Casa arrumada

Casa arrumada é assim:  Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.

Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um  cenário de novela.

Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas…

Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida…

Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar.

Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.

Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo?

Tá na cara que é casa sem festa.

E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.

Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.

Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto…

Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.

A que está sempre pronta pros amigos, filhos… Netos, pros vizinhos…

E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca  ou namora a qualquer hora do dia.

Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Arrume a sua casa todos os dias…

Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela…

E reconhecer nela o seu lugar.

O Fim da Picada – A Saída

Com tudo combinado, depois de breves cochilos entremeados de curtos e estranhos sonhos, meu despertar foi assim:

Três da manhã, então. Acordo com o celular tocando e aquela tradicional sensação de quemcosô, oncotô, proncovô… Atendo. Ela chegou. “Vamos?” Checo todo o indispensável material necessário que arregimentei para uma viagem desse naipe, ou seja, a roupa do corpo. Celulares carregados (eu também gostaria de ter apenas um), carteira sem absolutamente um centavo sequer (lá deve ter um caixa rápido… TEM que ter!), tênis para andar nas desniveladas ruas de Paraty e – lógico – meu inseparável chapéu! Saio de casa e, ao passar pelo incrédulo olhar do porteiro (que deve ter pensado algo como “onde será que esse caboclo vai a essa hora, nesse frio e a pé?”), chego à rua e…

Cadê?

Olho para um lado, nada. Para outro, nada. “Vai ser a pior piada da face da Terra se isso tiver sido um trote… Pior ainda: e se tiver sido um sonho?” – pergunto eu aos meus estarrecidos botões… E o porteiro esticando o pescoço pela janelinha, tentando ver o que eu fazia…

Já começando a duvidar que realmente tinha recebido uma ligação comecei a andar rua abaixo quando vi um carro parado logo adiante, bem em frente ao condomínio do lado. Ok. Não foi um sonho. Ufa! ACE Ventura (que foi como batizei o carro naquele momento) havia chegado!

Enquanto isso, estando ela parada em frente do condomínio errado, outros despertares estavam em andamento:

Antes de começar a escrever minha parte dessa história, acho melhor contar um segredo meio esquisito. Não é nada grave mas, como se torna gritante durante algumas viagens, vale a explicação.

Dentro da minha cabeça moram duas vozes que raramente concordam uma com a outra e, nem sempre, comigo. Uma delas, a mais tranquila, tem todo o meu jeito. Ela pega leve a maior parte do tempo e é uma apaixonada nata. Gosto muito dessa voz, gosto da forma positiva que ela vê o mundo, dos detalhes que me conta e saca nas pessoas. É meio tonta, meio tagarela, meio confusa, mas é uma voz “do bem” e que convive bem com todo mundo. Quer dizer… Todo mundo, menos com a “do mal”.

A outra voz moradora da minha cabeça, foi apelidada de “do mal” por mim e pela “do bem”. A do mal é exigente, questionadora e racional aos extremos. Ela não dá mole nem pra do bem, nem pra mim, nem pra ninguém. Minha sorte é que ela não tem a menor paciência pra nós duas e acaba aparecendo pouco, graças a Deus. Quando aparece, deixa claro que despreza a do bem e que eu não me canso de decepcioná-la. Um dos únicos momentos que concordamos é viajando, é na estrada. A do bem ama cada téco de natureza desse planeta, cada olhar sobre qualquer universo, inclusive o universo de experiências e sentimentos que compõem cada pessoa. A do mal também, mas é muito mais prática, não curte perder tempo na vida. Ela sabe que viver tem prazo de validade e é assumidamente uma caçadora de prazeres, embora não seja facilmente conquistável. Pra variar, ela não vai muito com a cara dele, acha que nós dois temos defeitos meio parecidos e diz que o maior deles é não termos muitas qualidades. Basta eu lembrar que ele existe e ela surge do nada, de braços cruzados, dizendo que gosta mais dele escrevendo do que existindo. Desde sempre, sei que ela tenta me ensinar a viajar sozinha, me mostrar os encantos da liberdade absoluta, mas sem muito sucesso. Qualquer ser humano (tanto pra mim quanto pra do bem) é uma grande viagem. Algo que a do mal se recusa a entender, chama de prisão de luxo e me aponta um milhão de exemplos de humanos previsíveis e empatadores de emoções. Às vezes concordo um pouco, mas sei também que ela diz isso por egoísmo, por querer andar sozinha e assoprar os caminhos que deseja seguir, sem muita discussão. Ainda bem que quase sempre ela é voto vencido, já que qualquer estrada ou pessoa boa, ainda me divertem, ainda me causam bons arrebatamentos.

Naquele dia – assim que cheguei cantarolando com a do bem em Jacareí – tive a impressão de que a do mal só se ligou onde estávamos quando olhei pelo retrovisor, o vi ajeitar o chapéu e caminhar na direção do carro. Foi só eu olhar essa cena e lá veio ela aparecendo de sopetão…

– E aí? – Saiu das profundezas do meu cérebro, riscando seu salto alto dentro da minha testa e cruzando os braços ao lado da do bem.

– E aí o quê!? – Assustou-se a do bem.

– Isso lá é hora de você aparecer? – Perguntei eu, já com vontade de mandá-la dar uma volta pelo meu fígado.

– É sério que vocês duas vieram parar em Jacareí a essa hora? Posso saber porquê não pediram a minha opinião?

– Ahhh, não enche do mal! Hoje não. Tô precisando de folga. Inclusive de você.

– Não é uma viagem qualquer… É uma “viagem de uma hora pra outra”!

A do bem se sente acuada por ela, vive justificando tudo, mas nesse caso fazia sentido. Viagem-de-uma-hora-pra-outra é, entre nós três, uma frase mágica que quase transformamos em uma palavra só e nos desperta a união. Era ouvi-la e concordávamos, amávamos de paixão cada instante, indiscutivelmente, desde quando éramos crianças.

– Vocês armaram uma viagem-de-uma-hora-pra-outra sem me consultar!? Sério?

– Se tivéssemos “armado” não seria uma viagem-de-uma-hora-pra-outra, né do mal?

– E desde quando vocês precisam ser convidadas, para aparecerem?

– OK. Mas são três horas da manhã e você está parada com o carro numa rua de Jacareí. Você sabe me dizer exatamente o porquê?

– Ela sabe! Vamos pra Paraty. Conhecer a Flip! – Acho tão bonitinho quando a do bem tenta me proteger da do mal…

– Hahahahaha! E você acreditou nela, sua mega-tonta!?

– Anram.

– Tsc, tsc, tsc… Arrááá! Eu sabia! Olha o do chapéu vindo ali! Eu sabia! Ela nem gosta muito de ler!

– Não gosto mesmo! Gosto de escrever, não gosto de ler e todo mundo tá careca de saber. Qual a novidade?

– É verdade… Esqueci que agora você não mente mais…

– Con-ti-nu-andooo, dona do mal: vamos pra Paraty pegar essa estrada linda que te fez dormir por um bom tempo, vamos ver amigos e passear por aquela cidade que mais parece uma poesia de tão encantadora. Tô indo comer peixe no Dona Ondina e passar horas naquela varanda que deixa nós três de bom humor. De repente até compro e leio um livro! Quem sabe? Se a promessa for boa, mudo de opinião. Mas vou pra experimentar cachacinhas, sentir um pouco de sol, de sal e me permitir viver um pouco além do…

– Ok, concordo com tudo isso. Só não entendo porque o grandalhão do chapéu tem que ir junto.

– Ele é legal, do mal…

– Isso! Porque ele é legal. E porque adoro gente que diz sim para os caminhos inusitados dessa vida, ao invés de viajar na maionese discutindo certo, errado e adequado dentro da própria cabeça e sem sair do lugar. A do bem tem razão. Ele é legal e topou uma viagem-de-uma-hora-pra-outra. Até hoje, quantas pessoas nós conhecemos que aceitaram e curtiram isso numa boa? Hein? Hein?

– …

– …

– Ótimo. Que bom que nós três concordamos.

– OK… Você que sabe. Quero só ver aonde isso vai dar. Aceitar – do nada – um convite, é uma coisa. Querer viajar junto, de verdade, é outra.

– Quer saber? Menos, do mal. E olha aqui… Isso é pra vocês duas e é muito sério: se abrirem a boca pra dar um piu durante essa viagem, eu juro que…

– Oi.

– Oi…

Fomos interrompidas pela entrada dele no carro. Retribui o oi, dei-lhe um sorriso com suspiro aliviado e me dei conta de que – tanto a do bem quanto a do mal – estavam erradas. Ele era mais do que um cara legal e até que tem ido relativamente bem existindo. Sei também que viajar junto e fazer uma boa viagem é das coisas mais difíceis, mesmo sendo por um curto período ou trajeto. A do mal tinha suas razões pra questionar pra onde íamos e com quem, mas precisava compreender que quem se joga na estrada as três da manhã com uma mulher que está no volante conversando com duas vozes do além, é no mínimo alguém de coragem. E isso, nós três sempre admiramos.

Foi assim, entre sorrisos e logo depois de ligarmos o aquecedor do carro pra espantar o frio que nós quatro odiávamos, que as duas silenciaram e passaram a fazer o que mais gostam: olhar a paisagem, mesmo no escuro, e seguir em frente. Quietas… Quietas e atentas. E me deixaram conversar só com ele, pelo menos por um tempo…

(tanto quanto , essa história ainda continua…)

De perto ninguém é normal

Acho muito maluco pessoas que acham que são malucas. Aliás, mais maluco ainda é quando a maluquice está em achar que outros é que vão te achar maluco!

Maluco!

Aliás do aliás, ando meio que implicando com as palavras ultimamente e – vamos combinar? – “maluco” por si só já é uma palavra bem maluca, nénão?

Mas, enfim, maluquices à parte, volta e meia me pego querendo escrever sobre algo que com certeza já foi escrito antes. E, normalmente, bem melhor do que eu poderia tê-lo dito. Mas talvez o cúmulo do cúmulo seja quando eu acabo encontrando um texto meu mesmo acerca de algo que estou pensando em escrever e já está escrito – talvez até bem melhor do que eu faria hoje!

Ou não.

Enfim (eu já não disse isso?), esse texto é de uma época que eu ainda conseguia pegar boa parte de minhas convicções e juntá-las numa colcha de retalhos que servia muito bem para cobrir e agasalhar os problemas que de quando em quando a gente vive. Com o passar do tempo, o agregar de novas convicções e o abandonar de outras, não sei se essa colcha ainda cobre bem ou se de repente os pés ficam de fora…

Mas quem me conhece vai perceber o quão atual continua sendo tudo isso.

Esse texto foi publicado em setembro de 2005 sob o título “Aconselhamentos“:

É curioso como as coisas são cíclicas e o ser humano, cedo ou tarde, se vê participando de situações que lhe são familiares. E às vezes sequer concorremos para desencadear tais eventos!

Tem uma pessoa – que lentamente estou descobrindo ser uma amiga – que está passando por uma situação um tanto quanto difícil. Não, não vou dar detalhes do ocorrido, mas digamos apenas que tratam-se de problemas com o “coraçãozinho véio sem portêra”… E tive um longo papo com ela, de um modo que, creio eu, pude ajudar em algo. Não no sentido de descarregar um monte de conselhos ou de filosofias de vida, mas simplesmente de bater um papo. Ouvir um pouco, falar um pouco, fazer um eventual comentário.

E isso lhe fez bem.

E também ME fez bem.

Mais no sentido de saber que posso ajudar – com um simples papo – do que qualquer outra coisa. Não sou tão velho assim, mas compartilhar as experiências de vida que tenho sempre é um tanto quanto gratificante. Como diria o Dória, um amigo dos círculos genealógicos, “O diabo não é sábio porque é diabo. É sábio porque é velho.”

E isso é uma grande verdade.

E na maior parte das vezes sequer percebemos a experiência que temos! Explico. Eu, que muitas vezes me acho um pai relapso e distante, já ouvi: “Queria ser como você, um paizão.” Eu, que por diversas vezes acho que falto com o devido carinho para com a Dona Patroa, já ouvi: “Queria ter um relacionamento carinhoso como o seu.” Uma boa parte do tempo sou portador de um mau humor cavalar e já ouvi: “Queria ter essa sua disposição, esse seu bom humor.” Sou estressado por natureza e – pasmem – já ouvi: “Queria ser calmo e tranquilo como você.”

Será que sou eu o errado, ou o mundo não me enxerga como sou? Tenho certeza de que sou a mesma pessoa em todas as situações, seja em casa ou no trabalho. Tá bom, tá bom, exceto quando tenho que atender algum cliente que espera ver uma postura de advogado, quando então ostento uma profunda voz cavernosa, com dicção perfeita e postura de lorde inglês, atingindo o ápice de meu um metro e noventa…

Mas não é esse o caso. O caso é que tanto eu quanto os demais estão plenamente certos. Tudo é uma mera questão de ponto de vista. E assim o sendo podemos tranquilamente ter duas ou mais pessoas com exatamente a mesma atitude mas que SE enxergam de maneira diferente. Pontos de vista. E o bate papo, a troca de experiência, nada mais seria que mostrar um ao outro que os pontos de vista podem ser exatamente os mesmos, podem convergir – basta que se decida assim. Uma vez compreendendo pontos de vista distintos, conseguiríamos também trilhar caminhos distintos. E sem mudar em absolutamente nada o nosso jeito de ser.

Sei que parece um tanto quanto confuso, mas basicamente o assunto se resume naquele velho ditado: devemos aprender com os erros dos outros – até porque não teremos tempo de cometê-los todos! As opiniões de outras pessoas devem sempre ser aquilatadas com parcimônia, afinal de contas, oras, eles não viverão nossas próprias vidas!

Acho incrível a capacidade que as pessoas têm de decidir a vida de outrem. “Isso é o melhor para você”, ou “Não faça dessa maneira, senão vai se arrepender”. Oras, às favas com essas opiniões! Como dizia minha bisa, muito ajuda quem não atrapalha.

Heh… Na verdade acho que estou simplesmente assimilando outros pontos de vista também. Eu, que sempre estou na incansável busca de qualidade de vida, procurando ser um sujeito mais centrado, através da opinião de terceiros acabo descobrindo que JÁ sou assim. Pelo menos sob outros pontos de vista. Acho que falta somente convencer a mim mesmo…

Pois é, gente, a vida é dinâmica, não pára nunca, etc, etc, etc, e acho que temos que SEMPRE procurar melhorar. Pessoas vêm e vão, amizades aquecem e esfriam, paixões começam e acabam. Entretanto as decisões que tomamos são só nossas. NÓS MESMOS é que temos que resolver o que queremos para nossas vidas, traçar uma linha reta e seguir em frente, sem dó nem arrependimento. Ficar confabulando sobre passados possíveis só serve para nos levar a um passo mais próximo da loucura. Lembram-se do filme Efeito Borboleta?

Maníaco por gibis como sou, não poderia deixar de dar uma pitada da matéria aqui. Uma das coleções favoritas que tenho é a do Sandman, a qual retrata a existência dos Perpétuos, sete irmãos que não são deuses, nem mortais, mas aos quais todos se curvam. Sonho, Morte, Desejo, Delírio, Desespero, Destruição e Destino (ou, do original, Dream, Death, Desire, Delirium, Despair, Destruction e Destiny). Ainda falarei mais deles por aqui, mas por ora fiquemos com Destino.

É o mais velho dos irmãos, cego e acorrentado ao livro que contém tudo que já aconteceu e que ainda acontecerá. Caminha, até o fim dos tempos, em seus jardins, que são completamente tomados por labirintos.

E, diz a lenda, você pode passar toda uma existência andando pelos jardins de Destino, sempre com bifurcações e múltiplas opções de caminhos. Mas, se parar, e olhar para trás, verá que deixou atrás de si um único caminho trilhado. Assim é o destino. Hoje, quando olho pra trás, vejo que o caminho que trilhei tinha que ser esse mesmo, e sou sinceramente feliz por isso.

O difícil é conseguir atingir plenamente essa consciência…

PS: Talvez seja importante que saibam o final dessa história. Ela acabou por mirar o coração para um lado, disparou, casou e hoje tem uma filhinha claramente linda e tem vivido feliz para sempre desde então…