Sete Dicas de Quarentena

Ao chegar da rua (e me dê um bom motivo para ter saído, hein?):

1. lave bem as mãos (no mínimo vinte segundos, no máximo quarenta minutos);

2. deixe seu calçado do lado de fora (certifique-se que também esteja fora do alcance de seu cachorro);

3. ponha para lavar as roupas que estava usando (incineração também é uma boa opção);

4. tome um bom banho (no mínimo cinco minutos, no máximo uma hora e quarenta);

5. lave bem seus cabelos e barba, se tiver (não é necessário creolina – mas se resolver usar, evite fazer gargarejo);

6. ponha roupas limpas e confortáveis de ficar em casa (vale camiseta furada, bermuda esgarçada e chinelo havaiana – daquele branco e encardido por cima, tira que vive soltando e solado azul claro liso que nem um quiabo); e

7. FIQUE EM CASA.

O Mito da Produtividade

Clube de Autores

Estou no sexto dia de quarentena. Aqui da janela do meu apartamento já vi dois panelaços contra o presidente, uma salva de palmas para os profissionais da saúde, uma vizinha tomando sol de biquíni na sacada, pelo menos quatro pessoas carregando sacolas de mercado, um fusca azul e um passarinho em cima do fio de luz. Muitas aventuras, eu sei.

Durante esse período de confinamento, só sai de casa duas vezes: uma para ir ao mercado, outra para buscar um monitor no trabalho e deixar o home office mais confortável, mas confesso que ainda sento meio desajeitada no escritório improvisado que montei na sala.

Até agora, o maior contato que tive com outros seres humanos foi no elevador do prédio, quando desci para jogar o lixo fora. Meus maiores diálogos são com minhas plantas e minhas gatas. Elas não costumam responder, mas ontem a noite tive quase certeza que ouvi uma delas chamando meu nome. Sigo na dúvida se foi a espécie vegetal ou a animal.

Estou entediada. Mas não é falta do que fazer, pelo contrário.

Todos dias sou impactada por pelo menos dez conselhos motivacionais sobre como aproveitar a quarentena: levante, tome um banho, um café, separe um cantinho da casa para trabalhar, faça exercícios, leia 4 livros sobre epidemia, assista todos os filmes salvos na sua lista do Netflix, escreva sobre como está se sentindo, acenda um incenso, beba água, organize o guarda-roupa, aprenda uma receita nova… e por aí vai. Em resumo, preciso ser produtiva e tirar o melhor de cada segundo de confinamento.

Minha reação a esses conselhos é sempre a mesma. Toda vez que esbarro com esse tipo de conteúdo no Instagram, em uma newsletter ou no chat do trabalho, me sinto na obrigação de criar uma lista de coisas que preciso fazer para ser produtiva. Também lembro que só li 30 páginas de um livro até agora, assisti uns seis episódios de uma série que já conheço de cor e os armários da cozinha continuam bagunçados.

Culpa. Ansiedade. E de novo culpa.

Nessas horas a gente nota que “não escrevo porque não tenho tempo” e “não consigo terminar de ler o livro porque to cheia de coisas pra fazer” não passam de desculpas. Todo mundo que tá confinado tem tempo de sobra pra colocar a vida em dia. O problema é que a vida de verdade acontece lá fora, no mundo, entre reuniões, happy hours, caminhadas no parque, compras no shopping e café da tarde com os amigos. Aqui dentro é só um refúgio para escapar do mundo depois do trabalho ou no sábado de manhã, quando durmo até tarde.

E não me entenda mal, eu gosto de ficar em casa. Sou o tipo de pessoa que dispensa compromissos para passar a sexta a noite com vinho e chocolate no sofá da sala. Mas isso só funciona porque vivo cheia de coisas pra fazer e me permito aproveitar algumas horas de preguiça e mente vazia sem culpa, toda semana. E tá tudo bem, sabe?

Mas agora, com a agenda vazia, vinho no sofá virou rotina. Fugir das obrigações não tem mais graça. E, mesmo assim, ainda não defini o abdômen fazendo os exercícios que o app da academia liberou. Também sigo comendo arroz e feijão todos os dias. Ser produtivo o tempo todo é um saco e a pressão que os discursos motivacionais impõem na minha rotina estão me deixando louca – o que é bastante ruim, já que sempre tive a tendência a me cobrar demais.

Lá fora, a vida tá um caos e isso, por si só, deveria nos dar licença poética para enlouquecer um pouquinho e lidar, sem culpa, com isso da melhor forma que pudermos. Seja fazendo 50 abdominais ou sentando no chão com um café quentinho e o sol esquentando os pés.

Então vamos combinar aqui, só entre nós: da próxima vez que dermos de cara com uma publicação nos obrigando a levantar a bunda da cadeira e fazer algo útil, ficaremos sentados em protesto. Ok? E sem culpa. Chega. Mas se tiver vontade de limpar o banheiro, pode também.

Ninguém deveria nos fazer se sentir culpados sobre como aproveitamos nosso tempo em meio a uma pandemia. Mesmo que não seja intencional.

Tá liberado procrastinar, ficar de preguicinha, rodar as redes sociais 100 vezes e assistir BBB. Se é isso que te acalma, vai fundo. Depois do apocalipse teremos tempo de sobra pra colocar a vida em dia e poderemos voltar com as desculpas para furar o rolê e não lavar as cortinas. Mas, por enquanto, álcool gel na mão, retiro espiritual no sofá da sala e muita paciência para não pirar. Ou pra pirar mais ainda.

Sem culpa.

O terror pressuposto sempre aterroriza mais

Nelson Moraes

Me lembro de que, em O Exorcista, a cena que mais me assustava (de gelar o pelo da nuca) não envolvia necessariamente a menina possuída, vomitando, xingando ou levitando. Era um detalhe quase irrisório: no início do filme, saindo do metrô, o padre Karras passa por um mendigo sentado no chão, que lhe pede “Ei, padre, dá uma esmola prum ex-coroinha?” Karras o ignora e segue em frente. Muito adiante no filme o vemos já em altos colóquios com a garota possuída, e sempre tirando da manga uma explicação científica (psiquiatra que ele era) pra cada voz – com sotaque, ou masculina, ou idosa – que a menina fazia. De repente ela para, respira fundo e sussura calmamente: “Ei, padre, dá uma esmola prum ex-coroinha?” Karras empalidece, e a gente junto.

O Iluminado. Tudo ali aterroriza porque quase nada é mostrado. O enlouquecimento gradual de Jack Nicholson é que conota a emanação maléfica provinda de cada parede, de cada corredor, de cada quarto do hotel, mas ela nunca é explícita, nunca eclode em sua plenitude visual. São só insights, rápidas visões e, no mais, longas conversas – tediosas de tão triviais – com personagens que, vivos ou mortos, não se parecem nada com assombrações. Tudo oblíquo, e apavorante.

Poltergeist. Tem sangue, tem demônios, tem explosões, tem mortos-vivos, mas a cena que me fez pular da cadeira foi uma simples e rápida sequência, no começo. Pra insinuar a presença do sobrenatural na casa, a cena, sem nenhum corte, mostra mãe da família – JoBeth Williams – passando rapidamente por uma copa bem arrumada e indo à cozinha pegar um utensílio; no instante seguinte ela retorna e a copa não é a mesma: as cadeiras estão todas amontoadas sobre a mesa, cadeiras que precisamente um segundo antes não estavam ali. Terror puro.

Por isso a pandemia do coronavírus me soa tão estarrecedora. Não estamos testemunhando visualmente o impacto das mortes, face a face, como era de se esperar de uma peste: elas ocorrem no confinamento hospitalar ou residencial, e – por enquanto – com o distanciamento de um registro estatístico. Não testemunhamos, sobressaltados, manifestações purulentas em vítimas terminais que ainda por cima tossiriam sangue, como em um filme barato de horror. Não aparecem zumbis cambaleando como em The Walking Dead, não surgem os carroceiros catadores de cadáveres nas esquinas, tão corriqueiros em tempos de peste bubônica.

Não. Apenas as ruas vazias, os ambientes de trabalho em pesado silêncio, os supermercados fazendo eco, as praças entregues ao vento e a seus próprios monumentos, as perspectivas – pra quem trabalha, pra quem vive do que produz – mais apavorantes ainda. O pior de tudo que divisamos nessa distopia ao vivo, além da desertificação, são as consequências, que ainda não se manifestaram e já doem na alma, flagelam impiedosamente mesmo sem ter acontecido.

Evito o clichê de afirmar que dessa pandemia – a qual, torçamos, será breve – vamos sair outras pessoas. Mas talvez descubramos, com ela, que o terror arreganhado, sanguinolento e escatológico que já pulou tantas vezes aos nossos olhos na ficção não passava de um alívio, de um refresco, de um lenitivo pro que de mais aterrorizante pode existir: a diuturna ameaça do que jamais se permitirá ser vislumbrado.