”. Um terceiro disse ainda que ela era “muito conhecida por seu comodismo e pela luta na justiça por uma lei que proibia o trabalho das mulheres fora de casa”.

Se a linguagem nos tornou seres políticos, a destruição da linguagem nos tornará o quê?

As distorções servem à reprodutibilidade da burrice. Ao converter a filósofa no que é interpretado como o mais monstruoso – “pedófila” e “nazista” – o objetivo é tornar impossível refletir sobre o que ela escreveu: “uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. A ampla distorção das palavras serve, de novo, ao vazio do pensamento. Pede-se aos burros que a repliquem à exaustão em cliques histéricos. A linguagem, como escreve Marcia Tiburi, tem sido rebaixada à distribuição da violência – também pelos meios de comunicação e pelas redes sociais. “Vivemos no império da canalhice, onde a burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu”, afirma. “Ela se transformou no todo do poder.”

Aderir é viver. Esta parece ser a frase deste momento de orgulho da ignorância e exaltação da burrice. Aqui, a pergunta se impõe: “se a linguagem nos tornou seres políticos, a destruição da linguagem nos tornará o quê?”.

Na semana passada, foi divulgado na página da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República um estudo que reuniu pesquisadores de diversas instituições, apresentado como o mais completo já feito no Brasil sobre os efeitos da mudança climática. Refletir seriamente sobre a mudança climática é urgente, mas há muito menos pensamento e ação do que o momento exigiria, apesar de estarmos às vésperas da Conferência do Clima em Paris. Assim, a divulgação de um estudo com as conclusões a que se chegou poderia ser uma oportunidade excelente para promover participação e diálogo. Mas, entre as tantas previsões que apontaram para um possível drama climático daqui a 25 anos, em 2040 – doenças, calor extremo, falta d’água e de energia etc –, uma foi destacada por diferentes veículos da imprensa: a possível perda de uma área imobiliária avaliada em R$ 109 bilhões no Rio de Janeiro, devido à elevação do nível do mar causada pelo aquecimento global.

Não as perdas humanas, não a corrosão da vida, não o aniquilamento dos mais pobres e dos mais frágeis. Não. O que se destaca é aquilo que se monetariza, é a perda do patrimônio material, no caso imobiliário. O que merece título é o cifrão. O episódio evoca um dos capítulos mais interessantes de Como conversar com um fascista: “O capitalismo é a redução da vida ao plano econômico. (…) O pensamento está minado pela lógica do ‘rendimento’. Viver torna-se uma questão apenas econômica. A economia torna-se uma forma de vida administrada com regras próprias, tais como o consumo, o endividamento, a segurança pela qual se pode pagar. Tudo isso é sistêmico e, ao mesmo tempo, algo histérico. (…) As palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas”. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião no âmbito das escrituras e das pregações (em geral no púlpito tecnológico da televisão)”. Se depois de tanto calarmos sobre a mudança climática, falarmos dela a partir da lógica monetária, estamos todos (mais) perdidos.

Precisamos resistir em nome de um diálogo que torne o ódio impotente

Mas é em outro episódio destes últimos dias que a perversão do Brasil atual se revelou em toda a sua monstruosidade: a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro concluiu em inquérito que o policial que matou um menino de dez anos agiu em “legítima defesa”. Eduardo de Jesus brincava na porta da sua casa, numa das favelas do Complexo do Alemão, quando teve a cabeça atingida por um tiro de fuzil. Sua mãe encontrou parte do seu cérebro na sala. O inquérito isentou de qualquer responsabilidade os policiais envolvidos, por estarem supostamente em confronto com narcotraficantes. Eles teriam apenas “errado” o tiro.

Eduardo estava a cinco metros do policial que o matou. Terezinha de Jesus, a mãe do menino, afirma que não havia tiroteio naquele dia. “Eu parti para cima do policial. Gritei que tinha matado meu filho e ele me respondeu, com seu fuzil na minha cabeça, que igual que tinha matado ele poderia também me matar, porque o menino era filho de bandido. Nunca vou esquecer aquilo. Posso estar em qualquer lugar do mundo, que nunca esquecerei a cara daquele policial”. Ao ser informada por jornalistas que a polícia concluiu que seu filho foi morto em legítima defesa, Terezinha disse que sentia vontade “de quebrar tudo”.

Quando a perversão supera tal limite é porque estamos quase no ponto de não retorno. “Não acabaremos com o ódio pregando o amor”, diz Marcia Tiburi. “Mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente.”

Em Como conversar com um fascista, a filósofa defende a necessidade de começar a tentar falar de outro modo. O diálogo não como salvação, mas como experimento, como ativismo filosófico para enfrentar a antipolítica. A política, lembra a autora, “é laço amoroso entre pessoas que podem falar e se escutar não porque sejam iguais, mas porque deixaram de lado suas carapaças de ódio e quebraram o muro de cimento onde suas subjetividades estão enterradas”.

Num país de antipolítica e antieducação generalizada como o Brasil é preciso se mover. É urgente aprender a conversar com um fascista, mesmo que pareça impossível. Expor ao outro aquele que não suporta a diferença. Revelar suas contradições e confrontá-lo pelo diálogo é um ato de resistência. Enfrentar a burrice com a única arma que ela teme: o pensamento.

É isso ou não vai adiantar nem estocar alimentos.

Questão de preconceito

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Ligia Ribeiro

Quando eu era adolescente, era simpatizante do anarquismo, inocência boa típica da idade.

Gostava de punk rock/hardcore mais que de chocolate… Uma das bandas que eu simpatizava era dead fish (me julguem) e dentre as músicas deles, havia uma chamada “Anarquia Corporation” que criticava a maneira como o anarquismo estava se popularizando e virando um movimento de preconceito às avessas.

“Acho que já sei o que você quer, mais uma regra pra seguir, constituição anárquica. Feita pra outra minoria dominar. Não há mudança, só alternância de poder. Discriminado hoje, discriminador amanhã. Mudança aonde? Aonde cidadão?”

 

Então hoje, já longe da utopia anárquica, vejo esse comportamento preconceituoso em outros grupos.

Grupos que tem uma causa seria, mas que avacalham demais na milícia.

Vi um vídeo fantástico da Avon onde uma mulher trans se maquiava… Pensei comigo: “Que do caralho! Puta quebra de paradigma!”

 

Aí, Li os comentários… Ah, meus amigos… Que grande enxurrada de bosta!

Chegando ao cúmulo de dizer que os homens estavam tirando o protagonismo das mulheres nas propagandas de cosméticos… (WTF?)

E uma luta pra saber quem é mais oprimido que o outro… Como se o foco fosse esse. Como se o foco não fosse a equidade entre as pessoas…

São só mais um monte de fantoches sem senso crítico, disseminando um discurso de ódio contra aquilo que é diferente do que acreditam.

Mais uma vez… Não há mudança, só alternância de poder.

Que tristeza, meus amigos.

Que tristeza…

Professorinha Paz & Amor

Nesta data especial, apenas compartilhando a homenagem já de um tempinho do copoanheiro de sempre à sua amada, idolatrada, salve, salve, professorinha do coração – e, também, minha afilhada!

E chegou o momento de a Professorinha se aposentar. Mais de 30 anos de labuta diária, muitas vezes com jornadas duplas ou triplas, encarando os queridos *monstrinhos* — numa conta-de-padaria, foram algumas dezenas de milhares de alunos. No fecebúqui, ela faz um pequeno post-registro, que gera mais de 350 curtidas e um outro tanto de comentários.

Todos carinhosos, como hão de ser, já marcados pelas saudades que a *professorinha paz&amor* vai deixar nas salas de aula — *vamos viajar de Kombi e curtir a vida de hippie*, promete-e-cobra uma aluna, enquanto outra ameaça: *eu quero a minha professora de volta AGORA!*.

O estereótipo *paz&amor* gerou carinhosamente, por parte dos alunos, o apelido *hippira*, ou *hippie-caipira*, e até um flashmob com um grupo de alunas à caráter [ver aqui] — sim, a própria Professorinha emprestou seu guarda-roupa pras meninas…

Mas, muito além do visual, o *paz&amor* é de caráter, e um exercício diário, que a garotada reconhece: *que continue ensinando às pessoas aquilo que todos devem saber, afinal esse é o seu dom e não precisa estar só numa sala de aula para ensinar ou aprender*, diz outra aluna.

E, conferindo os comentários que não param de chegar, se emocionando com todos, de repente ela pára em um e se derrama em lágrimas. É de um garoto dizendo que a ama e agradece por ter tido a Professorinha em sua vida, fazendo coro a praticamente todos os outros comentários. Mas ela me explica as lágrimas, provocando também as minhas: o garoto é do tipo problemático, *tranqueirinha*, que já se envolveu com drogas e otras cositas…

A cena ilustra o que sempre moveu a Professorinha: todos os seus anos de trabalho foram cumpridos como uma *missão*, no maior sentido da palavra, voltada aos mais carentes e necessitados. De todos os comentários, é exatamente o de um garoto mais carente (o que o levou a se envolver com drogas etc.?) o que mais a comove.

Isso, entre inúmeras outras qualidades, resume o porquê de eu amar a Professorinha Rose. ‘Brigado, minha querídola.

Os óculos do Papa Francisco e o Auxílio Moradia do Poder Judiciário: Privilégios e República

Fernando Neisser

Recentemente o Papa Francisco fez algo prosaico: foi às ruas comprar um par de óculos. Ao menos para mim ou você; não para um Papa, cargo historicamente cercado de uma liturgia quase impenetrável. Faço a ele um elogio; mas antes me permito explicar porque não o faço em razão de suas posturas estritamente políticas ou teológicas.

Não sou católico, nem mesmo religioso. Assim, se digo que concordo com suas manifestações costumeiras de tolerância com os desgraçados e perseguidos de sempre, é preciso ter honestidade intelectual: não tenho como afirmar que seus posicionamentos estejam certos ou errados de acordo com o credo da religião que lidera.

Daí porque não me sinto minimamente habilitado a dizer se é um bom ou mau Papa, sob o ponto de vista da Igreja. Posso, por outro lado, avaliá-lo na condição de líder mundial e, até mesmo, de Chefe de Estado, como político que é. E nesta chave seu exemplo é brilhante.

A ida à ótica foi só mais uma mostra da simplicidade que impõe ao exercício de seu múnus. Abriu mão dos suntuosos aposentos papais em troca de viver em um dois-quartos no Domus Sanctae Marthae, ali ao lado. Seu veículo é um Ford Focus… comprado usado.

Esta humildade pública, ao menos a mim, parece sincera; mas pouco importa. Ao menos quando não está em julgamento sua crença – para o que importariam os motivos -, mas seu exemplo político – no qual apenas a ação externa interessa.

Tal forma de exercício do poder não é exclusiva do atual Papa. Há tempos sabemos que parlamentares suecos moram em pequenos apartamentos, lavam suas próprias roupas e vão trabalhar de bicicleta. Tradicionalmente o Primeiro Ministro inglês usa o metrô e, outra semana, foi fotografado em viagem oficial à Espanha na classe econômica.

Rigorosamente o oposto do que vemos no Brasil e, em geral, nos países com altos índices de corrupção e desigualdade.

Aqui, cada oportunidade de uso de um privilégio é não apenas aproveitada como estendida quase ao infinito. Carros oficiais são trocados periodicamente. Auxílios de toda sorte – alimentação, moradia, paletó, creche, etc. etc. etc. ad nauseam – são distribuídos, como se remunerações que representam vinte a trinta vezes o salário mínimo não fossem suficientes para custear tais despesas. Sempre que possível a viagem se dá em classe executiva, com acompanhante e em hotéis de primeira linha.

E a prática não se restringe ao que entendemos tradicionalmente por políticos. Juízes, membros do Ministério Público, altos servidores, ministros, secretários… Todos que podem o fazem.

Agem ilegalmente? Não. Assenhorados da feitura das normas, fazem-nas de modo a tornar lícitos seus privilégios.

Agem legitimamente, contribuindo para uma sociedade melhor? Igualmente não.

O problema não é apenas o péssimo exemplo, que torna cada vez mais odiados pela população em geral os detentores do poder.

O pior é que desde logo os cidadãos percebem que ocupar cargos públicos significa dispor de benefícios inacessíveis aos demais. Atrai-se com isso, no longo prazo, exatamente o tipo de gente que só tem como norte na vida a busca por esta forma de ascensão na escala social: desigual, quase aristocrática, nada republicana. Tem-se um círculo vicioso.

Este tipo de ambição, ínsita a boa parte das pessoas, tem lugar próprio em uma sociedade capitalista: a iniciativa privada. É lá que devem se digladiar os que almejam alugar uma Ferrari em suas férias na Costa Amalfitana, produzindo, neste meio tempo, bens e serviços para a coletividade.

Ao menos era para ser assim. Nosso Estado, vejam só, compete com o mercado e o faz em condições desiguais: a muitos dá estabilidade, aposentadoria integral e pouca cobrança de produtividade. Aí é duro desenvolver um setor privado competitivo.

Assim, qualquer mudança de longo prazo no Brasil, que tenha por objetivo construir uma República onde ainda grassa um arremedo patrimonialista, deve necessariamente superar este problema. E deve fazê-lo rapidamente, de forma sucinta e radical.

P.S. 1: Não generalizo o aproveitamento dos privilégios, falo aqui de forma genérica. Tenho muitos amigos que trabalham em governos, parlamentos, no Judiciário ou no Ministério Público e que não apenas abrem mão, como criticam tais despautérios.

P.S. 2: É preciso deixar claro que não defendo de modo algum a onda de falso moralismo que vem assolando algumas cidades pelo Brasil, clamando para que os salários de vereadores sejam zerados ou tornados irrisórios. Há que se tomar cuidado para evitar que somente os ricos possam fazer política. A remuneração deve ser digna, de modo a permitir a dedicação integral ao serviço público. Ao parlamentar, membro do Executivo ou do Judiciário. Mas nunca faustosa, exagerada, carregada de penduricalhos, como se vê.

O verdadeiro inimigo

Estamos de mal. Desde as eleições. Já brigamos pelo face, soltamos farpas uns contra os outros, deletamos os chatos online, colocamos claramente nossas posições, fomos pra rua em lados opostos, xingamos os políticos de ambos os lados, batemos panelas, tocamos corneta, assistimos o noticiário , ouvimos as rádios e continuamos nas trincheiras.

Eu fico me perguntando, a quem interessa essa situação? Quem está ganhando com isso? Os especuladores do mercado financeiro, com certeza! Cada notícia vende jornais, sites , propaganda! Cada negociação para retomar o controle, a tal governabilidade implica em mais verbas , cargos, dinheiro desperdiçado.

Temos um presidente do congresso implicado na Lava Jato com denúncia de recebimento de 5 milhões de dólares. Temos um presidente do senado já denunciado no supremo pelo esquema Mendes Júnior. Uma lista de 53 congressistas implicados na Lava Jato.

Temos a própria Lava jato, vazando informações que interessam somente a um lado.

Todos nós sabemos diferenciar o certo do errado. Nas nossas atitudes, com nossos filhos, amigos e parentes. Eu deixo um desafio aos amigos, responder a pergunta, a quem interessa tudo isso? Quem ganha com esta situação?

Devemos denunciar as ratazanas que se escondem por trás de ambições pessoais ou ressentimentos por derrotas. Devemos ter consciência de nossas próprias mazelas e não nos deixar iludir por magia, que basta eliminar o alvo que o país estará sanado. Devemos aproveitar esta oportunidade de crise para discutir de verdade as grandes questões, porem sem ódio ou preconceito.

Esta crise está sendo criada por nós, pela nossa descrença em tudo, pelo ódio, por interesses políticos, pessoais e financeiros.

A grande pergunta que temos que fazer é para quem estamos entregando este país com esta atitude. E quanto tempo isso vai levar? A cada dia de crise política, são pessoas perdendo os empregos, o país paralisado, a economia idem.

Eu vou trabalhar. Cuidar de meu emprego, da minha cidade, da minha familia e dos meus amigos. Sou um otimista e batalhador por natureza, assim como tenho certeza que o povo brasileiro é . Espero que as pessoas voltem a realidade e enxerguem que não é um governo que dirige suas atitudes (pelo menos numa democracia, que alguns querem que acabe) e sim elas mesmas. O governo é efemero, dura quatro anos ou oito. Sou engenheiro, acredito na crueza dos números e eles me dizem que os números apresentados mostram que tivemos melhoras nos últimos 24 anos, algumas mais acentuadas outras nem tanto.

As pessoas sensatas, com opinião própria, sabem que temos que avançar pelos meios legais, sem soluções mágicas ou golpistas.

O governo já admitiu os erros do passado, a justiça está fazendo o seu papel, as instituições existem, vamos trabalhar e deixar birrinhas infantis de lado e pensarmos como adultos e cuidar de nossas vidas e de nosso país!

Eleições existem a cada dois anos, para podermos nos manifestar sobre qual governo queremos , não existe ainda no país uma outra forma, perdemos a oportunidade ( e no momento histórico, ainda não estavamos preparados para ele ) de implantarmos o parlamentarismo, que talvez resolvesse esta crise.

Temos que acreditar nas boas intenções dos poucos que restaram , Que tenham força para levar este país para frente. Devemos dar um voto de confiança neste governo, já que o elegemos, mesmo não tendo votado nele.

Derrubamos uma ditadura. Derrubamos um presidente inventado pela mídia. Esta presidenta não é uma ditadora, ela foi uma guerrilheira contra a mesma. Esta presidenta não foi inventada pela mídia , ela apanha da mesma todo o santo dia, desde o início deste mandato. Esta presidenta não interfere na ação da polícia e da justiça, nunca houve tantas condenações, prisões de todas as classes sociais em nenhum governo anterior, somente nas ditaduras, onde as pessoas eram presas pelo seu pensamento, não por desvio de verbas do governo.

Eu me lembro da música Geni do Chico. O ódio é irracional. Insuflado leva aos genocídios, a guerra, a história tem milhares de exemplos. Eu não odeio ninguem. Não combina com um cristão. Não combina comigo, com o homem que eu sou.

Eu não odeio a Dilma, o Lula, O PT, o Fernando Henrique, O Serra, o Aécio, o Eduardo Cunha, O PSDB, O Renan. Acho que eles são personagens de um drama, protagonistas sobre o palco que todos nós assistimos, seguindo textos e colocando um “caco” aqui outro lá. Quem me preocupa de verdade, são os autores da peça, que nos deram 30 anos de esperança de um país melhor, e agora decidiram que é a hora de voltarmos para trás. Vamos tirar a cortina de fumaça de nossos olhos e enxergar quem é o verdadeiro inimigo. Quem não tem compaixão. Quem não tem solidariedade. Quem não tem honra. Quem não é honesto. Quem é aproveitador. Quem pensa em si e não consegue pensar nos outros. Quem é covarde. Quem é manipulador. Quem não tem escrúpulos. Quem é preconceituoso.

São eles os “Eles”.

Vamos enxergar o “Nós”.

Tomaz Santalucia

De si para si

Alexandre Zaballa Dias é geógrafo, funcionário do Tribunal de Justiça e trabalha com a Dona Patroa – não necessariamente nessa ordem de importância…

E não, ele não é o cara dessa foto aí de cima!

Dia desses ela me trouxe uma carta – na verdade, um par delas – que ele elaborou de si para si mesmo. Escrever uma carta para você mesmo no futuro é semelhante a uma cápsula do tempo: ficará arquivada, talvez escondida, aguardando seu eu do futuro recebê-la, talvez com mensagens de esperança, lembranças ou advertências sobre coisas importantes.

Da mesma forma, escrever uma carta para você mesmo no passado é uma forma de gerar reflexões importantes sobre sua própria vida, compreender melhor os rumos que o levaram até o dia (e a pessoa) de hoje e até mesmo inspirar outros indivíduos.

Mas, neste caso, o interessante não é só a carta que ele mandou para o amanhã, mas, também, que foi respondida!

Acompanhem com que leveza e objetividade ele desenvolve estes saborosos textos…

Caro Alexandre mais velho:

Aqui quem te escreve é o Alexandre de muitos anos atrás. O motivo desta mensagem é o seguinte: eu já sei o que quero ser quando crescer. Quero ser caminhoneiro. Amo viajar, contemplar as paisagens, ver a beleza que é o nosso país. A prova disso é que amo ir para a casa de nossa avó no Rio Grande do Sul, não durmo na viagem, sempre atento a tudo. Nossos irmãos são divertidíssimos, gostamos de brincar de tudo, às vezes brigamos, mas logo voltamos a brincar. Mudamos para esta cidade nova e na nova escola me apaixonei pela Fernanda, uma menina linda, quero muito namorar com ela e casar. Nossa mãe é muito brava, nos coloca para estudar a toda hora e fazer deveres de casa, como lavar louça, arrumar o quarto e varrer a casa. Detesto isso, acho que ela não me ama. Gosto muito de gibis, principalmente da Turma da Mônica. Nossos primos são muito legais, mas agora estamos em outra cidade, quase não os vejo. Nosso pai foi embora de casa, nunca mais o vi, tenho saudades.

É por isso que te escrevo, Alexandre-mais-velho. Para te esclarecer algumas coisas sobre o futuro. Em primeiro lugar, nunca deixe de ter um coração de criança, brincar com seus irmãos e primos, ler gibis da Mônica e sonhar. Envelheça parecido com nossos avós, que são super legais, faça coisas diferentes e seja muito feliz.

E, aqui, sua resposta!

Caro Alexandre mais novo:

É com muito desconforto que te escrevo essa mensagem. Para começar, só temos a nossa avó, mãe do nosso pai, os outros morreram. Dá pra acreditar? Sei que é uma surpresa, mas as pessoas morrem. Não adianta perguntar, não vou conseguir responder, mas as pessoas legais do mundo morrem. O fato é que não sou quem você esperava ser, não me tornei caminhoneiro. Aquela menina que você conheceu, a Fernanda, você foi apaixonado por ela até os 15 anos, um dia ela mudou (não sei para onde) e você nunca disse a ela o que sentia. Você se afastou da família do seu pai, passou 32 anos sem ver ninguém, acredita nisso? Dos nossos irmãos, cada um tomou um rumo e você só os encontra me ocasiões especiais. Sim, meu amiguinho, o tempo muda as pessoas. Você se casou e tem duas filhas, continua a ler gibis da Mônica, só que agora para elas – são maravilhosas! Sua mãe continua brava, mas agora você entende porque ela é assim. Apanhou muito dos pais que não queriam que ela estudasse. Ela, contrariando as expectativas, tem três graduações, pós, fala espanhol e está aprendendo inglês. Ela faz tudo isso com você porque te ama e quer o seu melhor. Por muito tempo você foi acomodado, não terminava nada que começava e ainda por cima carregou malas indesejadas como o rancor, ódio, frustração, não sabia perdoar. Você se separou, entrou em depressão, aí conheceu seu melhor amigo: Jesus.

Começou e terminou sua graduação, trabalha no Tribunal de Justiça em São José dos Campos, em um cartório maravilhoso, onde tem aprendido muito. Você agora tem sonhos palpáveis, você tem planos de crescer espiritualmente e financeiramente. Aprendeu que você só colhe o que planta, então você está semeando novas sementes. Não carrega mais pesos desnecessários e valoriza muito sua mãe, filhas e amigos.

Casaquinho preto

Fabrício Carpi Nejar

Toda mulher tem um casaquinho preto, de malha, que custou barato e é uma companhia inseparável.

De aparência simples e discreta, o casaquinho é mais importante do que qualquer roupa de estilista famoso.

O casaquinho é aquele que ela diz para as amigas que deveria ter comprado dois e que jamais encontrará igual. E ela nunca compra dois, apesar de já ter amaldiçoado a avareza antes.

O casaquinho é uma segunda bolsa, tamanho seu valor prático, combate o frio do cinema, da saída de festa e de jantares.

Toda mulher que se admira tem um casaquinho preto, que cavou em uma liquidação como um dos grandes achados de sua vida.

É uma peça invisível que não estraga nenhuma combinação. É um travesseiro para os ombros. É uma vitamina C de pano para prevenir a gripe.

Não se habilite a segurar o casaquinho preto dela, é muito pessoal. Cometerá uma gafe. O máximo que pode fazer é ajudá-la a vesti-lo.

Nenhuma mulher aceita emprestá-lo. Não é gentileza, e sim invasão de privacidade, o equivalente a mexer em suas redes sociais.

O casaquinho é um objeto íntimo, intransferível, lingerie pelo lado de fora.

Não queira assumir a responsabilidade. Se tomar conta e extraviar, ela ficará enlouquecida e não perdoará a distração.

Casamento é bem capaz de terminar quando o homem inventa de proteger o casaquinho e acaba esquecendo em algum lugar.

Não corra riscos. Eu perdi um casaquinho num show. Amarrei na cintura. Ao pular e dançar como um negro gato no show do Luiz Melodia, deixei cair no meio da pista.

Estávamos felizes, radiantes, nos beijando e nos abraçando com furor, um casal antologicamente apaixonado em Porto Alegre, cantando as canções de cor e trocando risos caprichados. Quando, no intervalo de uma música, ela me perguntou “Cadê o casaquinho?”, a noite mudou de feição, ela mudou de feição, eu mudei de feição vendo a noite e ela mudando de feição ao mesmo tempo. Paralisei minha boca em uma careta, porque ele havia sumido sem que percebesse.

Com a lanterna do celular, eu me postei no chão, me agachei como o aspirador dos dedos para reconhecê-lo entre latas e copos de bebida. Pisaram em minhas mãos, me empurraram, e nada de resgatar o pobrezinho.

Ela passou a madrugada lamentando o casaquinho, a manhã seguinte lamentando o casaquinho, o mês seguinte lamentando o casaquinho.

Era viúva do casaquinho. Não se falava em outra coisa.

Procurei corrigir o erro e adquirir um semelhante. E agravei a minha falha: só ela tem o direito de escolher seu casaquinho.

As mulheres não são difíceis, mas fetichistas.

( Crônica publicada no jornal Zero Hora, de 03/05/2015 )