Quando eu andava de bicicleta…

Quando eu andava de bicicleta, o que nesta versão paquidérmica e sedentária que vos tecla já chega a uma distância temporal de séculos, o mundo e a vida eram assaz diferentes…

Nunca ganhei uma bicicleta. A primeira que tive comprei com o dinheirinho arrecadado vendendo jornais velhos em açougues. Por incrível que pareça, à época, era um mercado lucrativo! Uma bela Monareta (a marca da bicicleta). Já nem lembro mais de quem comprei – tinha lá meus onze anos, se não me engano. Comprei e entoquei num quartinho de bagunças no fundo de casa. Uma bicicleta velha, enferrujada, mais propícia ao ferro velho que ao uso. Mas, para mim, aquilo era ouro puro! Eu via possibilidades onde outros veriam lixo. Eu enxergava adaptações onde outros enxergariam dor de cabeça. E meu pai, tanto zeloso quanto cético quanto tradicional, proferiu uma das primeiras sentenças de minha vida: “Livre-se disso.”

Sentença essa a qual, honrosamente, jamais cumpri.

A primeira reforma – até por desconhecimento próprio – veio por intermédio de meu irmão do meio (eu sou o caçula). Serramos o quadro, estirpando-lhe o bagageiro, foi pintada de verde (única tinta que tinha disponível no tal do quartinho), foi engraxada e remontada. Inclusive, na época, quem mais usava a bicicleta era ele mesmo, pois estudava na ETEP e a usava para ir às aulas todos os dias – morávamos em Santana e a escola ficava no Esplanada, a alguns quilômetros de distância…

Mas, bicho irrequieto que sou, logo dei um jeito de reformá-la novamente. Cheguei à conclusão que precisava de conhecimento e de peças – imprescindíveis para tal empreitada! Com uma cara de pau que hoje já não reconheço mais, fui até uma bicicletaria próxima de casa e pedi emprego. “Mas você sabe consertar bicicletas?” perguntou-me o Seo Márcio, dono da bicicletaria familiar, que tocava com seus dois filhos e duas filhas, num tom entre cético e desacreditando que aquele fedelho estava ali a pedir-lhe emprego. “Não tenho nem ideia, mas tenho muita disposição e vontade, e quando e se o senhor não gostar de meus serviços pode me dispensar que tá tudo certo!” Até hoje não sei se por dó ou por confiança ele resolveu me dar a vaga que não existia. E eu, com todo meu afinco, me pus a aprender o que era aquele dia-a-dia pseudo-mecânico do mundo das bicicletas. De cara me dei muito bem com o filho mais velho – Jezimiel – e, simultaneamente, arranjei treta atrás de treta com o segundo filho – Cadimiel. A Vânia e a Valéria, as outras filhas, fica para alguma outra história…

Mas nada disso me impediu de avançar no meu projeto: aprender o que podia e arranjar peças para reformar minha valorosa bike!

Eu não recebia salário, mas o serviço que eu havia feito durante a semana era mensurado e computávamos aquilo num valor referente a peças de bicicleta, as quais eu arrematava e levava para a segunda reforma do meu futuro portentoso veículo. Logo, logo, já com know-how o suficiente, desmontei-a, pintei-a de preto, adaptei cinco marchas na bichinha, coloquei um garfo telescópico, dobrei a capacidade de resistência do aro e raios e cheguei no “produto final”. Foi batizada de “Matilde”.

Pois bem. Mais ou menos à mesma época, quando estava começando a despontar o bicicross na molecada, dei um jeito de arranjar uma bicicleta desse tipo para mim. O preço de uma Caloicross “de verdade” era proibitivo – mesmo usada -, então, com meus rolos acabei conseguindo uma BMX. Era como uma caloicross mas com acessórios que foram imediatamente dispensados, tais como os pára-lamas, as laterais, o banco e – especialmente – o tanquinho. A merda era o maldito freio contrapedal. Bastava descuidar que brecava. Empinar, então, nem pensar!

Mas o tempo passa e as pessoas crescem. A boa e velha Matilde, aro vinte, tão prestimosa durante tanto tempo, já não comportava aquele adolescente de mais de um metro e setenta de altura. Comprei uma nova bicicleta velha, desta vez uma Barra Circular, da Monark, aro vinte e seis, que já era mais condizente com meu nada nobre porte. Nesse meio tempo acabei me tornando amigo inseparável do Cadimiel, sujeito revoltado e incompreendido, que tinha tudo a ver comigo na época. Essa bicicleta não durou muito, pois, também nesse meio tempo, aperfeiçoei – e muito – a adorável arte de empinar e, numa dessas, meio que me exibindo para uma família de loirinhas que moravam lá na boa e velha Vila Paiva, ao descer com a bicicleta ladeira abaixo ela simplesmente partiu-se em dois. Só não foi um desastre total porque os cabos de aço das marchas (coroa e catraca) seguraram a onda.

E lá vai o Jamanta atrás de outra bicicleta.

Desta vez arranjei uma Barra Forte, da Caloi – com direito a um confortável assento almofadado entre o selim e o guidão! Uma das primeiras atitudes foi soldar um barra de reforço no quadro para impedir que a desgraçada quebrasse como a anterior. Já com mais de um metro e oitenta, lá pelos meus quinze anos, instalei também um garfo telescópico e adaptei dez marchas na criança. Selim projetado para dar conforto nas pedaladas, duplo reforço nos cubos, raios e aro, um sistema duplo de freios e alavanca de mudança de marchas no guidão – ambos inventados e construídos por mim! Sucesso com a meninada – que preferia andar na bicicleta mais confortável, com almofadinha no quadro e tudo o mais – e imbatível nas competições de empinada (hoje chamam de “wheeling”), pois eu tinha domínio absoluto da bicicleta. Modéstia às favas eu tinha a capacidade de andar mais de quilômetro em apenas uma roda – já contando curvas, descidas e subidas. Apenas duas pessoas, reconheço, eram melhores que eu: o próprio Cadimiel, com sua bicicleta azul-celeste também construída sob medida – a “Heroína”, e o Nelil, um caboclinho que eu nem conhecia direito, mas que tinha um domínio muito melhor que nós dois sobre a bike.

Sinal dos tempos. Ambos morreram. Ambos de forma idiota e não tendo nada a ver com aqueles adolescentes destemidos da época.

Depois disso é história. Casei, separei, casei de novo e tive filhos.

Mais de trinta anos me separam desde aquele primeiro momento com minha primeira bicicleta.

Dessa nova era a lembrança mais carinhosa que tenho é quando, já no segundo casamento, montei (sim, eu mesmo as construi) novas bicicletas para mim e para a Dona Patroa. Uma Barra Circular e uma Ceci (uma bicicleta exclusivamente “feminina” e com um quadro elaborado com uma engenharia de dar inveja). Quando o filhote mais velho tinha lá entre seus seis meses e um ano, invariavelmente nos sábados a Dona Patroa resolvia fazer a faxina semanal na casa. Toca tudo de pernas para o ar, mangueira em praticamente todos os aposentos, e muita água e sabão na parte externa. Eu não tinha dúvidas: pegava a cadeirinha que se adaptava em qualquer uma de nossas bicicletas, colocava o filhote e simplesmente sumia pelas horas seguintes. Muitas vezes o pequerrucho começava a dormitar no seu assento e eu tinha que fazer uma pusta ginástica para acomodar sua cabecinha no meu braço enquanto continuava a pedalar…

Mas esse tempo já passou.

Hoje, com três filhotes, a lembrança marcante que fica foi quando ele, justamente o mais velho, numa bela manhã de sol, simplesmente pediu para que tirasse as rodinhas da bicicleta dele. Com receio e temor o fiz e, ato seguinte, o fiudumaégua saiu pedalando como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo! O caçula, a seu tempo, também aprendeu a pedalar com a mesma desenvoltura. Somente o do meio é, ainda, reticente com tudo isso até hoje.

Minha bicicleta? É a mesma Barra Circular do início desse casamento. E que, provavelmente, não vê graxa nova desde então. E tudo isso, todo esse “causo”, foi só pra lembrar que preciso desmontá-la, engraxá-la e lubrificá-la a contento para sair desse sedentarismo paquidérmico do qual não consigo me livrar…

Outro proseio

– E aí, meu rapaz?

– E aí…

– Êêêê… Já vi tudo. Problemas de novo, né?

– Oi?

– PRO-BLE-MAS. Pê-érre-ô-bê-éle-ê-ême-á-ésse. Problemas.

– É. Mais ou menos…

– Sabe o que é infinitamente incrível? E olhe que de infinito Eu entendo. Você raramente vem aqui, quando vem é porque tem alguma coisa incomodando sua cachola e quando Eu pergunto o que é, você fica com essa infantilidade de “meio que sim”, “meio que não”… Enfim, DE-SEM-BU-CHA!

– Caramba! Calma aí! Um pouquinho de paciência, faz favor.

– Paciência Eu tenho. Divina paciência, Eu diria. Mas se você já sabe o que precisa, então poupe Meu tempo.

– Ei! E aquele negócio de onipresença, hein? Presente em todos os lugares, etc, etc, etc?

– Não é porque Sou onipresente que o tempo passa mais rápido ou mais devagar para cada aspecto de Mim. Aliás, no nosso último proseio já não deixei bem claro que nem precisava vir aqui para Me procurar? Lembra? “Sempre contigo…”

– Sim, sim. Eu sei. É que, apesar de toda esta ostentação, aqui na cidade, na falta de um bosque, de um riacho, de uma cachoeira, fica mais fácil nossa conversa aqui neste lugar. Grande, arejado, geladinho…

– Tá, tá, tá. Mas, e daí?

– Tá bom. Calma. E não adianta me olhar assim, hein? Na nossa última conversa eu estava meio que sozinho, meio que deprimido, lembra? Mas eu já superei isso!

– E?…

– Bom, o problema agora não está em mim. Está nos outros. Estou ficando cansado, muito cansado… Sabe, a mesquinhez desse povo me espanta! No meu dia-a-dia tenho encontrado situações que não dá pra acreditar!

– Não acredito!

– Não?

– Na verdade, sim. Mas continue.

– Tá. Pois bem. Ficar decepcionado com quem não faz parte do seu círculo, tudo bem. Na realidade, é bem isso: faz parte. Sabe, é revoltante suspeitar que algumas pessoas são capazes de jogar sujo – e muito – para conseguir alcançar seus próprios objetivos. Mas é frustrante não saber se isso acontece ou não. Contudo é extremamente decepcionante ter a certeza de que isso realmente acontece.

– Então é isso?

– Não, na realidade tem até mais. Às vezes sou obrigado a assistir pessoas maravilhosas serem engaioladas. Privadas de sua criatividade, de seu fantástico potencial de transformação. Pessoas que, por conta de situações que envolvem seus maridos, suas esposas, sua chefia, seu vizinho – não importa quem! – pessoas que são tolhidas da própria existência, limitando-se a levar uma vidinha controlada, planilhada, regrada, abrindo mão da própria felicidade sem sequer perceber o que verdadeiramente está lhe acontecendo!

– Acho que já estou entendendo…

– Não é por mim. Não mais! É por essas pessoas que não despertam para a realidade! Do quão prejudiciais estão sendo para com os outros ou para consigo mesmas! Será que não percebem? Existe um bem maior! Um plano maior!

– E disso COM CERTEZA Eu entendo!

– Heh… Tá, tá bom. Pedi por essa alfinetada, né?

– Né?

– Então. Estou cansado, extremamente cansado, justamente porque estou rodeado desse tipo de pessoas. Por que é que são assim? Não consigo entender o porquê… Por quê?

– Ah, minha criança… Se algum dia você tiver a resposta para todas essas perguntas, mande engarrafar, rotular, reproduzir e fique rico vendendo esse elixir milagroso…

– Cuméquié?

– O que eu quero dizer é que não há resposta. Ou melhor, há. Sabe onde?

– Em mim mesmo? Nah! Não me venha com esse papinho de novo não!

– Olha o respeito, moleque… Mas perceba bem o quanto você já evoluiu: antes você vinha aqui num estado de autocomiseração, agora você vem PEDIR pelos outros!

– Não estou pedindo por ninguém! O que eu quero é saber como me livrar deles!

– Pensa bem. Não mesmo?

– (…)

– Presta atenção. Você, com seu discursinho autopiedoso, acabou demonstrando mais piedade é pelos outros que por si mesmo. Você vê injustiça nessas pessoas engaioladas em si mesmas e não consegue se conformar com a ideia de que elas não possam ou não consigam se libertar. Não é bem isso?

– É, olhando por essa ótica…

– Então. Mas o que você não sabe – ou não aceita – é que nem todos estão prontos pra voar. Tem gente que, muito pelo contrário, prefere a “segurança” de sua gaiola, mesmo com todas as limitações que ela lhes impõe. Mas sabe o que é pior?

– Não. O quê?

– É que não existe gaiola. Cada um de vocês é dotado com a pequena centelha divina que Eu lhes dei, e, por isso mesmo, têm o livre arbítrio necessário para fazer o que bem desejarem. Apesar de uma gigantesca capacidade tanto para o bem quanto para o mal, a decisão sempre vai ser individual. E impor limites a si mesmos, prender-se em situações – gaiolas – das quais acreditam que não podem se livrar, bem, isso faz parte também desse livre arbítrio…

– Mas não seria melhor acordá-los para a vida? Mostrar que tudo é uma grande ilusão e que cada um pode se livrar de seu próprio sofrimento?

– Você andou lendo aquele livro do Richard Bach de novo?

– Não é isso – apesar de eu praticamente tê-lo de cor em minha mente. É que essas pessoas têm tudo pra ser felizes e não o são! Não querem ser!

– Por uma decisão única e exclusiva delas próprias… Livre arbítrio, lembra? Aliás, você mesmo tem sua própria gaiola sentimental e não percebe, não é mesmo?

– Na verdade, sim… Mas prefiro ignorá-la.

– Decisão sua…

– Como é que Você sempre consegue me fazer sentir como um tolo, como seu eu já tivesse todas as respostas?

– Porque você as tem!

– É, né?

– É.

– Bem, tãotáintão. Vou nessa.

– Tá bom. Vai em paz. E se precisar….

– Sim, sim. Sempre comigo, né?

– Isso… Sempre.

Tinderada

E eis que nossa heroína de hoje havia marcado um encontro pelo Tinder!

Para os incautos que não conheçam o atual estado da tecnologia de pegação, saibam que “Tinder” nada mais é que “um aplicativo que apresenta pessoas que estão próximas a você. Através do programa, você poderá conhecer outros usuários que também estão registrados no aplicativo, com o objetivo de marcar encontros.” Ou seja, dá uma olhada na foto, troca umas mensagens, vê se rola um clima e marca uma ponta… Simples assim.

E o local do encontro marcado foi um belo de um barzinho aconchegante…

Apesar de não gostar nem um pouco de se adiantar, curiosamente nesse dia ela acabou chegando antes que o moçoilo. Resolveu mandar uma mensagem pra saber por onde ele andava. “Já estou entrando” – foi a resposta dele.

Nisso, eis que ela levanta os olhos e vê o sujeito vindo porta adentro enquanto guardava o celular no bolso. Seus olhares se cruzaram e ambos sorriram. Ele, de contentamento. Ela, de mais puro nervosismo.

E não, não era nervosismo pelo encontro em si. É que o caboclo não tinha NADA a ver com a foto. Sabem “nada”? Nothing? Niente? Zero? Então. Que enrascada! E agora, como sair dessa? Enquanto isso, ele veio caminhando em sua direção. Ela esboçou o sorriso mais congelado que se pode imaginar para alguém, olhos levemente arregalados e tascou-lhe um “ooooooooooooooooiiiiiii” próximo do interminável…

Ele aproximou-se, ela beijou-o no rosto (ainda com aquele sorriso sardônico travado em seu próprio rosto), entreolharam-se – aquele momento meio de vazio quando duas pessoas não sabem bem qual o próximo passo. Ela começou:

– E aí?

– E aí? Tudo bem?

– Tudo!

– Ahn… Você já pediu alguma coisa?

– Não, não. Também acabei de chegar.

– Que tal um choppinho pra ir quebrando o gelo?

– Ah, tá. Acho legal!

Deu uma olhada sobre o ombro, parecendo que estava meio que medindo o local. Fixou um ponto ao longe, sorriu e garantiu:

– Vou providenciar, então. Só um minutinho e eu já volto!

“Só um minutinho”? Cumassim? Podia levar todos os minutos que quisesse! E um só chopp não iria dar conta de enfrentar essa noitada. Ou melhor, essa roubada! Um porre era o mínimo que ela tinha que esperar agora… Que sacanagem, isso! Como podia ter se enganado tanto com alguém? E a conversa dele até que era legal, bem descolada, inteligente, bem humorada… Bem, como dizem por aí, “já que está no inferno, abraça o capeta”. E que capeta, viu? O negócio agora era tentar descontrair um pouco, olhar o movimento, o lugar, as possíveis rotas de fuga…

Foi então que ela o viu.

Um outro sujeito.

Parado, na porta, conversando.

Seus olhares se cruzaram.

E ele sorriu. E acenou.

E ela, tímida, parva, também acenou…

ESSE é que era o rapaz da foto, do Tinder, das conversas, de tudo!

Mas, mas, mas… E o outro?

Nisso, ela virou-se e o viu voltando para a mesa.

Com o chopp.

Era o garçom…

Aproveitem!

Clique na imagem para adquirir seu exemplar!      Clique na imagem para adquirir seu exemplar!

Comprar livro sempre é bom. Mas comprar um livro com desconto é bem melhor… Agora, poder comprar DOIS livros com um ótimo desconto – caramba, o que é que vocês estão esperando?

É que até o próximo dia 21 o Clube de Autores está concedendo descontos em toda linha impressa de livros. E isso inclui os meus best-sellers pessoais:

* Filosofices de um Velho Causídico com 20% de desconto! – São 400 páginas com a coletânea de textos e crônicas deste meu blog na qual, através dos tópicos Coisas de Casal, Criança dá Trabalho, Juridicausos, Vida Besta, Martelando o Teclado e Filosofices eu disponibilizo textos no geral curtos ou curtíssimos – só que às vezes não – onde falo um pouquinho da vida conjugal, da difícil arte de ser pai, de causos jurídicos, das bestagens que fazemos na nossa vida, de contos, pontos de vista, cultura inútil e coisas de antigamente, bem como também compartilho um tanto de elucubrações mentais que volta e meia passam por esta minha cabeça já atordoada por tanta vivência…

* Criança dá Trabalho com 25% de desconto! – Essa criança que um dia você já foi – regra universal insuperável – é a mesma que existe em todas as casas de todo o mundo. Com a mesma imaginação, criatividade, brincadeiras, disparates, carinho sincero, risada solta ou até mesmo choro sentido. E é disso que tratam as mais de 100 páginas desse livro. Algumas aventuras e desventuras, contos, causos, situações, tiradas e sacadas que só teriam como existir saídos da convivência e da fértil imaginação desses pequeninos seres iluminados.

Então, vamos lá! Aproveitem essas mais de 500 páginas, pois são dois pelo preço de praticamente um e meio!

E, cá entre nós, se não pelo leitinho das crianças, ao menos pelo meu uisquezinho de final de tarde… 😀

Pedaço de mim

Diana Corso

Por que os amores fracassados, as dores de corno, os abandonos, são tão prolíficos na canção, na poesia, tanto quanto ou, talvez, tanto mais do que a paixão? Porque o fim do amor é traumático. Ex-amantes são pedaços perdidos, metades afastadas de nós. Levam consigo um destino que recusou-se a continuar, partem carregando em seus braços aqueles que deixamos de ser, aqueles que sonhamos juntos em tornar-nos um.

Ao rever o passado, tendemos a sentir-nos trapaceados pelos próprios sentimentos. Como foi que me iludi tanto, que escolhi tão mal? Repentinamente aquele que se desejou torna-se um estranho e o amor parece propaganda enganosa, um feitiço que se desfez, revelando alguém que nada vale aos nossos olhos.

Não creio que nos equivoquemos tanto. Por vezes no fim da história não se vive feliz para sempre: a gente se perde, ou apenas escolhe caminhos que tornam-se incompatíveis, mas por certo alguma estrada, boa ou ruim se percorreu juntos. Aquele a quem amamos não é uma pessoa imutável, ele também é resultado do casal que formou. Contemplá-lo, agora afastado de nós, é também ver o resultado disso. Se encontrarmos duas pessoas idênticas ao que eram, então a suspeita do engano se confirma: não houve relação, apenas ilusão.

Mesmo complicados, os amores foram escolhas e deixam marcas no destino que não podem nem devem ser apagadas. Há músicas, cheiros, fotografias, gestos íntimos, que são oriundos daquele laço. Tudo o que vivemos intensamente nos modifica; assim, somos filhos dos amores que tivemos e deles ficamos órfãos.

Pior do que suportar a perda daquilo que se sonhou e viveu juntos é encontrar no lugar do amor que se teve um buraco negro que nos traga. Já conheci esse desespero, já vi um olhar vazio aparecer num rosto em que antes me reconhecia. Sei que todo divórcio é de si mesmo. A sensação que o encontro com um ex-amor recente causa é de cair num abismo, é como se o corpo se dissolvesse.

Por um tempo, seremos pessoas fantasma, até que um dia, passando por um espelho, descobrimos que nossa imagem voltou a estar lá. Vampiros não se enxergam porque perderam todo o sangue próprio. É assim que nos sentimos quando separados: esvaziados. Aos poucos, felizmente, a vida começa a pulsar novamente e podemos voltar a refletir uma imagem. Só que, agora, marcada pelos traços daquele olhar que uma vez escolhemos para nos refletir.

Acabou, mas existiu.

( Crônica publicada na revista Vida Simples, de FEV/2015 )

Não era amor

Não era amor
Era um sentimento muito mais bonito
Um sentimento nascido no meio de um término
Sem ter no mínimo tido tempo de ter se feito compreendido
Ah, se todo amor fosse correspondido…
Mas enfim, não era amor, era um sentimento muito mais bonito
E as coisas precisam nascer de algum jeito
Nem que seja para morrer, logo ali, no seu peito
Nem que seja para renascer, bem aqui, por respeito
Ou se esconder em nós até que um de nós resolva se desatar
Em tantos
Em tontos
Em prantos
E pronto:
Estamos felizes novamente!
Pra que chorar?
Se nem a sua lágrima sabe por que cai
Se nem a sua mágoa sabe quem é seu pai
Se nem a sua dor sabe por que ai!
Se nem o seu passo sabe por que vai
Gostava de você quando dávamos as mãos
E andávamos bêbados pelos becos
Gostava de você quando eu soltava a sua mão
Para escrever: não era amor
E você soltava da minha
Para completar: era um sentimento muito mais bonito
E a gente ria.
E não se amava.
Éramos muito mais bonitos.
[não era amor; Antônio]