Alone in the darkness

E então você chega em casa.

Silêncio.

Para minimizar o efeito você se concentra nas tarefas triviais. Limpeza da casa. Roupas no varal. Correspondência sob a porta. Coisas do cotidiano.

Mas, ainda assim…

Silêncio.

Checa seus e-mails, atualiza seu blog, publica no Twitter, passeia pelo Facebook.

Enquanto isso…

Silêncio.

Toma um banho, rememora o dia, resguarda quem queria ver, releva quem não pretendia, planeja o amanhã, imagina o depois, mas…

Silêncio.

E seu coração começa a ficar apertado (somente compreende plenamente essa expressão quem já por ela passou).

Come o último pão integral, repassa mentalmente uma lista de compras que sabe que vai esquecer e flerta por alguns momentos com uma garrafa de vinho ainda fechada que sedutoramente te encara da cristaleira.

Mas o vinho, ao contrário dos solitários destilados, é uma bebida para ser verdadeiramente apreciada, no mínimo, a dois.

Que fique, pois, a garrafa quieta em seu canto, sossegada em seu mais absoluto…

Silêncio.

Recosta-se na cama, arruma o travesseiro, cobre-se, puxa um dos vários livros para mais uma vez continuar alguma das várias leituras.

Mas depois de duas, três, quatro páginas percebe que sequer tem idéia do que está lendo. Seu corpo está presente, mas sua mente não. Deixa o marcador na mesma posição de quando pegou o livro, apaga a luz, aninha-se e fecha os olhos.

E escuta.

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio.

Muito silêncio.

Um silêncio ensurdecedor.

Um silêncio que se expande, que cobre, que envolve, se espalha e faz tremer as paredes.

Um aterrador silêncio.

Ainda que busque consolo nas memórias do dia, nas risadas compartilhadas, nas tarefas executadas, nas pessoas encontradas – ou, ainda mais distante, nas memórias recentes, na companhia dos amigos, nas viagens realizadas, na bagunça dos filhotes, nos lábios da amada, enfim, nos ruídos, nas percepções, nas experiências que poderiam preencher sua alma… Ainda assim ele se faz avassaladoramente presente.

Silêncio.

E a noite se estende e é cedo o suficiente para saber quão longa ela será. E nessa, em especial, na qual as famílias já se recolheram, os operários já se foram e as baladas acolhem seus devotos, mais uma vez é a solidão que em meio ao escuro do quarto se aproxima, se entremeia nas cobertas, te envolve nos frios braços e sussura em seus ouvidos.

Silêncio.

E você – pela bilionésima vez – se questiona acerca de seus caminhos, suas decisões, suas escolhas. As conversas que já teve, as que não teve, as que gostaria de ter, as que esperava ter, as que não terá.

E, animal social que é, percebe o quanto lhe faz falta o carinho, o aconchego, o sorriso, o abraço, o entrelaço de pernas, a pele na pele, a confiança largada, a segura companhia, a estável presença, o suave murmúrio das crianças na madrugada, o calor de realmente querer bem e de ser verdadeiramente correspondido, a simples e tenra ternura de sentir serenamente preenchido o coração. Sem efusão. Sem sofrimento. Doce acalento.

Mas não é esse o seu caminho.

Não hoje.

Não agora.

Resta, então, o abraço da solidão.

A noite que se distende.

E, obviamente.

Silêncio.

O que faz você feliz?

O que faz você feliz?
A lua, a praia, o mar
Uma rua, passear
Um doce, uma dança
Um beijo ou goiabada com queijo?
Afinal, o que faz você feliz?
Chocolate, paixão
Dormir cedo, acordar tarde
Arroz com feijão, matar a saudade
O aumento, a casa, o carro que você sempre quis
Ou são os sonhos que te fazem feliz?
Dormir na rede, matar a sede
Ler ou viver um romance
O que faz você feliz?
Um lápis, uma letra, uma conversa boa
Um cafuné, café com leite, rir a toa
Um pássaro, um parque, um chafariz
Ou será o choro que te faz feliz?
A pausa para pensar
Sentir o vento
Esquecer o tempo
O céu
O sol
Um som
A pessoa ou o lugar
Agora me diz o que faz você feliz?

O que faz você feliz?
aquela comida caseira,
arroz com feijão
brincar a tarde inteira
o molho do macarrão
ou é o cheiro da cebola fritando que faz você feliz?
o papo com a vizinha,
o bife, a batatinha
a goiabada com queijo
um doce ou um desejo
afinal o que faz você feliz?

O que faz você feliz?
ficar de bobeira
assaltar a geladeira
comer frango com a mão
tomar água na garrafa
passar azeite no pão
ou é namorar a noite inteira que faz você feliz?
rir e brindar a toa
um filme, uma conversa boa
fazer um dia normal virar uma noite especial
afinal, o que faz você feliz?

O que faz você feliz?
comer morango com a mão
por açúcar no abacate
brincar com melão, goiaba, romã, jabuticaba
ou é o gostinho de infância que faz você feliz?
cuspir sementes de melancia
falar besteira, ficar sem fazer nada
plantar bananeira, ou comer banana amassada?
afinal, o que faz você feliz?

Escritores e escritores

Quem resolve se meter a escrever qualquer coisa que seja – um texto, um post, um livro, um parecer, um tratado, não importa! – tem que estar plenamente preparado para encarar o seguinte fato: alguém no mundo já escreveu exatamente sobre a mesma coisa que você.

E provavelmente melhor.

Ainda que os textos sejam completamente diferentes, a abordagem seja distinta e o próprio palavreado tenha suas próprias matizes, não há como negar a similaridade daquela centelha inicial que o levou a desenvolver algum raciocínio e escrever sobre determinado tema.

Tá certo que se considerarmos que centelhas são simples e, provavelmente, repetitivas, fica então razoavelmente fácil de perceber que o que importa mesmo é o fogo gerado a partir daquela centelha – pois esse fogo vai se comportar de maneira totalmente distinta daquele da fogueira do lado, quer seja pela posição, pela maneira que foi aceso, pelo material de combustão, enfim, mil ou mais motivos distintos.

Transporte essa comparação para o mundo da escrita e entenderão que estamos falando da mesma coisa!

Bem, tudo isso só pra dizer que senti certa familiaridade no tema abordado pelo Mario Prata em uma de suas crônicas. Já há um bom tempo escrevi este texto aqui. Mas agora parece que reconheço a mesma centelha inicial nesse a seguir…

Quem escreve as bulas?
Estadão, 30/03/1997

Quando me perguntam a profissão e eu digo que sou escritor, logo vem outra em cima: de quê? De tudo, minha senhora. De tudo, menos de bula. Romance, cinema, teatro, televisão, crônicas, ensaios, tudo-tudo, menos bula!

Uma vez, num barzinho, uma gatinha me perguntou o que eu escrevia e disse que escrevia bula. Ela não deu a menor atenção para mim. Se dissesse que era cronista do Estadão talvez tivesse mais sucesso. Por que o preconceito contra as geniais bulas? Quando é bula papal todo mundo leva a sério, mesmo que seja para dizer que não se pode fazer amor sem a intenção da procriação (que palavra mais animal!).

Não que eu não aprecie as bulas. Pelo contrário. Adoro lê-las. E com atenção. E, sempre, depois de ler uma, já começo a sentir todas as reações adversas.

Admiro, invejo esse colega que escreve bulas. Fico imaginando a cara dele, como deve ser a sua casa. Que papo tal escrivão deve levar com a mulher e com os vizinhos?

Tal remédio é contra-indicado a pacientes sensíveis a benzodiazepinas e em pacientes portadores de miastenia gravis. Dá vontade de telefonar para o autor e perguntar como é que eu vou saber se eu sou sensível e porador?

Quanto ele ganha por bula? Será que ele leva os obrigatórios 10% de direitos autorais? Merecem, são gênios.

Jamais, numa peça de teatro, num roteiro de filme ou mesmo numa simples crônica conseguiria a concisão seguinte: é apresentado sob forma de solução isotônica (que lindo!) de cloreto de sódio, que não altera a fisiologia das células da mucosa nasal, em associação com cloreto de benzalcônio. Sabe o que é? O velho e inocente Rinosoro.

Vejam o texto seguinte e sintam na narrativa como o autor é sádico: você poderá ter sonolência, fadiga transitória, sensação de inquietação, aumento de apetite, confusão acompanhada de desorientação e alucinações, estado de ansiedade, agitação, distúrbios do sono, mania, hipomania, agressividade, déficit de memória, bocejos, despersonalização, insônia, pesadelos, agravamento da depressão e concentração deficiente. Vertigens, delírios, tremores, distúrbios da fala, convulsões e ataxia. Pronto, tenho que ir ao dicionário ver o que é ataxia: incapacidade de coordenação dos movimentos musculares voluntários e que pode fazer parte do quadro clínico de numerosas doenças do sistema nervoso.

Já tá sentindo tudo que foi descrito acima?

Quem mandou ler?

E que tem úlcera pélvica não pode tomar remédio nenhum. Está condenado à morte? Toda bula odeia essa tal de úlcera pélvica. As demais úlceras entram como coadjuvantes nos textos dos autores buláticos (tem a palavra no Aurélio).

E as gestantes (é como os buláticos chamam a grávida)? Elas não podem tomar nenhum remédio. Os nobres coleguinhas protegem a gravidez.

Para todo remédio uma bula diferente, um estilo próprio, um jeito de colocar a vírgula diferente.

Tudo isso para dizer que outro dia, na cama, com a parceira amada, pego uma camisinha na mesinha e abro. Sabe o que estava escrito lá dentro? Parabéns! Você adquiriu o mais avançado e seguro preservativo do mercado brasileiro. Era uma bula. Escrita por algum conhecedor, é claro, dentro da caixinha da camisinha. Claro que me entusiasmei e segui a leitura deixando a amada de lado. Brochei, é claro. Mas, em compensação, fiquei sabendo que o agente espermicida nonoxinol é contra as DSTs.

Depois dessa informação, aí sim, voltei para a alcova. Mas e a amada, onde estava?

E lembre-se sempre: todo medicamento deve ser mantido fora do alcance das crianças. E não tome remédio sem o conhecimento do seu médico. Pode ser perigoso para a sua saúde.

E pra cabeça!

Agora, falando sério. Admiro os escritores de bula. Assim como invejo os poetas. Talvez por nunca ter sido convidado (nem teria experiência) para escrever uma e nunca tenha conseguido escrever um poema. Sempre gostei de escrever as linhas até o final do parágrafo.

Para mim o poeta é um talentoso preguiçoso. Nunca chega ao final da linha. Já repararam?

Já o bulático, esse sim, é um esforçado poeta!

Mario Prata
Cem Melhores Crônicas (que, na verdade, são 129)
2007

“Compartilhar”

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.

Alberto Caeiro

“Suave é viver só”

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis

Um passeio no parque

“Você tem alguém na sua vida, Thomas? Atualmente, quero dizer.”

“Imagino que esteja perguntando de alguma mulher.”

“Sim. Está dormindo com alguma?”

“Quando você diz dormindo, quer dizer…?”

“Responda a pergunta de uma vez ou eu chamo a polícia.” Ela estava sorrindo. Por minha causa. Eu a fiz rir, e isso me fazia bem.

“Não, Ronnie. Não estou dormindo com nenhuma mulher no momento.”

“Algum homem?”

“Nem um homem. Ou animal. Nem nenhuma árvore conífera.”

“Por que não? Se não se importa de eu perguntar. E mesmo que se importe, por quê?”

Suspirei. Na verdade, eu mesmo não sabia bem a resposta, mas responder isso não iria satisfazê-la. Comecei a falar sem ter uma idéia clara do que iria dizer.

“Porque sexo causa mais tristeza do que prazer”, falei. “Porque homens e mulheres querem coisas diferentes, e um deles sempre fica desapontado no final. Porque não me pedem isso muitas vezes e eu detesto pedir para alguém. Porque não sou muito bom nisso. Porque estou acostumado a ficar só. E porque não consigo pensar em outras razões.” Fiz uma pausa para respirar.

“Tá bom”, ela disse e se virou e começou a andar de costas, assim conseguia olhar bem para o meu rosto. “Qual delas é a razão verdadeira?”

Diálogo – na minha opinião – interessante no livro O Vendedor de Armas, de autoria de Hugh Laurie.