Histórias de uma Vida Passada

Descobri-me um contador de histórias.

Nem todas aconteceram comigo, nem todas ocorreram à minha época, nem sempre são do jeito que descrevo – algumas sequer existiram! Mas, uma vez contadas, todas são verdadeiras.

Ainda que com minha peculiar narrativa, do meu jeitão às vezes denso, às vezes bem humorado (mas sempre dramático), me é sempre agradável contar uma história – quer seja realmente uma história, uma estória, um causo, uma anedota, ou seja lá o que for: tudo se mistura, se funde e se transforma numa verdadeira história.

E dentre as histórias que merecem ser contadas, algumas dizem respeito às nossas vidas passadas – porque todos as temos (algumas além até mesmo desta nossa vida…), pois, ainda que não delimitadas, as lembranças da vida da infância são uma coisa, da adolescência, outra, assim como também o são as do início da vida adulta. Aquele trabalho, aquela viagem, aquela aventura, aquele relacionamento. Cada situação, curta ou não, pode ser encarada como uma das vidas que vivemos. Uma de nossas histórias.

E estas são algumas das histórias de uma de minhas vidas.

Conheci-a em 30 de agosto de 86, ficamos noivos em 8 de julho de 87 e nos casamos em 16 de janeiro de 88. Nesse meio tempo terminamos pra sempre nosso relacionamento por pelo menos umas três vezes…

Como nos conhecemos e como foi essa vida a dois, por si só já merece uma narrativa à parte! Então, por hoje, vamos focar nas histórias de sua difícil e encantadora personalidade…

Desde a mais tenra idade sempre teve a mesma carinha. Invariavelmente eu a matava de vergonha ao mostrar, todo orgulhoso, um par de fotos dela com cerca de apenas um aninho e com as roliças pernocas peculiares da idade. Era um orgulho esquisito, como se fosse um pai mostrando a foto de uma filha. Talvez tivesse sido meio que isso mesmo, apesar de eu ser apenas duas semanas mais velho que ela.

É que a relação que ela teve com o pai foi muito intensa. Comecemos com a seguinte situação nada hipotética: a mãe na cozinha, a filha de incompletos dois anos sentadinha à mesa e que, até então, jamais soltara uma única palavra sequer. Nadica de nada. A mãe absorta em seus afazeres, de repente ouve a filha dizer:

“Mamãe, o papai ainda vai demorar?”

“Não, filha, ele já deve estar chegando…”

A resposta foi automática, mas a compreensão lhe caiu como um raio! Como assim aquela criaturinha que nem “mamãe” falava de repente estava articulando frases completas? Que bruxaria era aquela? Ainda que recomposta do susto, enquanto seu marido não chegou manteve uma salutar distância da filha que continuou ali, brincando com suas coisas de criança…

Exatos três anos e dois dias depois de seu nascimento, veio seu irmão. E este sequer chegou a conhecer o pai, que faleceu apenas três meses depois.

Essa perda tão cedo, mas com memórias tão intensas do curto período que durou, foi um dos motivos que fez com que ela sempre tivesse uma empatia muito grande com minha mãe, que por sua vez sequer chegou a conhecer a própria mãe – minha avó materna – eis que esta faleceu quando ela tinha apenas dois anos. Mesmo após a separação durante algum tempo ela ainda manteve um contato muito próximo com minha família, em especial com minha mãe.

Mas o tempo passa e a vida continua. Tudo que tem um fim abre a oportunidade para um recomeço. Foi assim que, pouco mais de um ano após o falecimento do marido, sua mãe resolveu se casar novamente. E desse casamento teve outros três filhos: um menino, uma menina e outro menino. Tempos difíceis para ela, pois tinha antipatia por seu padrasto, o qual invariavelmente a provocava e ao seu pequenino irmão. E a relação com a própria mãe também não era fácil, criança cheia de vontades que era. O momento de almoçar costumava se estender por horas a fio, ela sem querer comer e a mãe, à frente, com o chinelo na mão… Ô geniozinho desde cedo difícil…

Para se ter ideia, numa outra passagem, ela brigou com a irmã. Fula da vida, pegou um martelo e pôs-se a destruir a cama dela. Não dela, da irmã. Tá, vocês entenderam. Passou uma tarde inteira na tarefa. O maior pedaço que restou não alcançava o tamanho de uma dessas réguas escolares!

Mas a maior prova de sua personalidade se deu quando seu padrasto, acometido de câncer, estava à beira da morte. Chamou-a em seu leito e pediu perdão por tudo aquilo que ele tinha feito ela e o irmão passarem durante todos aqueles anos. Ela não teve dúvidas:

“NÃO.”

E saiu do quarto.

Mas não se iludam por esse quadro de gênio forte. No fundo, no fundo, ela era um amor de pessoa, meiga e carinhosa. Eu tranquilamente casaria com ela. Bem, de fato, casei.

O que me faz lembrar que, ainda quando do início de nosso namoro, sua mãe veio ter uma “conversa séria” com a gente. Ela percebeu que aquilo não seria apenas um namorico passageiro e já resolveu colocar algumas “regras”.

“A questão é a seguinte: não me interessa se isso vai durar ou não. O que eu quero é que vocês tenham juízo. Mesmo se vocês vierem a se casar não me venham com essa história de ter filho logo, não, porque eu ainda sou muito nova para ser avó!”

Ah, sim: à época ela – a mãe – tinha apenas 36 anos…

Bem, por sorte ou por azar – ou seja lá o que for – cumprimos essa determinação à risca: nos praticamente dez anos que estivemos juntos não tivemos nenhum filho. Nada. Nem ameaça. E posso tranquilamente dizer que, nesse mesmo período, minha relação com minha sogra foi sempre ótima! Como ela não fazia questão nenhuma de ter proximidade com a mãe, de minha parte eu ficava quietinho no meu canto. Ou seja, ficamos todo esse tempo praticamente sem nenhum contato com ela!

Já no final de nosso relacionamento ficamos sabendo que sua mãe estava meio que de namorico com um sujeito e acabou engravidando! Teve uma filha, que não vim a conhecer. Só sei que, com o histórico anterior de casamentos da mãe dela, o sujeito, que não era besta, tratou de não querer nenhuma amarração! Vai que…

Dessa minha Vida Passada, entre períodos de harmonia, de monotonia e de conturbação, até que tivemos uma boa vida. Passamos por três casas diferentes e tínhamos lá nossas coisinhas. Eram tempos difíceis – época de hiperinflação – mas nunca deixamos de ter algum trabalho ou algum veículo na garagem. Tínhamos bons amigos, saíamos sempre – às vezes com eles, às vezes somente nós, e mesmo assim, após anos juntos, ainda tínhamos fôlego o suficiente para proseios até altas horas nos botecos da vida. Sempre politizados (ela mais que eu), invariavelmente estávamos resolvendo os problemas do mundo entre um copo e outro…

Aliás, lembro-me bem do final do ano de 89, quando recebemos a notícia da queda do muro de Berlim – que também significava o começo da queda do Comunismo e o fim da União Soviética. Ideais em que ela piamente acreditava. Ela passou praticamente a noite inteira aos prantos enquanto eu a consolava.

Enfim, estas são apenas algumas facetas dessa história. E tudo que tem um começo, um dia acaba. Às vezes antes mesmo do fim de nossas vidas. E acabou. Eu e meu fabuloso toque de Midas às avessas para relacionamentos, já ali me fazia presente. No começo do fim ela não queria terminar, mas eu não cedi. Até mesmo nos últimos momentos, em fins de 96, na sala de audiências, ela se manteve firme. Mas, ato consumado, já do lado de fora, recebi seu último olhar. Gelado. E ali ficou claro, acima de qualquer suspeita, que ela jamais voltaria a me dirigir a palavra.

E cada um de nós partiu para suas novas vidas, suas novas etapas, seus novos recomeços. Meu primeiro filhote nasceu em 99. Fiquei sabendo que o dela, no ano seguinte. De fato, quis o Destino, sabiamente, que não tivéssemos filhos…

Muita gente já me ouviu contar muito do que está aqui por mais de uma vez. Outro tanto, nem tanto. E ainda existem muitas outras histórias desses dez anos em que estivemos juntos…

Aliás, não se iludam! Relembrar esses momentos não tem nada a ver com minha atual relação com a Dona Patroa – que vai muito bem, obrigado. Mas tudo isso que aconteceu, por todo esse tempo que durou, também faz parte de mim, também ajudou a me tornar quem hoje eu sou. Apesar de nossa memória usualmente possuir tanto a lembrança do que foi bom quanto a marca do que não, é curioso como o filtro “tempo” trabalha de maneira eficaz para reter as impurezas, deixando passar em sua maioria apenas as boas histórias. E, afinal, são histórias que não podem se perder.

Porque toda história merece ser contada.

Simples assim.

Fusca azul! Pow! Soc! Plaft!

Nem todos conhecem a Brincadeira do Fusca Azul, tradição ancestral que consiste em socar vigorosamente o próximo ao avistar um automóvel da cor e marca supracitados.

Também chamada de “Punch Buggy” e “Beetle Bug”, a galhofa teve origem nos anos 60 como um inocente passatempo de estrada, e foi posteriormente capitalizada pela marca Volkswagen em comerciais de tevê. No livro The Official Rules of Punch-Buggy, Ian Finlayson e Michael Lockhart cogitam que a brincadeira tem raízes no Egito antigo, o que obviamente se trata de uma graçola.

A prática é regida por um único mandamento: “O primeiro a vislumbrar um Fusca azul no caminho tem o direito de aplicar um soco no ombro de quem estiver nas redondezas, gritando com fervor: FUSCA AZUL!”. Ao perdedor é vedado retribuir o golpe, a menos que aviste outro VW de tom cerúleo.

Quanto à força utilizada, devem-se observar os preceitos de proporcionalidade, sendo, portanto, pouco recomendável nocautear uma velhinha frágil que atravessava a rua quando, no horizonte, surgiu um garboso “besouro” azul. Inimigos de longa data devem aceitar a brutalidade da pancada como uma dessas coisas da vida que não se pode contestar, como as saladas com rúcula e o time da Portuguesa.

É válido golpear desconhecidos e desafetos sob tal justificativa, embora não conste (ainda) uma cláusula no Código Penal que conceda ao avistamento de um Fusca a condição de atenuante em casos de lesão dolosa, sobretudo na região escapular. Alguns juízes, porém, já legislaram a respeito, como no caso “Meirelles vs. Coutinho”, em que este foi acusado de agressão ao colega, mas uma testemunha corroborou o avistamento do fusquinha.

“Mas o senhor réu chegou a gritar: ‘Fusca Azul’?”

“Sim, meritíssimo.”

“Então o declaro inocente. Estão dispensados.”

Outras normas da modalidade dispõem sobre falsos avistamentos; nesse caso, há duas saídas: a vítima pode imediatamente conferir um soco duplo em seu carrasco ou contabilizar o dano sofrido como bônus para o próximo Fusca que lhe escapar da vista.

Nas regiões mais abastadas de São Paulo, tem sido cada vez mais difícil vislumbrá-los, mas os Fuscas azuis ainda abundam nos rincões da zona norte. (Outro dia vi um Fusca azul ao lado de uma Kombi verde, e pensei que teria razão em dar uma voadora em alguém, coisa que só não fiz por falta de normatização a respeito.)

A verdade é que não há tristeza maior do que ver um Fusca azul e não ter ninguém por perto a quem comunicar tal alegria. Ainda assim, sempre existe a opção de comprar um e passar bem devagar em frente a uma escola, só para ver a magia acontecer.

( Roubartilhei daqui… )

Maternidade é um fato

E então lá estava ela…

Guerreira, aguerrida, vivida, sem jamais entregar os pontos, sempre à procura daquele amor ideal que lhe preenchesse o coração mais que a dança que tanto amava, velando por seu filhote que ardia em febre.

Já não era o primeiro dia – ou melhor, a primeira noite – que mal dormia enquanto o monitorava. O dia seria longo. Como foi o anterior. Ainda mais com o chefe carrasco e exigente que tinha! Ainda bem que os demais colegas – ou melhor, amigos – eram tão mais parceiros e compreensivos!

Ouviu o petiz resmungar enquanto esperava o termômetro cumprir sua função. Com a mão espalmada em sua testa viu que a febre, teimosa, teimava em não ceder. Não precisava de nenhum instrumento para medir o que seu sempre fiel instinto materno já sabia. Por que mesmo ela ainda não havia comprado um termômetro digital? Muito mais rápido e eficaz! Mas ela mesma sabia o quanto gostava de ser feliz longe das modernices que todo mundo entendia ser indispensável…

Enquanto contava as gotas do remédio – que, como sempre, sob protestos iria empurrar goela abaixo de seu anjinho que continuava dormindo – pensava em todas as vezes anteriores que já havia passado por aquela situação… Mas, ela bem o sabia, fazia parte! Ser mãe é assim mesmo. Sua própria mãe jamais permitiu que ela aprendesse o que era esmorecer, o que era desistir, e não seria aquela simples febre que iria lhe abater o ânimo! Fechou os olhos, inspirou fundo e sentiu bons fluidos fluírem por seu corpo e por sua alma. Parou por um momento. Também já havia passado por aquela situação… Em seu íntimo fez uma oração e agradeceu a quem tinha que agradecer… Suas forças se renovaram. Já passava das quatro da manhã e ela, resoluta, dirigiu-se ao quarto do garoto para ministrar-lhe a dosagem certa do remédio certo. Sob protestos, como sempre.

Pouquíssimo tempo depois, um sorriso fugidio começou a despontar e iluminar sua face enquanto fazia um terno cafuné na cabeça de sua criança, em seu colo: a febre já estava começando a ceder… Foi quando, sem aviso, ouviu um terrível barulho! Seu coração, num solavanco, quase parou! Sentiu o sangue esvair de sua face e de seu próprio coração de mãe. Congelada, perplexa, sem que pudesse fazer absolutamente nada, apenas assistiu seu filho levantar-se e, trôpego, dirigir-se ao banheiro enquanto ao fundo o despertador ainda tocava.

Quatro e meia da manhã.

Hora de ele ir para o quartel…

Tesourada

E só porque eu disse que meus filhotes, hoje adolescentes (mas eternamente minhas crianças), já não dão tanto trabalho assim, ainda hoje pela manhã o filhote do meio, inquiridor nato de inutilidades metafísicas, me veio com essa:

– Paiê! Sabe aquele cara daquele filme de terror que tem, assim, umas lâminas, umas tesouras, na mão?

– Qual? Tem um que é do Freddy Krueger que ele usa uma espécie de luvas com lâminas…

– Não. Tesouras mesmo.

– Então somente pode ser o Edward Mãos-de-Tesoura!

– Isso. Acho que é isso mesmo.

– Putz! Sabia que esse foi um dos primeiros filmes que o Johnny Depp fez? Aquele ator que faz o Capitão Jack Sparrow, do Piratas do Caribe… Nesse filme ele é uma espécie de criatura feita em laboratório, bem no estilo Frankenstein, mas o criador morre antes de terminá-lo: ficam faltando suas mãos. É por isso que ele tem aquelas tesouras no lugar das mãos…

Podia ter parado aí. Bastava eu sair da sala, achando que ele gostaria de assistir esse filme ou algo assim. Mas, não. Não eu. Eu TINHA que perguntar.

– Por que, filho? Você tá curioso sobre esse filme?

– Não. É que eu estava aqui, pensando. Se o Edward Mãos-de-Tesoura for jogar pedra-papel-tesoura com o Coisa ele sempre vai perder, né?

Tu-dum, tsssss….

Heróis da resistência

Já que os filhotes estão crescendo, então o jeito é importar causos de quem sabe que Criança dá Trabalho. Essa é uma adaptação do que aconteceu com o amigo virtual João David…

– Pai, o Henrique é tão resistível…

– Não, filho. Já que você acha seu irmão tão bonitinho, então o certo é falar “irresistível”.

– Não, pai. É resistível, mesmo!

– Por que, filho?

– É que ele bateu a cabeça no sofá e resistiu! Ele é muito resistível!!!