Ai, que saudade d’ocê!

Hoje sonhei com você.

Como há muito tempo não sonhava!

Sei que andamos distantes, distraídos e praticamente sem contato. Coisas de nossas vidas, entendo bem isso. Afinal de contas, é basicamente minha a decisão de não estar por perto. Você sabe bem o quão complexo e complicado eu sou e, ainda que eu venha a sofrer com toda essa lonjura, vamos combinar que, para mim, é meio que um instinto de autopreservação…

Mas sonhos não se dão a esse luxo.

Sonhos, talvez, devem ser manifestações psíquicas das necessidades físicas de um ser humano. E ter você por perto – não se engane! – é, sim, uma necessidade física!

E foi um daqueles sonhos tão vívidos, tão reais que, ao acordar, ficamos na dúvida se ainda não estamos sonhando.

E, nesse sonho, encontramo-nos casualmente. Não me pergunte onde, não sei! Mas sei que, como sempre, à distância mais senti sua presença que realmente te vi. E quando menos esperava já havia me aproximado, já estava do seu lado, sorrindo, te desejando, num flerte aberto e escancarado. E você, impassível. Um gelo. Normal.

E, ato contínuo, já estávamos a sós. Delicadamente, segurando todo meu afã, sem pressa, te despi, expondo toda sua pujante nudez.

Antevi aquilo que estava por vir, já me lembrando de sua textura, de teu sabor, de teu cheiro – ah, teu cheiro! Odores estão diretamente ligados à memória e a memória a estes. Não tem como não meramente lembrar de você sem lembrar desse teu saborosíssimo cheiro… É inebriante! Alguma vez você já se deu conta disso?

E, tal qual numa dança, lenta dança, prazerosa dança, segurei-me ao máximo para sequer te tocar. Nosso ato de consumação não poderia ser leviano – nossas preliminares deveriam ser respeitadas. Um simples toque poderia colocar tudo a perder.

De tão próximos, mesmo não te tocando, senti tua temperatura. E teu cheiro. Novamente teu cheiro! E foi nesse instante que tive a plena certeza de que não mais conseguiria me segurar. Era impossível me segurar. Queria – precisava – ter você, novamente, só pra mim.

E então, quando estava praticamente no momento final de dar início ao nosso íntimo ato, de te penetrar, já começando a sentir o teu aconchegante contato, já antevendo a alegria de, mais uma vez poder te saborear total e completamente num devaneio de arroubo de prazer…

Acordei.

Tonto, perdido e deslocado.

E então me dei conta: era um sonho.

Ainda não foi dessa vez que voltamos à nossa antiga relação…

Fica pra próxima.

Quem sabe.

E ficamos assim: sorvete de creme, vai vivendo tua vida e eu, a minha.

Tem gato nessa tuba…

Sim, tenho certeza que em algum momento de sua vida você já ouviu essa expressão.

E o que ela quer dizer? Quer dizer que alguma coisa está errada, que alguma coisa ou situação pode ter algo a mais que aparenta ter, que algo que deveria se comportar de um jeito está se comportando de outro. Enfim, quer dizer que tem caroço nesse angu, que algo cheira mal, que a história tá mal contada, que nesse mato tem coelho, que há algo de podre no Reino da Dinamarca (outras deliciosas expressões…).

Ninguém sabe ao certo a origem dessa expressão, mas diz a lenda que um músico que tocava tuba – um gigantesco instrumento metálico de sopro, com uma campânula enorme – achou que o som estava muito estranho e ninguém conseguia saber o porquê. Toca daqui, afina dali e nada. Até que, ao desmontar o instrumento, descobriram que havia um gatinho dentro da tuba!

Ou seja, quando algo não está soando bem, dizemos que “tem gato nessa tuba”

Aliás, já que estamos falando de cultura inútil, dessas expressões citadas outra que gosto muito é que “há algo de podre no Reino da Dinamarca” – essa de origem mais certa e nobre.

É originada na peça teatral Hamlet, de William Shakespeare. Nela, o príncipe Hamlet, filho do rei da Dinamarca, é encarregado pelo fantasma de seu pai para vingar seu assassinato. Hamlet o faz, mas no processo acaba liquidando toda a família real e, ao final, ele mesmo acaba mortalmente ferido por um florete envenenado. É… bem mexicana essa tragédia grega britânica…

Mas, enfim, em determinado momento da peça, um dos personagens, ao concluir que existem traições dentro de traições, tramóias e assassinatos que estão acabando com o reino, solta a pomposa e futuramente famosa frase: “something is rotten in the state of Denmark”.

O que exatamente ele quis dizer com isso?

Fácil.

Que tem gato nessa tuba…

O velho, o jovem, o futuro e a máquina

Gostei.

Roubartilhei daqui.

– O futuro? O futuro é dos jovens! – disse o apresentador de televisão

Ao ouvir isso, o velho ao meu lado sorriu com amargura.

– Que besteira – ele disse.

– O futuro não é dos jovens, velho? – perguntei para ele.

– O futuro não é dado pra ninguém, ele é conquistado. E esses idiotas da televisão ficam dizendo que o futuro será dado numa bandeja de prata para os jovens. E os jovens, que estão acostumados a comer, beber e a respirar mentiras, acreditam. Isso é um crime.

– O senhor está errado, o futuro é dos jovens. Tenho certeza disso.

– Ah é? Que futuro tem alguém com uma péssima educação, que não tem saneamento básico, e cuja alma está embrutecida? Sem chance, essa pessoa não possui o futuro, é o futuro que a possui. O futuro chupará seu sangue, depois a mastigará, quebrará todos os os seus ossos, chupará a medula deles e então a cuspirá de uma vez só. Essa é que é a verdade.

– O senhor esta errado, o futuro é dos jovens.

– Não, não é. O futuro está sendo roubado dos jovens, essa é que é a verdade. Roubado por gente que sabe como a máquina funciona. Geração após geração essas pessoas roubam o futuro dos jovens, mas ninguém tem coragem de falar nisso. E sabe por quê? Porque tem sempre um imbecil na televisão dizendo que a juventude é o máximo, mesmo que ela seja aviltada dia após dia. O simples fato de ser jovem já implica em um mérito, é a lavagem cerebral que esses idiotas da televisão fazem na cabeça da juventude todos os dias.

– O senhor esta errado, ser jovem é o máximo!

– Talvez até seja, sei lá. Mas por si só não é mérito nenhum.

– O senhor está errado. O senhor vai ver. Nós vamos mudar esse País.

– Eu não vou ver nada, seu pentelho. Até lá já estarei morto. Mas vou lhe dizer porque você e todos esses seus amiguinhos, que acham que a juventude é um mérito por si só, não vão mudar porra nenhuma.

Ele faz uma pausa.

– Uma máquina de moer carne não produz bifes, ela os destrói. Transforma tudo em picadinho. Você e o seus amiguinhos cabeça de vento querem fazer filé com uma máquina de moer carne. Não tem como, não dá. Coloca isso nessa sua cabeça dura, seu merdinha.

– Se é assim, seu velho gagá, o que é que a gente faz? Chora? – perguntei com doses cavalares de ironia em minha voz.

– Joga a porra dessa máquina fora. Joga no rio, põe fogo, manda pro espaço, sei lá, manda pro inferno.

Passam-se alguns segundos.

– Mas por que o senhor não fez isso quando era jovem, hein, senhor sabe tudo?

– Na sua idade, eu e os outros jovens estávamos construindo a máquina. A gente não sabia o que tava construindo. Os mais velhos diziam que era necessário construir a máquina porque ela iria nos salvar.

– Salvar do quê? – perguntei sem entender.

– Não sei, não lembro mais. Era tanta mentira… Os mais velhos ficavam insistindo que a gente tinha que construir a máquina porque tudo seria melhor com ela. Bando de miseráveis. Eles só esqueceram de dizer que as peças dessa máquina eram feitas dos nossos sonhos, das nossas esperanças, do nosso futuro, da nossa felicidade.

Dessa vez sou eu que faço uma pausa. O velho fala com tanta certeza que minha vontade de retrucar desaparece.

– A primeira coisa que vocês têm que fazer é parar de alimentar a máquina. Sem combustível ela para.

– Como? – perguntei.

– Parem de acreditar nas mentiras. É o primeiro passo.

– E depois?

– Daí vocês desmontam ela. Você vai ver, sem a máquina, vai sobrar tempo pra tudo, inclusive pra ser feliz.

Olho para o velho, pego o controle remoto, e desligo a televisão.

O velho olha para mim e sorri um sorriso menos amargo.

– E agora, velho? Que que eu faço?

– Sai daqui e vai fazer o que você nasceu pra fazer.

– O quê?

– Desmontar a porra dessa máquina.