O terror pressuposto sempre aterroriza mais

Nelson Moraes

Me lembro de que, em O Exorcista, a cena que mais me assustava (de gelar o pelo da nuca) não envolvia necessariamente a menina possuída, vomitando, xingando ou levitando. Era um detalhe quase irrisório: no início do filme, saindo do metrô, o padre Karras passa por um mendigo sentado no chão, que lhe pede “Ei, padre, dá uma esmola prum ex-coroinha?” Karras o ignora e segue em frente. Muito adiante no filme o vemos já em altos colóquios com a garota possuída, e sempre tirando da manga uma explicação científica (psiquiatra que ele era) pra cada voz – com sotaque, ou masculina, ou idosa – que a menina fazia. De repente ela para, respira fundo e sussura calmamente: “Ei, padre, dá uma esmola prum ex-coroinha?” Karras empalidece, e a gente junto.

O Iluminado. Tudo ali aterroriza porque quase nada é mostrado. O enlouquecimento gradual de Jack Nicholson é que conota a emanação maléfica provinda de cada parede, de cada corredor, de cada quarto do hotel, mas ela nunca é explícita, nunca eclode em sua plenitude visual. São só insights, rápidas visões e, no mais, longas conversas – tediosas de tão triviais – com personagens que, vivos ou mortos, não se parecem nada com assombrações. Tudo oblíquo, e apavorante.

Poltergeist. Tem sangue, tem demônios, tem explosões, tem mortos-vivos, mas a cena que me fez pular da cadeira foi uma simples e rápida sequência, no começo. Pra insinuar a presença do sobrenatural na casa, a cena, sem nenhum corte, mostra mãe da família – JoBeth Williams – passando rapidamente por uma copa bem arrumada e indo à cozinha pegar um utensílio; no instante seguinte ela retorna e a copa não é a mesma: as cadeiras estão todas amontoadas sobre a mesa, cadeiras que precisamente um segundo antes não estavam ali. Terror puro.

Por isso a pandemia do coronavírus me soa tão estarrecedora. Não estamos testemunhando visualmente o impacto das mortes, face a face, como era de se esperar de uma peste: elas ocorrem no confinamento hospitalar ou residencial, e – por enquanto – com o distanciamento de um registro estatístico. Não testemunhamos, sobressaltados, manifestações purulentas em vítimas terminais que ainda por cima tossiriam sangue, como em um filme barato de horror. Não aparecem zumbis cambaleando como em The Walking Dead, não surgem os carroceiros catadores de cadáveres nas esquinas, tão corriqueiros em tempos de peste bubônica.

Não. Apenas as ruas vazias, os ambientes de trabalho em pesado silêncio, os supermercados fazendo eco, as praças entregues ao vento e a seus próprios monumentos, as perspectivas – pra quem trabalha, pra quem vive do que produz – mais apavorantes ainda. O pior de tudo que divisamos nessa distopia ao vivo, além da desertificação, são as consequências, que ainda não se manifestaram e já doem na alma, flagelam impiedosamente mesmo sem ter acontecido.

Evito o clichê de afirmar que dessa pandemia – a qual, torçamos, será breve – vamos sair outras pessoas. Mas talvez descubramos, com ela, que o terror arreganhado, sanguinolento e escatológico que já pulou tantas vezes aos nossos olhos na ficção não passava de um alívio, de um refresco, de um lenitivo pro que de mais aterrorizante pode existir: a diuturna ameaça do que jamais se permitirá ser vislumbrado.

Volta ao Mundo em 80 Horas – VII

VII – Até quando tudo dá certo, ainda dá errado. Ou não.

(Para os desavisados de plantão: esta é a continuação da narrativa de uma de minhas desventuras que comecei a contar no final de 2016 – putz, já se vão quase quatro anos! – e que até agora ainda não tinha concluído. Nada demais, apenas um pré-infarto pelo qual passei. Se quiserem saber como tudo isso começou ou rememorar o causo desde o princípio, desçam direto lá para o final deste texto e cliquem no link “Início da Saga”.)

Quinta-feira. Dia três. Noite. Cerca de 60 horas de internação, sendo espetado, desespetado, medido, apalpado, remediado e outros tantos quetais. Porém já estava muito bem descansado e – até que enfim! – munido de óculos e muitos livros os quais poderia ficar lendo até bem tarde da noite de quinta para sexta (lembrem-se que eu havia dado entrada na Santa Casa por volta de dez da manhã de terça-feira).

Já era de madrugada e distraído como estava acabei levando um susto dos infernos quando ouvi batidas na janela, ao lado da minha cama. Alguém estava lá fora, no estacionamento.

– Mas que catzo…

Abri a janela, com cautela e armado de um livro volumoso o suficiente para causar o estrago na testa do primeiro desavisado.

Era o Torquemada. E a Marcela. E a Joseane.

Como obviamente já não era mais horário de visitação e já cientes que dentro em breve eu teria alta eles foram lá para me tripudiar consolar e não me deixar sozinho, ao menos por alguns momentos durante aquela longa noite. Tudo bem que eles já tinham acabado de chegar do Armazém, nosso boteco’s-bar predileto próximo do trabalho, onde deviam ter passado as últimas horas por lá. E pelo estrago estado geral da galera, eu tive absoluta certeza de que não estavam tomando suco de laranja…

Conversamos um tanto, rimos outro tanto (“Porra, não trouxeram nada pra mim? Sacanagem, hein?”), levei uma comida de rabo por essa frase e quando por fim perceberam que aquela janela não era um balcão de bar – e, em especial, que não tinha nenhuma bebida por lá – antes que fossem descobertos pela altura das risadas, resolveram ir embora. Despedimo-nos e, confesso, independentemente do estado geral que fisicamente meu coração poderia estar, espiritualmente ele estava bem mais leve e quentinho. Como é bom ter amigos! Mesmo um sádico como o Torquemada…

Depois dessa resolvi simplesmente deitar e dormir enquanto ainda estava com aquela sensação gostosa de aconchego.

No dia seguinte acordei tarde pra caramba (umas seis e meia), pois pelo visto meu relógio biológico havia resolvido tirar férias. Como eu já sabia que o café da manhã ainda iria demorar um pouco resolvi tomar um outro bom banho – ao menos para lembrar que ainda existia água quente no mundo. Carregando aquela parafernália de soros e acessos e camisola aberta no rego, com um pouco de trabalho – e quase pranchando no chão por umas duas vezes – finalmente consegui terminar a ducha. Bem na hora, pois o café havia acabado de chegar.

Apesar de nos últimos anos ter ostentado uma vetusta barba na maior parte do tempo, naquela época eu preferia ficar bem escanhoado. Mas como é cheia e cresce rápido, ao final de uns dias sem ver um barbeador eu já estava parecendo um indigente. Paciência. Só faltava mais um dia, segundo o “protocolo”, e no sábado eu iria para casa.

Passei o dia meio que bestando, cochilando um tanto e lendo outro tanto e no finalzinho da tarde me veio a médica para a visita de praxe.

– Parabéns, o senhor já vai ter alta.

– Sei, sei. Amanhã, né?

– Não, hoje mesmo. Só falta meu colega assinar comigo e o senhor já pode ir embora. Tem quem venha lhe buscar?

– Mas, mas… E o tal do protocolo? De que eu teria que ficar sei lá quanto tempo em observação?

– Ah, isso é mais uma orientação do que uma regra. Como o senhor está reagindo muito bem não há necessidade de mantê-lo por aqui.

“Mais uma orientação do que uma regra”? Caray! Não pude deixar de me lembrar do filme Piratas do Caribe onde, de acordo com o momento e a conveniência, a “parola” poderia ser considerada uma regra ou não. Sexta-feira, final de expediente, após cravadas oitenta horas longe da sociedade e eu sem uma muda de roupa sequer para ir embora. Liguei para a Dona Patroa – coitada… – e, não demorou muito, ela chegou com o que eu precisava. Separei todo o resto para já levar para o carro enquanto aguardaríamos a segunda assinatura e – enfim! – a alta.

E aguardamos.

E aguardamos.

Aguardamos.

Aguardamos mais um pouco.

E nada.

E já estava ficando muito tarde e ela precisava voltar para dar conta das crianças em casa.

E lá foi ela e lá fiquei eu.

De novo.

E ASSIM QUE ELA SAIU ME TROUXERAM O TAL DO PAPEL DA ALTA!!!

Que estava desde não sei que horas parado na mesa de não sei quem para levar não sei onde e depois entregar para mim.

E já não adiantava mais ligar para ela, pois era tarde e devia estar a meio caminho de casa.

Paciência.

No dia seguinte, cedinho, combinaríamos de ela vir me buscar.

Mas é lógico que não foi isso que aconteceu.

(Início da Saga)                        (Continua…)

O Decamerão

Muito bem, meu povo, em época de “confinamento” (êêêê, vida de gado…) nada melhor que ampliar um pouco os horizontes, largar do celular, das redes sociais e da informação fácil e mastigada, de modo a nos aprofundarmos um pouco em cultura e retomar bons e velhos hábitos – e não conheço nenhum hábito mais antigo que “ler um livro” (tá certo que existem profissões mais antigas talvez até mesmo que a escrita, mas este aqui é um blog de família e vou deixar pra falar disso noutra hora).

Quem aí já ouviu falar do Decamerão (ou Decameron), de autoria de Giovanni Boccacio?

Pois é, eu mesmo li esse livro lá pro início da década de oitenta e meio que já havia esquecido dele.

Até agora.

E vocês vão entender o porquê da lembrança.

Esse livro foi escrito por volta de 1.350, já quando começava o declínio da Idade Média. Tem por pano de fundo o encontro de dez jovens – 3 homens e 7 mulheres – que se isolaram em uma casa de campo em Florença, Itália, fugindo da pandemia que dizimava impiedosamente o continente europeu naquela época: a Peste Negra.

São cerca de cem contos divididos em dez jornadas (daí o nome “Deca”) narrados por esses personagens. São estórias de amor que vão do erótico ao trágico, contos de sagacidade, piadas e lições de vida – que rendeu ao livro a alcunha de “A Comédia do Sexo”. O livro retrata bem o ambiente daquele período em que viviam (sendo que alguns estudiosos dizem que muitos dos contos são meras transcrições de outros que já existiam na tradição oral da época), pois enquanto a Peste arrasava com cerca de 1/3 da população da Europa, a população reagia de duas formas distintas: ou se entregavam à luxúria desenfreada – bebedeira e busca irrestrita do prazer – ou se recolhiam a fim de orar e se voltar para a vida espiritual, mística, contemplativa – sendo que uma boa parte oscilava entre esses dois extremos… O próprio Bocaccio, para escrever sua obra, também isolou-se em fuga das mazelas da doença enquanto o mundo desabava lá fora.

Muitas pessoas, desorientadas e aparvalhadas, vagavam pelos campos e se ajuntavam nas igrejas em busca de uma ajuda que não viria, pois encontravam-se diante da perspectiva de uma morte horrenda face a uma ineficácia da religião católica (então dominante) e de uma medicina quase ou totalmente inexistente.

Bocaccio criticou a sociedade da época através de um retrato irônico e detalhista num mundo repleto de interpretações diferenciadas para as mesmas situações, desafiando a Igreja e os costumes da época com um tom debochado ao tratar de assuntos como religiosidade e a vida em coletividade. Ou seja, ele se desprendeu da até então reinante moral medieval e abriu rumo a um realismo no qual o centro das estórias estava voltado à conduta das próprias pessoas – o que ultrapassou seus antecedentes em complexidade, qualidade e capacidade narrativa. Essa obra foi tão relevante que chegou a inspirar diversos autores que vieram posteriormente, dentre eles Shakespeare, Cervantes, Lutero e outros.

“Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores ou em razão de nossas iniquidades, a peste atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.

Os homens se evitavam […] parentes se distanciavam, irmão era esquecido por irmão, muitas vezes o marido pela mulher; ah, e o que é pior e difícil de acreditar, pais e mães houve que abandonaram os filhos à sua sorte, sem cuidar deles e visitá-los, como se fossem estranhos.” (BOCCACCIO. 1987, p. 35-36,38)

Entenderam agora?

O que estamos vivendo nos dias atuais reflete em parte algo que já aconteceu há mais de 700 anos!

É bem como aquela mais famosa frase da série Battlestar Galactica: “Tudo isso já aconteceu antes, e tudo vai acontecer novamente”.

Enfim, fica aí a dica do dia. E como se trata de uma obra que já está em domínio público, caso se interessem basta clicar neste link aqui para o download do livro em PDF.

Bem, por hoje acho que é só.

E lavem bem as mãos.

Sempre.