Se você me esquecer

Quero que você saiba uma coisa
Você sabe como é:
Se eu olhar a lua de cristal, pelo galho vermelho
do lento outono em minha janela,
Se eu tocar, próximo ao fogo, a intocável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva a você,
como se tudo o que existe: perfumes, luz, metais,
fossem pequenos barcos que navegam
rumo às tuas ilhas que me esperam.

Bem, agora,
se pouco a pouco você deixar de me amar
eu deixarei de te amar, pouco a pouco.

Se, de repente, você me esquecer
não me procure
pois já terei te esquecido.

Se você considera longo e louco
o vento das bandeiras
que passa pela minha vida,
e decide me deixar na margem do coração
em que tenho raízes,
lembre-se que neste dia,
nesta hora,
levantarei meus braços
e minhas raízes sairão a buscar outra terra.

Mas
Se cada dia,
cada hora,
você sentir que é destinada a mim
com implacável doçura,
se cada dia uma flor
escalar os teus lábios a me procurar,
ah meu amor, ah meu próprio eu,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem é esquecido
meu amor se nutre no seu amor, amada,
e enquanto você viver, estará você em seus braços,
sem deixar os meus…

O problema

O problema deste mundo são esses amores não-correspondidos e desperdiçados a toda hora, entende? Como paixões que são despertadas negligentemente, ilusões platônicas que acabam com gosto de soco na alma, noites de sexo mal intepretadas, amores exilados que não encontram seu lugar no mundo, como peças extraviadas de um quebra-cabeça. O problema todo se resume nisso: corações e cérebros não falam a mesma língua. A vida seria muito menos dolorida se a gente tivesse o dom de se apaixonar por aquela pessoa que nos oferece o coração. (…)

Alexandre Inagaki
De seu texto “Bons Amigos”
No livro Blog de Papel

Proseio

– E aí?

– E aí…

– Quanto tempo, hein?

– Acho que sim…

– Êêêê… Já vi que a coisa tá pegando…

– Cumassim?

– Primeiro. Você só aparece por aqui quando tem algum enrosco – você sabe muito bem que nem precisava, mas acho que talvez assim você se sinta, sei lá, mais confortável dessa maneira. Segundo. Essas respostinhas evasivas, do tipo “não quero falar, mas se você perguntar, eu falo”. Larga mão de bobagem! Terceiro. OLHA PRA MIM QUANDO EU FALAR COM VOCÊ!!!

– Oi, tá. Pronto, pronto. Desculpa aí…

– Tá. Agora desembucha.

– Sei lá. Às vezes acho que só quero mesmo é uma companhia… Daí eu venho aqui prosear um bocadinho. Mas, da mesma maneira, às vezes, tenho certeza absoluta de que quero ficar absolutamente sozinho. Entende essa pseudo-confusão?

– É mais comum do que você imagina… A metade das pessoas com quem falo não quer falar comigo, e a outra metade acha que me ouve, mas na verdade não ouve absolutamente nada. Às vezes é frustrante…

– Ei, quem é que tá com problemas aqui?

– Ei! Péraê! Por um acaso tá me achando com cara de psicólogo? Bem, pelo menos você admitiu que tá com algum tipo de problema…

– É. Na prática acho que tô sim.

– E?…

– Tá. Então. Eu vou levando aqui minha vidinha, sabe? Pago minhas contas, meus carnezinhos, gosto de meu trabalho, tenho bons amigos, amo meus filhos, curto minhas paixões, sempre me entrego de coração aberto, não sacaneio ninguém, tento ser um cara legal, enfim, nada demais, certo?

– Certo…

– Então será que tem como explicar o porquê de, ainda assim, eu estar com essa sensação de “vazio”? Você está sempre na área quando eu preciso de ajuda – tá, e quando não preciso também – então queria saber se tem alguma dica, algum toque, algo pra eu me apegar, entende?

– Você sabe muito bem qual será minha resposta, não sabe?…

– Acho que sei… Que eu mesmo tenho todas as respostas que preciso, né? Só preciso descobrir qual é a pergunta certa…

– Pois é. Assim como qualquer outra pessoa, você tem um potencial enorme. Tanto para o bem quanto para o mal. Tanto para o sucesso quanto para o desastre. Só depende de você. Fique centrado, busque seu equilíbrio, descarte os pensamentos inúteis que ficam ocupando o lugar dos úteis. Reveja seus posicionamentos. Reinvente-se! Mas ficar aí lamuriando é que não vai te ajudar mesmo!

– É. Eu sei. Sempre soube, né? Mas acho que às vezes a gente tem que ouvir isso de outra pessoa. E, sinceramente? É muito mais fácil se essa outra pessoa for Você…

– Heh… Você até parece aquele personagem, o House. Só procura o Wilson quando tá ferrado…

Você assiste House?

– Adoro! Noutra situação eu até não seria capaz de acreditar nele.

– Faz sentido… Bom, valeu pelo proseio. Vou indo. Um monte de coisas pra fazer, Você sabe, né? O de sempre.

– Eu sei, eu sei. Fica bem. Quando e se quiser pode voltar aqui. Mas você sabe que tem muitos outros lugares onde a gente pode se encontrar. Acho que você sabe que não sou muito chegado nisso aqui não. Muita ostentação…

– É, agora que falou, realmente isso não tem muito sua cara, não…

– Pois é… Mas esse povo é teimoso. É como costumo dizer: “corte uma madeira e lá estarei; levante uma pedra e lá me encontrarás; não estou em altares de madeira ou em estátuas de ouro – você é o meu verdadeiro templo”… Mas parece que não adianta!

– É… Então ficamos assim. Valeu!

– Vai em paz, criança… Se precisar, já sabe, né?

– Sei sim. Sempre comigo, né?

– É.

Elpidio Reali Junior

Sei que não é num “bom momento”. Mas simplesmente venero a maneira como esse caboclo sabe trabalhar com as palavras…

A morte de um jornalista
MINO CARTA

Um amigo partiu desta vida, e dizer amigo sem adjetivos basta, são poucos os amigos cuja lealdade não admite dúvidas e cuja lembrança é para sempre. Elpidio Reali Jr., que nunca chamei Elpidio, era o Reali e ponto final, pertencia e pertence a esta categoria. Faz pouco tempo saiu o livro das suas memórias, Às Margens do Sena, longo depoimento recolhido por meu filho, Gianni, e prefaciado pelo acima assinado. E ali eu dizia que quando nos encontrávamos, frequentemente nas cercanias de uma garrafa de bom vinho, podíamos conversar horas a fio sem tropeçar em um único, escasso ponto de discordância. Conhecíamos um ao outro passo a passo no espaço alastrado entre o coração e a alma.

Sim, verdade factual é que já tivemos opiniões diferentes no confronto entre vinhos franceses e italianos, mas também a respeito desta questão crucial acabamos por convergir para uma posição comum. A amizade tinha raízes. Meu pai, Giannino, conhecera em 1947 o pai do Reali, o primeiro Elpidio, então diretor da Interpol, policial culto e competente. Ambos estavam em ação por causa do rapto presumido de um filho de Francisco Matarazzo II, cada qual ao sabor de suas funções, o policial e o jornalista.

Descobriu-se finalmente que o plano do sequestro era da lavra do sequestrado, Eduardo, e contava com a desastrada colaboração de dois empregados italianos das IRFM, Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, os engenheiros Malavasi e Comelli dispostos a arcar com o papel de sequestradores. Resgate entregue, tramoia revelada logo após. Eduardo, o filho que pretendia extorquir dinheiro do pai Chiquinho, safou-se incólume, embora cuidasse de levar vida apartada. Os italianos, em compensação, passaram uma esticada temporada na cadeia. O policial e o jornalista lamentaram o desfecho e ficaram amigos.

Quanto a mim, dei com o Reali pela primeira vez no vídeo. Eu acabava de regressar da Itália, onde havia exercido a profissão por três anos e meio, primeira metade de 1960, e o Reali era repórter de campo em jogos de futebol televisados, o repórter Canarinho da Record como o apelidara Silvio Luiz. Acabamos por nos conhecer em Paris, na década de 70, onde ele voluntariamente se exilara com a mulher, sua eterna companheira Amelinha, e filhas, depois de receber o Prêmio Governador do Estado de São Paulo como melhor radialista esportivo. Na hora da entrega, dedicou-o aos colegas presos pelo terror de Estado, infelizmente impossibilitados de concorrer.

Há o indivíduo, o cidadão, o profissional. Entre eles, os elos indissolúveis da coe-rência no respeito dos princípios e dos valores. Leio nos obituários que Reali foi um grande jornalista. Eu diria que, sobretudo, foi raro, jornalistas que honram a profissão há poucos. Pouquíssimos. A maioria vive no terror de perder o emprego, quando não se trata de um daqueles que se aboletaram em posições de comando na qualidade de sabujos do patrão. Pergunto-me se têm consciência da adulação desbragada a que se entregaram, se ao se olharem no espelho percebem o lacaio, ou se são sinceros na submissão porque a carregam no sangue ou se compartilham em harmonia integral das ideias de quem lhes paga o salário e lutam bravamente a favor dos interesses do próprio.

Por exemplo. O que vai pelas entranhas da revista Época, que há duas semanas dedicou uma reportagem de capa ao relatório da PF sobre o famigerado valerioduto para divulgar uma versão manipulada, esconder a personagem principal do enredo, o banqueiro Daniel Dantas, e esquecer a Globo, também envolvida no episódio? Sei tão somente que a mídia nativa reservou estrondoso silêncio ao texto autêntico publicado por CartaCapital, em seus trechos principais na semanal e integralmente pela internet. Não é surpresa, está claro, que Época não peça desculpas aos seus leitores, ou que a mídia nativa não repercuta a verdade factual, a soletrar o que até hoje impávida sustenta, ou seja, a existência do mensalão que o relatório nega. Contra esta caterva de escribas e oradores a soldo do privilégio não há verdade factual que resista.

A diferença, no caso de Reali, e a raridade estão no fato de que ele serviu antes de mais nada à sua consciência. E eu aqui estou, saudoso, e de súbito me ocorre a imagem do jovem loiro a correr à margem de um gramado com os cachos ao vento.

Criacionismo

E então estava lá deus bestando, debruçado sobre a prancheta.

Onipresentemente pensava consigo mesmo: “Pra que fazer isso? Pra que é que eu fui criar esse joguinho pro Adão ficar dando nomes a todas as coisas? Agora fico eu aqui inventando invencionices pra ele nomear… E o pior é que, no fundo, no fundo, nem é ele!”

Nota: Na prática é tudo uma questão de “sintonia divina”, uma forma de acessar a mente do hômi e saber o que se passa por lá… Como na época só tinha uma operadora – ele próprio – e um único usuário – Adão – o negócio era trabalhar com filtros até simples pra não dar conexão direta. O problema é que de lá pra cá a coisa descambou, existem bilhões de usuários e a operadora continua centralizada. Ou seja, é um tal de oração em linha cruzada e chamada não atendida que não tem fim. Ainda bem que esse negócio de telemarketing é infernal, senão seria, no mínimo, complicado. Já pensaram? “Por favor, não desligue. Sua oração é muito importante para nós. Aguarde apenas mais um momento pois todas nossas escutas celestiais estão ocupadas. Dentro em breve vamos estar atendendo e poder estar providenciando uma análise de sua oração.” Bom, vocês já perceberam que não ia prestar… Mas vamos lá. Então deus já estava de saco cheio com esse negócio de dar nomes, que era mais uma questão de adivinhação que qualquer outra coisa.

“Idéia de jerico”, pensou ele.

E, do nada, criou um jerico.

E vendo aquilo que criou, ficou pensando… Era mais ou menos um cavalo na essência… Um pouco diferente, só. As orelhas mais compridas…

“Compridas?…”

Hmmm…

Então, já que era mais uma celestial tarde modorrenta e lá no Jardin do Éden ainda não tinha nenhuma Eva pra uma sacanagenzinha básica, resolveu ele dificultar esse jogo de adivinha. E começou a mudar a forma padrão que já tinha estabelecido para os animais da Terra. Encompridando aqui, encolhendo ali, mudando um bocadinho acolá. Ou seja, fazendo igual, mas diferente. Algo assim como o novo Fusca.

E veio o elefante, bicho esquisito de nariz mais ainda.

Adão acertou.

Na sequência, aproveitando o desenho, veio o tamanduá, pra ficar ainda mais diferente.

Adão acertou.

A girafa, com um pescoço tão comprido que quase não dá pra saber de que bicho ela é parente.

Adão acertou.

A zebra – que até hoje não se sabe se é branca com listas pretas ou preta com listas brancas.

Adão acertou.

O pinguim – “esse o Torvalds vai gostar”, pensou ele – um pássaro que não voa (só pra confundir).

Adão acertou.

Ema, avestruz, camelo, dromedário.

Acertou, acertou, acertou, acertou.

“Ah, é, seu fiudumaégua?” – mas essa não foi criada, porque já existia e já havia sido nomeada.

E debruçou-se deus sobre a prancheta e começou a criar um bicho tão, mas tão esquisito, que até ele mesmo duvidava.

“Terá – deixe-me ver… – um bico de pato, mas será carnívoro… Vou fazê-lo mamífero, mas que ponha ovos… Apesar de membranas nas patas, como algumas aves, não terá penas, mas sim pelos… Poderá viver tanto na terra quanto na água… Soltará leite pelos poros, terá veneno como as serpentes e um rabo chato, como de castores… Vou dar um nozinho de meio laço na sequência final do genoma pra também ser parente dos répteis…”

Assim tendo o feito, com o rascunho pronto na prancheta, ao final deus contemplou sua obra e…

…teve uma monumental crise de riso!

Não teria jeito. Para todos os padrões inimagináveis aquela criatura seria ridícula demais! Não tiraria aquele rascunho de sua prancheta de maneira alguma!

E foi ele, contemplando a si próprio – e ainda rindo a valer – tomar uminha e tirar um cochilo…

Nesse meio tempo um anjinho estagiário meia-boca que vivia querendo puxar o saco do patrão pra ver se ganhava alguns pontos – um tal de lúcifer – foi dar uma fuçada na mesa do chefe e viu aquela figura estranha. Pensou consigo mesmo que podia adiantar aquele novo projeto (por mais estranho que fosse) e deixaria o hômi feliz se já o levasse pra linha de produção.

Um tempinho depois, enquanto deus estava lá sentadão, naquele dorme-não-dorme, já ouvindo a musiquinha do Fantástico (que ainda não existia, mas para ele era fácil fazer o tempo curvar-se conforme queria), acabou baixando a guarda e se conectou via linha direta com Adão… E ouviu claramente, como o soar de mil gongos: “ORNITORRINCO!”

– Mas que ca…

Correu para a prancheta.

Encontrou o estagiário lúcifer lá, parado bem do lado, peito estufado e um sorriso besta na cara.

– Então, siôdeus, eu tava aqui e vi que o siô tinha deixado trabalho que o siô mesmo num criô, daí eu peguei e levei lá pra levar pra linha de produção, daí eu levei pro siô, porque eu sempre tô tentando me esforçá o máximo pro siô pra podê…

– MAS VOCÊ É MESMO UMA ANTA!!!

E na linha aberta que tinha ficado ouviu Adão falando: “Anta”

– Ô caramba! Assim não tem tatu que aguente!

“Tatu!”

Puto da vida, desconectou da ligação – sendo essa a primeira experiência de simplesmente dar as costas a um problema, o que mais tarde resolveria chamar de “livre arbítrio” – e espinafrou o anjo estagiário por um tempo considerável, terminando sua preleção com um memorável pé-na-bunda. E isso fez o anjo cair, cair e cair…

Ao chegar tão lá embaixo quanto podia, lúcifer encontrou os filhos de Lilith (mas isso é outra estória). Como o filme dele já estava queimado mesmo, mas lá eles ainda não sabiam nada do que tinha rolado, veio então com um conversê de ter se rebelado e lutado com as hostes angelicais… O que mais tarde lhe renderia o simpático apelido de Príncipe das Mentiras.

Quanto ao “ornitorrinco”, esse já estava criado mesmo e deus deixou todo esse imbróglio de lado e resolveu voltar pro cochilo.

Meio dormitando, ainda um último pensamento passou pela sua divina cabeça: “Adão está precisando é de mulher…”

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PS: Esta brincadeira sobre “como surgiu o ornitorrinco” foi pensada a partir de um peixinho de aquário que morreu e sua sólida base científica está associada ao estado etílico dos usuais Copoanheiros de Plantão. Tentei encontrar um pouco do sarcasmo do Marco Aurélio (de sua época do antigo Jesus Me Chicoteia) – mas não acho que tenha conseguido. Particularmente me parece que esse deus aí de cima tá muito mais pro deus do Laerte, que para qualquer outro…

O cravo não brigou com a rosa

Recortei e colei lá do Boteco Escola – como sempre, muito antenado em questões ligadas à educação. Me fez lembrar uma “discussão” recente sobre Monteiro Lobato ( que está aqui)…

Mas vamos ao texto.

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo – o homem – e a rosa – a mulher – estimula a violência entre os casais. Na nova letra “o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada”.

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?

É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: “Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas”. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém (não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda) foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado. Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magoo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão – o popular pintor de rodapé ou leão de chácara de baile infantil – de deficiente vertical . O crioulo – vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) – só pode ser chamado de afrodescendente. O branquelo – o famoso branco azedo ou Omo total – é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia – aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno – é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo – outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão – é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais… Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar (…), cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a “melhor idade”.

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto

Luiz Antônio Simas
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
e professor de História do ensino médio

Nota: Esse texto foi publicado originalmente em 28/12/2010 no blog do autor – Histórias Brasileiras – mas foi deletado. Entretanto ainda pode ser encontrado no cache do Google…

No frigir dos ovos…

Pergunta:

Alguém sabe me explicar, num português claro e direto, sem figuras de linguagem, o que quer dizer a expressão “no frigir dos ovos”?

Resposta:

Quando comecei, pensava que escrever sobre comida seria sopa no mel, mamão com açúcar. Só que depois de um certo tempo dá crepe, você percebe que comeu gato por lebre e acaba ficando com uma batata quente nas mãos. Como rapadura é doce mas não é mole, nem sempre você tem idéias e pra descascar esse abacaxi só metendo a mão na massa.

E não adianta chorar as pitangas ou, simplesmente, mandar tudo às favas.

Já que é pelo estômago que se conquista o leitor, o negócio é ir comendo o mingau pelas beiradas, cozinhando em banho-maria, porque é de grão em grão que a galinha enche o papo. Contudo é preciso tomar cuidado para não azedar, passar do ponto, encher linguiça demais. Além disso, deve-se ter consciência de que é necessário comer o pão que o diabo amassou para vender o seu peixe. Afinal não se faz uma boa omelete sem antes quebrar os ovos.

Há quem pense que escrever é como tirar doce da boca de criança e vai com muita sede ao pote.

Mas como o apressado come cru, essa gente acaba falando muita abobrinha, são escritores de meia tigela, trocam alhos por bugalhos e confundem Carolina de Sá Leitão com caçarolinha de assar leitão.

Há também aqueles que são arroz de festa, com a faca e o queijo nas mãos, eles se perdem em devaneios (piram na batatinha, viajam na maionese… etc). Achando que beleza não põe mesa, pisam no tomate, enfiam o pé na jaca, e no fim quem paga o pato é o leitor que sai com cara de quem comeu e não gostou.

O importante é não cuspir no prato em que se come, pois quem lê não é tudo farinha do mesmo saco. Diversificar é a melhor receita para engrossar o caldo e oferecer um texto de se comer com os olhos, literalmente.

Por outro lado se você tiver os olhos maiores que a barriga o negócio desanda e vira um verdadeiro angu de caroço. Aí, não adianta chorar sobre o leite derramado porque ninguém vai colocar uma azeitona na sua empadinha, não. O pepino é só seu, e o máximo que você vai ganhar é uma banana, afinal pimenta nos olhos dos outros é refresco…

A carne é fraca, eu sei. Às vezes dá vontade de largar tudo e ir plantar batatas. Mas quem não arrisca não petisca, e depois quando se junta a fome com a vontade de comer as coisas mudam da água pro vinho.

Se embananar, de vez em quando, é normal, o importante é não desistir mesmo quando o caldo entornar. Puxe a brasa pra sua sardinha, que no frigir dos ovos a conversa chega na cozinha e fica de se comer rezando. Daí, com água na boca, é só saborear, porque o que não mata engorda..

Entendeu agora o que significa “no frigir dos ovos”?

Guaraci Neves