E esse alemão me deixa louco…

… ou não.

Mas vamos lá.

Meus pais já estão bem velhinhos.

Isso é fato.

Meu pai, com seus 86 anos completos, até que ainda está razoavelmente lúcido, apesar de o raciocínio estar beeeeeem devagarzinho; porém, fisicamente, está muito debilitado. Não que as condições gerais do organismo não estejam boas, tais como coração, pulmão, circulação, etc. Mas é que nos últimos anos ele simplesmente “desistiu”. Não quis mais saber de executar as pequenas tarefas de casa, de sair, de andar, de tomar sol, de ver gente, de nada. Atualmente só fica deitado. O dia inteiro. E, é lógico, o corpo atrofia, né?

Já minha mãe, com quase 80, fisicamente até que está bem, apesar da batelada de remédios que tem que tomar diariamente. Mas há aproximadamente um mês a cabecinha desarranjou. Teima que “aquele homem” deitado na cama não é o marido dela, que o “verdadeiro” marido saiu e vai voltar a qualquer momento, às vezes não lembra que tem netos, não lembra que tem noras (nesse caso não sei se seria de propósito…), e de quando em quando ainda teima que quer ir embora, pois não reconhece a casa onde ela viveu praticamente desde que casou.

Aparentemente é “esse tal de Alzheimer”

Mas vamos tentar entender melhor essa bagaça. Na prática, “demência” é um termo geral que engloba várias doenças que se manifestam com declínio na memória ou de outras habilidades de pensamento suficientemente severas para reduzir a capacidade de uma pessoa de realizar as atividades diárias, sendo que a Doença de Alzheimer é responsável por aproximadamente uns 70% dos casos de demência. Antigamente a demência era incorretamente referida como “senilidade” ou “demência senil”, o que refletia a crença generalizada, porém incorreta, de que um declínio mental grave seria uma parte normal do envelhecimento.

O nome oficial dessa doença se deve ao médico alemão Alois Alzheimer, o primeiro a descrever a doença, ainda em 1906. Ele estudou e publicou o caso de uma paciente, uma mulher saudável que, aos 51 anos, desenvolveu um quadro de perda progressiva de memória, desorientação, distúrbio de linguagem, dificuldade para compreender e se expressar, tornando-se incapaz até mesma de cuidar de si própria.

E, ao que parece, é “esse tal de alemão” que anda atormentando minha mãe…

Dia desses, por exemplo, ela me ligou e não dizia coisa com coisa, que queria ir embora daquela casa e coisa e tal. Pacientemente falei com ela e acabei desligando. Segundos depois ela ligou novamente com a mesma ladainha. Ainda com paciência, conversamos. E em seguida novamente. A mesma coisa. E depois de novo. E de novo. E mais uma vez. E novamente, de novo, outra vez. Na décima quinta vez (e não, não estou exagerando), simplesmente parei de atender os telefonemas.

Toda essa história foi somente para situar.

Hoje estou aqui na casa de meus pais, dando-lhes suporte para passar este final de semana, no que revezo com meus irmãos nos demais finais de semana. Muito bem. Conectei meu notebook na tomada do telefone e, estando eu na lida com meus processos, vejo minha mãe indo e vindo, passando de um lado para outro, resmungando em voz baixa. É que ela queria ligar para uma de minhas tias para apresentar a ladainha de reclamações de praxe. Tentou o celular (sem bateria), tentou o fixo (desconectado) e já tem coisa de mais de uma hora que ela está com o controle da televisão tentando fazer uma ligação…

E eu aqui, quieto.

Tudo bem, me julguem.

Já sei mesmo que, por essas e outras, devo ir para o inferno.

Mas pelo menos, por hoje, estou conseguindo trabalhar…

Esse povo do Zap ainda me mata…

Gente, vocês têm que prestar mais atenção.

Tubo bem que hoje é Dia das Mães e tudo o mais, mas tem coisa que não se faz.

Olha só, eu participo de um grupo do WhatsApp criado recentemente visando marcar uma festa par reunir todo um povo que trabalhou junto trinta anos atrás! Por mais aguerridos que todos sejam, principalmente no que diz respeito à política, desde o começo já ficou combinado que esse grupo seria bem específico, para matar as saudades, descobrir por onde andam estas ou aquelas pessoas e combinar o dia do evento. E só.

E, ressalvadas raras exceções, o povo até que vem se comportando bem, vá lá. Às vezes um aniversariante daqui, uma dica dali, uma lembrança acolá, e assim vai. Pessoal ajuizado, da velha guarda e na época em que trabalhamos juntos eu mal tinha trinta anos de idade.

Mas gente, mesmo sendo um dos “caçulas” do grupo, eu já passei do meio século de vida!

Já faço parte da turma que é mais convidado para funerais do que para casamentos, meus grupos de amigos tendem mais a diminuir do que aumentar, tenho reservado no guarda-roupa uns conjuntos de “pretinhos básicos” conforme seja a pompa e circunstância da ocasião, até mesmo meu celular já conecta automaticamente na rede wi-fi do crematório local!

Ou seja, fora dos dias e horários comerciais, muito pela manhã ou já à noite, quando toca o alerta do meu celular avisando que chegou mensagem, caramba, isso me gela a alma! NINGUÉM vai te escrever de madrugada dizendo que está com saudades, ou tarde da noite para te convidar para uma festa, ou, ainda, no meio de um domingo modorrento para tratar de algum trabalho pendente. Quando isso acontece, invariavelmente é desgraça ou desgraça. A gente já corre para o telefone pensando em quem morreu, quem foi preso, qual foi o acidente com o carro de quem, se alguém se machucou e assim por diante.

O chegar da idade pode ser, sim, terrível, mas ainda é melhor que a alternativa.

Então, com todo respeito aos mais bem intencionados integrantes desse grupo do qual faço parte, por caríssima e extremíssima gentileza, tenham em mente que SEIS HORAS DA MANHÃ DE DOMINGO NÃO É HORÁRIO PARA COMEÇAR A ENVIAR MENSAGEM DE FELIZ DIA DAS MÃES !!!

E tenho dito.

Pela atenção, esta companhia agradece.

E Rita Lee arrombou a festa!

Em 08/05/23 morreu a Rainha do Rock, o que fiquei sabendo sabendo somente no dia seguinte pela amicíssima Nydia, num grupo de Zap-Zap do qual participamos. Eu sabia que ela andava bem ruinzinha (prestenção: a Rita, não a Nydia), mas não tanto assim. E daí para descobrir que ela já tinha 75 anos! Acho que talvez essa tenha sido a surpresa maior…

Num primeiro momento pensei em dar uma compilada na biografia dela e compartilhar aqui com vocês. Doce ilusão. Muita gente já escreveu sobre isso – inclusive ela própria – e, compilado ou não, bem melhor do que eu teria capacidade. Mas, ainda assim, ficou uma pulguinha atrás da orelha, uma vontade de não deixar essa passagem passar em branco.

Isso porque comecei a curtir as músicas dela lá no finalzinho da década de setenta, quando lançou as maravilhosas músicas Doce Vampiro e, sobretudo, Mania de Você. E cá entre nós, no caso desta, nunca consegui encontrar nenhuma outra cuja letra ou música conseguisse esbanjar tanto tesão e sensualidade de uma só vez.

Então fui dar uma conferida nas catacumbas de meu computador e constatei que só tinha alguns dos álbuns mais famosos dela e daí, bicho fuçador que sou, fui dar um jeito de procurar nos cantões da Internet para baixar a discografia completa. Fuça daqui, fuça dali, finalmente encontrei uma alma abençoada que disponibilizou isso na rede.

Antes de chegar onde quero chegar, vamos abrir um parênteses neste nosso causo. No mesmo disco dessas duas músicas que citei, tinha também, lá no final, a música Arrombou a Festa número 2. Pois sejam benevolentes consigo mesmos, deem um “play” aí embaixo e acompanhem a letra logo a seguir. Já, já eu volto.

Ai, ai, meu Deus
O que foi que aconteceu
Com a música popular brasileira?
Quando a gente fala mal
A turma toda cai de pau
Dizendo que esse papo é besteira

Na onda discothéque da América do Sul
Lenilda é miss Lene, Zuleide é Lady Zu
Pra defender o samba contrataram Alcione
É boa de pistom mas bota a boca no trombone

No meio disso tudo a Fafá vem dar um jeito
Além de muita voz, ela também tem muito peito
E a música parece brincadeira de garoto
Pois quando ligo o rádio ouço até Cauby Peixoto
Cantando: “Conceição…”

Ai, ai, meu Deus
O que foi que aconteceu
Com a música popular brasileira?
Quando a gente fala mal
A turma toda cai de pau
Dizendo que esse papo é besteira

O Sidney Magal rebola mais que o Matogrosso
Cigano de araque, fabricado até o pescoço
E o Chico na piscina grita logo pro garçom:
“Afasta esse cálice e me traz Moet Chandon”

Com tanto brasileiro por aí metido a bamba
Sucesso no estrangeiro ainda é Carmem Miranda
E a Rita Lee parece que não vai sair mais dessa
Pois pra fazer sucesso arrombou de novo a festa!

Ziri, ziriguidum
Skindô, skindô, lelê
Sai da frente que eu quero é comer

A música popular brasileira
Lady Laura
A música popular
Parabéns a você
Parabéns para a música popular

Música popular
Oh, eu te amo
Ah, eu te amo, meu amor
Ai, Sandra Rosa Madalena
Ah, ah, ah, ah
O meu sangue ferve pela
Música popular

Oh, fricote, eu fiz xixi
Fricote, eu fiz xixi
Na música popular
brasileira

Corre que lá vem os “homi”!

Muito bom, né?

O que me encantou nessa música foi o fato de ela brincar com outros artistas, outras músicas e até mesmo outros ritmos, misturando e fervendo tudo num bem humorado caldeirão – e ainda assim sem deixar de ser crítica!

Aliás, uma das curiosidades dessa música é que ela teve como coautor um tal de Paulo Coelho, antes mesmo de se meter a escrever livros. Mas, para mim, o que me incomodava de verdade era o tal do “número dois” do título da música. CUMASSIM??? E o que seria então a “número um”? Até na própria letra ela deixa isso bem claro: “E a Rita Lee parece que não vai sair mais dessa / Pois pra fazer sucesso arrombou de novo a festa!”.

Olha que eu fucei. Durante um bom tempo fucei e escarafunchei pra tudo quanto é canto, mas foi como procurar uma palha num agulheiro. Neca de pitibiriba. Chegou um ponto em que desisti e deixei arquivado na minha mente na pastinha assuntos a resolver que nunca vou dar um jeito.

Até hoje.

Acontece que aquela alma abençoada que citei antes, dentre todos os discos da Rita Lee também disponibilizou algumas “Pérolas” raras, e uma delas foi justamente a música Arrombou a Festa, originariamente cantada ao vivo no álbum Refestança, em parceria com o Gilberto Gil, lá nos idos de 1977 e, do mesmo jeitão que sua sucessora, essa música brinca com os sucessos da época. Então ponham novamente os fones de ouvido (ou não) e brindem-se com essa raridade!

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu
Com a música popular brasileira?
Todos falam sério, todos eles levam a sério
Mas esse sério me parece brincadeira

Benito lá de Paula com o amigo Charlie Brown
Revive em nossos tempos o velho e chato Simonal
Martinho vem da Vila lá do fundo do quintal
Tornando diferente aquela coisa sempre igual

Um tal de Raul Seixas vem de disco voador
E Gil vai refazendo seu xodó com muito amor
Dez anos e Roberto não mudou de profissão
Na festa de arromba ainda está com seu carrão
“Parei pra pesquisar…”

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu
Com a música popular brasileira?
Todos falam sério, todos eles levam a sério
Mas esse sério me parece brincadeira

O Odair José é o terror das empregadas
Distribuindo beijos, arranjando namoradas
Até o Chico Anísio já bateu pra tu batê
Pois faturar em música é mais fácil que em tevê

Celly Campello quase foi parar na rua
Pois esperavam dela mais que um banho de lua
E o mano Caetano tá pra lá do Teerã
De olho no sucesso da boutique da irmã

Bilú, bilú fafá, faró, faró tetéia
Severina e o filho da véia
A música popular brasileira

A música popular
Sou a garota papo firme que o Roberto falou
Da música popular
O tico-tico nu, o tico-tico cu, o tico-tico pá rá rá rá
Música popular
Olha que coisa mais linda, mais cheia de…
Música popular
Mamãe eu quero, mamãe eu quero
Mamãe eu quero a música popular brasileira

Pega, mata e come!

Enfim, pode ser que esta não seja a “revelação do ano” para vocês, pode ser até que nem se interessem por este post depois de tanto tempo sem postar, pode ser o que for que seja, mas o que não pode ser é deixar passar essa data em branco.

E não passou.

E que sua música crítica e sincera continue arrombando os arrombados de sempre!

VALEU, RITA LEE !!!

Bodas de Opala

Bem, mais uma vez vou esclarecer: o termo “bodas” vem do latim. Significa promessa – no caso, os votos matrimoniais, feitos no dia do casamento. Assim, a cada ano que passa, comemoramos o aniversário de bodas, o aniversário daquela promessa feita um para o outro. Em sua origem comemorava-se apenas a de Prata (25 anos) e a de Ouro (50 anos), mas com o tempo foram surgindo outras simbologias para os demais anos.

E cá chegamos nós aos 24 anos de casado – e sem gracinhas, aí no fundo, que eu tô ouvindo… O vigésimo quarto ano de casado é simbolizado pela pedra preciosa Opala. Não há uma cor definida para essas bodas, pois essa pedra possui uma grande variação de cores, parecendo um verdadeiro arco-íris. Ela é constituída de um material muito resistente, que para chegar até essa condição passa por diversas fases, da mesma forma que acontece em um casamento que dura tantos anos. Afinal, não é nada fácil permanecer por mais de duas décadas com alguém do seu lado, mantendo o sentimento forte o bastante para continuarem na caminhada juntos!

Mas, particularmente, ainda prefiro a definição de Ailin Aleixo, na orelha do livro Balde de Gelo, de Daniela Macedo & Marco Aurélio: “A vida a dois não é complicada. Complicado é sambar em descida. A vida a dois é um milagre, isso sim. Só vivendo pra entender o que é aguentar maus humores, parentes, cachorro pentelho, ciúmes, amigos intrometidos. Mas também é só vivendo que se compreende a delícia de chegar em casa depois de um dia corno e encontrar quem se ama, receber cafuné assistindo filme, soltar pum sem precisar pedir desculpa. E (…) todos esses ingredientes misturados com graça, leveza e humor – atributos indispensáveis para a sobrevivência de qualquer relação. E de qualquer um.”

Já contei a minha história com a nossa querida, amada, idolatrada, salve, salve Dona Patroa (com direito a muitas fotos) por mais de uma vez aqui neste nosso cantinho virtual, em especial nos textos “Bodas de Marfim”, “Bodas de Louça” e “Bodas de Palha” – é só dar uma fuçada básica no blog e pronto!

Mas sempre me divirto ao recordar da seguinte passagem, lá dos idos do dia 12/12/1998, nas dependências do restaurante rural Coelho e Cabrito, quando formalizamos nossa união perante os homens e perante Deus. Aliás, logo após a cerimônia civil e sem que tivesse chegado o pastor que faria um culto ecumênico (pois ele se perdeu no caminho lá no meidumatu…), chamamos todos os convidados para que se sentassem e começassem a se servir. Então, quando todos já estavam acomodados, eis que o pastor chegou. Pediu desculpas aos presentes e falou suas palavras. O que rendeu o inesquecível comentário do Luisinho, nosso padrinho:

“O melhor casamento que eu já fui foi o da Mieko e do Adauto. Enquanto o padre falava a gente estava lá, sentadão, com o copo de cerveja na mão!”

E para não perder a oportunidade, pois sei que quem me conhece já deve estar esperando a “piada pronta”, NÃO, as Bodas de Opala do nosso casamento não tem nada a ver com o MEU Opala, mais conhecido como Titanic – a Lenda. Até porque, entre nós, estamos apenas nas Bodas de Cristal… 😉

Um momento de ternura

Invariavelmente tenho o costume de, após o café da manhã, ir para a varanda para tomar um “café preto” e soltar umas baforadas. Como a casa foi construída acompanhando um morro, então tenho a garagem no nível da rua e, em cima, uma varanda com uma mureta para me recostar e acompanhar o movimento dos carros, dos pedestres, das bicicletas, dos caminhantes e outros quetais.

Temos duas árvores defronte, uma grande, com 18 anos (sei disso porque plantei-a logo após o nascimento de meu caçula) e outra pequena, resquício de uma anterior que caiu sozinha de velhice, fungos e podreira.

Na árvore maior, enganchada numa de suas forquilhas mais baixas, uma latinha de cerveja. “Que raios! E nem fui eu que tomei.” Ali mesmo já pensei em, após terminar meu café, descer, recolhê-la e colocá-la junto com o restante do lixo reciclável.

Mas eis que, antes disso, me surgiu de passagem um caboclo em andrajos, carregando duas madeiras num ombro e com a outra mão, quase que arrastando, um saco cheio de latinhas de alumínio. Bem, do ponto onde fico os transeuntes não têm ideia que estão sendo observados, de modo que fiquei aguardando se ele iria ver e recolher a bendita da latinha.

Mas ele vinha cabisbaixo, não que procurando por algo, mas simples com um evidente ar de desalento. E passou reto. “Bem, paciência. Daqui a pouco eu mesmo desço e recolho a bendita da latinha.” Mas eis que o sujeito para e fica acocorado, observando alguma coisa no chão. Cutuca o que quer que seja que estivesse cutucando e fica observando.

“Uai?…”, pensei.

Então, com nítido cuidado, ele pega seu objeto de observação e volta para a árvore em frente de casa. Daí eu pude ver o que estava em sua mão: uma cigarra. Com delicadeza ele estica o braço e a acomoda no tronco da árvore. Só então percebe a latinha ali enroscada. Dá um sorriso, arranca a latinha da forquilha, enfia no saco, se certifica que a cigarra está bem acomodada (talvez intimamente agradecendo a sorte por tê-la encontrado e lhe feito encontrar mais uma latinha) e vai embora cantarolando baixinho uma canção que não consegui identificar.

Embevecido, por esse momento de ternura, não pude deixar de sorrir.

Taí um sujeito castigado pela vida, numa fria manhã de domingo, de bermuda e chinelo de dedo, procurando “tesouros” no meio do lixo alheio para sua própria sobrevivência. Ainda assim, diante de um ser ainda mais frágil, que no meio da calçada poderia ser pisoteado a qualquer momento por um caminhante desavisado (e que provavelmente ainda iria se indignar por ter sujado a sola do calçado), esse rapaz tem a preocupação de resgatá-lo e devolvê-lo para seu próprio meio, para viver sua própria vida, longe daqueles que poderiam feri-lo.

Penso comigo se ele mesmo não gostaria de também receber esse tipo de tratamento…

Isto é, na atual sociedade ele está ali, frágil, na calçada do viver, podendo a qualquer momento ser pisoteado e esmagado pela falta de condições mínimas de sobrevivência. Alimento. Saúde. Abrigo.

E mesmo assim teve humanidade suficiente para se preocupar com quem está em situação ainda mais frágil que a sua própria!

Pois é. Quando falamos em políticas públicas em prol da sociedade, diferente do que pensam alguns (idiotas), não é “ficar dando condições pra vagabundo”, mas sim paea dar condições mínimas de subsistência para que os mais desafortunados possam ter, no mínimo, a oportunidade de ascender e disputar em igualdade de condições vagas de estudo e de trabalho com aqueles que não precisam ter essa diuturna preocupação com sua própria sobrevivência.

Mas como fazer isso se não tiver o que comer?

Mas como fazer isso se não tiver saúde?

Mas como fazer isso se não tiver onde morar?

E não, este não é um “texto político” (apesar de que a vida em sociedade, em si mesma, é política), mas simplesmente meras reflexões e divagações deste Velho Causídico que vos tecla diante de uma situação que acabei de presenciar. Sinceramente não me importaria se o partido A, B ou C estivesse no poder, ou se o governante fosse fulano ou beltrano. Desde que quem estivesse à frente da nação tenha um mínimo de solidariedade, compaixão e até mesmo de misericórdia para olhar por este povo que (sobre)vive em precárias condições, estaria tudo bem. Mas, diante do recente caos político que passamos, incomodou-me sim – e muito – toda a óbvia cortina de fumaça lançada para deixar a Casa Grande cada vez mais intocável e distante da Senzala. Mas, queira Deus, esse reinado cruel está próximo do fim.

E quando eu falo de “solidariedade, compaixão e misericórdia” entendam que não é meramente uma questão política. E muito menos religiosa. Até porque, na minha nada humilde opinião, religião e política deveriam obrigatoriamente trilhar caminhos separados. É uma questão de humanidade.

Aliás, recentemente o Padre Julio Lancellotti disse algo muito interessante: “A solidariedade, a compaixão, a misericórdia, a empatia não são dimensões religiosas, são dimensões humanas. Até porque os ateus também podem ser compassivos, misericordiosos e os que não têm religião, também.”

Enfim, meus caros, todo esse devaneio dominguístico-matinal surgiu tão somente porque tive olhos para ver (e enxergar) um momento de humanidade de alguém para outro alguém que sequer humano era.

E acho que é isso que anda faltando em nossa sociedade.

Humanidade.

E tenho muito sono de manhã

Sair da cama depois das dez é um ato libertário, subversivo e anticapitalista

Antonio Prata

A luta contra o racismo não é, absolutamente, “vitimismo”. A luta contra o machismo, a homofobia e todas outras formas de opressão, tampouco. Tais considerações, porém, não nos impedem de reconhecer, para além das causas urgentes e legítimas, carcado no espírito do tempo, certo pendor para a autocomiseração. Hobsbawm, em sua tumba, deve estar murmurando: “Ah, era do mimimi!”.

Parece que nada mais é válido se não vier da dor. Você vai ver um “Chef’s Table” da vida e o cozinheiro diz que foi a separação dos pais que o fez prestar atenção na beterraba, que a beterraba o salvou da depressão, e, portanto, seu borsch é um consolo para a nossa sofrida humanidade — aí ele chora sobre a sopa. A CEO explica num TED Talk que enquanto presa nas ferragens, depois de um acidente, bombeiros serrando o carro, desenvolveu um método de pensamento positivo capaz de revolucionar as vendas on-line no varejo da pesca esportiva — e na moda íntima LGBTQIA+ no mercado de luxo do leste europeu.

Licença, Raul: já que “agora pra fazer sucesso/ Pra vender disco de protesto/ Todo mundo tem que reclamar// Eu vou tirar meu pé da estrada/ E vou entrar também nessa jogada/ E vamos ver agora quem é que vai guentar”: desde criança, sou vítima da opressão brutal do horarismo. Você talvez nunca tenha escutado o termo (afinal, o inventei na frase anterior), mas é um mal onipresente, insidioso e discreto, cujo objetivo é desacreditar os milhões que, como eu, acordam tarde. “Deus ajuda quem cedo madruga” está para o horarismo como “Direitos humanos para humanos direitos” para o bolsonarismo.


( Raul Seixas – Eu também vou reclamar )

Durmo todo dia às três ou quatro da manhã, acordo 11 ou meio-dia. Não interessa se entre a meia-noite e as quatro eu encontre a cura pra caspa ou acabe com a chaga da água no ketchup, aos olhos da sociedade, meus olhos inchados no horário de almoço revelarão sempre um vagabundo. Um preguiçoso. Improdutivo.

Se hoje, aqui, aceito a dor da exposição, assumindo-me um acordatardista, é para despertar os outros que sofrem em silêncio (ou roncando). Precisamos denunciar a opressão. Mais do que isso, precisamos mostrar que aquilo visto como vício, na verdade, é virtude. Sair da cama depois das dez é um ato libertário, subversivo e anticapitalista.

Certeza que dá pra puxar alguma frase do Foucault para dar embasamento. “A microfísica do poder opera no adestramento dos corpos, preparando-os para a exploração do capital, a partir do panóptico de pulso, i. e., o relógio”. (A frase não é do Foucault, mas ninguém precisa saber, precisa?).

Citei Raul, mas nosso hino, que bradaremos de peito aberto aonde quer que formos (das 11 em diante), será com esses versos do Chico Buarque (representante fundamental, ao lado do Caetano, dos acordatardistas): “Eu faço samba e amor até mais tarde/ E tenho muito sono de manhã/ Escuto a correria da cidade, que arde/ E apressa o dia de amanhã// De madrugada a gente ainda se ama/ E a fábrica começa a buzinar/ O trânsito contorna a nossa cama, reclama/ Do nosso eterno espreguiçar// No colo da bem-vinda companheira/ No corpo do bendito violão/ Eu faço samba e amor a noite inteira/ Não tenho a quem prestar satisfação.”


( Chico Buarque – Samba e Amor )