Plena terça-feira. Feriado na cidade de Jacareí – aniversário de 355 anos. Fomos agraciados com um dia de descanso no meio da loucura burocrática que usualmente nos afoga.
Moro na cidade vizinha, onde o comércio funcionou normalmente e “aproveitei” (lema da Dona Patroa) para fazer inúmeras coisas. Desde providenciar algumas “cópias para avaliação perpétua” de alguns DVDs para um amigo, passando pela compra (e armazenamento – na pá!) de meio metro de areia, bem como levar o carro no mecânico, procurar e comprar algumas peças para restauração, levar os filhotes para escola (pelo menos um dia de folga também para a Dona Patroa), até outras compras e tarefas básicas – e eis que me deparei com as duas da tarde.
O mecânico pediu para que eu lhe ligasse lá pelas três, então teria uma hora para matar pela frente.
Com o calor que está fazendo (sei lá, uns 35 graus?) e já suando em bicas, decidi passar essa hora “proseando” com uma loura. Gelada. Estupidamente gelada.
Das diversas opções à minha frente, restaurantes, bares, happy-hours e outros, decidi por um resgate à simplicidade. Um mero boteco em pleno centro comercial de São José dos Campos, próximo do velho shopping e da antiga Câmara Municipal.
Boteco mesmo. Com ovos cozidos na estufa e garrafas empoeiradas de cachaça espalhadas por todas as paredes.
Aliás, essa é a melhor maneira de se tornar total e completamente invisível. Ninguém olha pros capiaus que estão num lugar como esse.
– Pode fumar aqui? – o atendente me olha com uma cara de incredulidade. Tolo que fui. É LÓGICO que pode.
Passei a hora seguinte sentado ao balcão exercendo a mais doce arte do ócio. Sem pensar no passado, presente ou futuro, simplesmente vendo o movimento de pessoas na calçada enquanto me refrescava com uma Brahma (royalties, please) ignorantemente gelada. Acendi um cigarro.
Após a primeira baforada, comecei a prestar mais atenção no desfile humano que passava a minha frente. Inúmeras moças, moçoilas e senhoras, todas com pressa e certeza de que têm que chegar logo a seu destino – seja ele qual for. Em comum entre elas somente o fato de que quase todas estão “na moda”, usando aquelas sandálias, chinelos e tamancos plataformas. Coisas gigantes. Ainda bem que não nasci mulher. Certamente eu cairia daquele troço no primeiro passo.
Passam dois ébrios, um mais encardido e encachaçado que o outro, com os tradicionais cachorros vira-latas os seguindo (alguém sabe explicar esse mistério?). Pelo menos nenhum deles veio me pedir um real para “ir” sabe lá Deus pra onde.
Um carro com um equipamento de som potentíssimo passa na rua, democratizando a todos que não querem ouvir uma música de qualidade muito abaixo do nível do discutível. Outra indagação de cunho universal se faz presente: por que desses caboclos que gastam milhares – sim, milhares – de reais para colocar um equipamento de som desses num carro, nenhum deles têm sequer um mínimo de bom gosto cultural? Não sou nenhum expert na área musical, mas conheço o suficiente para saber que “tô ficando atoladinha” não é nenhum clássico da MPB ou do rock progressivo mundial.
Dois policiais militares passam eu suas motos. Alguém se lembra de CHiPs? Pois é. Totalmente diferentes. Sob suas fardas e coletes à prova de balas (sinal dos tempos), devem estar derretendo com esse calor.
Encho meu copo e acendo outro cigarro.
Como já trabalhei nos mais diversos lugares e profissões, desde entregador de jornais, bicicleteiro, “fazedor” e “entregador” de salgados, passando por bancário, funcionário público, e até mesmo junto à redação de jornais locais e agências de publicidade, conheço MUITA gente. Mais do que sou capaz de lembrar. E dos inúmeros rostos que passam pela minha frente, muitos são de velhos conhecidos, que, em algum momento, pertenceram ao meu passado.
Dentre esses, vejo passar, todo apressado, um rapaz que foi meu funcionário. A última notícia que tive dele foi que assumiu a gerência de uma agência bancária. Está engravatado e com uma camisa de mangas compridas. “Quente”, penso eu. E velho. Marcas de constantes preocupações e estresse estão bem delineadas em sua face. Cabelo grisalho. Ar de cansado.
Mas, como disse, estou invisível e ele não me vê. Pergunto-me intimamente se também não estou tão velho e marcado como ele, apesar de meus parcos 38 anos.
Uma criança, com sua jovem mãe (quanto terá? apenas de uns 16 a 17 anos?) passa saboreando uma espiga de milho verde. Um negro, rastafari, camiseta estampada com uma foto do Bob Marley, passa com um estampado ar de dignidade. Alguns executivos se vangloriando do quão bons eles são, logo são seguidos por algumas prostitutas discutindo quem sairá na próxima etapa do Big Brother.
Um pequeno interlúdio para atender um amigo que me liga no celular, contando uma das inúmeras desventuras que sempre encontra no mister de sua profissão. Hilário. Inenarrável. Mas, ainda assim, hilário.
Mas o desfile continua e meu tempo vai chegando ao fim.
Acendo outro cigarro.
Crianças suando, dormindo no colo de suas mães. Portadores de deficiências (desculpem-me, não sei qual o “termo politicamente correto” em voga) passam lentamente. Quarentões, barrigudos, cobertos de correntes “de ouro”, com suas camisas abertas até o umbigo, mesclam-se com patricinhas e office-boys apressados. Um sujeito que parece saído de uma festa country – ostentando uma gigantesca fivela em seu cinto – pára, tira o chapéu, enxuga o suor da testa, enquanto aguarda alguns momentos para seu cavalo defecar bolotas em plena via pública.
Mesmo assim, o show de horrores e maravilhas continua incessantemente.
Mais rostos conhecidos desfilam à minha frente – alguns me fazem lembrar de nomes e lugares, outros não. Mas minha hora de ócio está praticamente no fim.
No decorrer dessa hora não me tornei mais sábio ou mais inteligente. Não desvendei os segredos do universo, nem tampouco me tornei um ser humano melhor.
Mas, no decorrer das duas cervejas que tomei, tive um momento de sobriedade na vida, constatando quão efêmera ela é.
Estamos aqui de passagem. Invisíveis, apenas observando ou correndo, efetivamente participando. Podemos assumir um papel ativo ou passivo no decorrer das coisas.
Particularmente, creio que o caminho do meio ainda é o melhor. Um pouco de cada. Acho que seria a melhor maneira de não desperdiçar nosso tempo.
E encerro meu relato sob a discussão acalorada de duas meninas que procuram decidir qual seria o melhor meio de retocar a tatuagem de uma delas, enquanto meu vizinho de balcão chuta o cesto de lixo em meus pés e corre para o banheiro (o qual, aliás, é como qualquer banheiro de qualquer boteco).
Minha última imagem?
A passagem de um saltitante pequerrucho, de uns dois anos, segurando a mão de sua mãe, divertindo-se a valer com sua bexiga, fazendo de conta que era um balão.
Esperança. Imaginação criativa. De fato, estas ainda são as melhores opções!